História do Cristianismo X
O Período da Patrística
A Teologia
1 – O Período da Patrística
Nos primeiros séculos da era cristã, a Igreja Católica, jovem em termos
históricos, procurava sua identidade filosófica a ser sobreposta ao ensinamento
antes moral e social dos Evangelhos.
A nova fé se encontrava desordenada em sua propagação devido a numerosos
focos de irradiação, nem sempre ideologicamente concordantes. Em fase de
expansão e consolidação, a Igreja, na sua ação exterior, prega; e, no interior
dos seus quadros, busca preencher um certo vazio teórico, filosófico, deixado
pelos primeiros apóstolos, cujas preocupações eram mais práticas, mais diretas e
intelectualmente menos sofisticadas.
Quem lê os Evangelhos, logo percebe que eles não foram escritos por ideólogos
da nova fé e sim por homens sobretudo empenhados em registrar e transmitir as
ações e a pregação do Cristo. Não há formulações elaboradas de doutrina, ou
seja, não apresentava um conjunto de idéias produzidas e sistematizadas pela
razão em um todo lógico, mas a enumeração de milagres, de exemplos, de máximas
concisas, aplicados aos casos específicos que se iam sucedendo ao longo das
peregrinações de Jesus.
Cumpria, assim, criar esse corpo de doutrina, e o instrumento disponível para
tanto era a tradição filosófica herdada da Grécia dos séc. V e IV a.C., muito
particularmente o sistema de Platão, cuja natureza se adaptava ao estágio de
evolução em que se encontrava o cristianismo e à concretização dos seus
objetivos.
Aurelius Augustinus era esse homem. De hábitos desregrados, converteu-se ao
Cristianismo aos 32 anos; foi ordenado sacerdote em Hipona, na África, e mais
tarde consagrado bispo dessa mesma cidade, entregando-se totalmente à prática e
à defesa da verdade cristã.
Agostinho vive um momento crucial da história, a decadência do império
romano, o fim da Antiguidade clássica. A poderosa estrutura que, durante
séculos, dominou o mundo, desaba pela desintegração do proletariado interno e o
ataque externo das tribos bárbaras. Em 410, Agostinho é testemunha da tomada de
Roma pelos visigodos de Alarico. E, ao morrer, em 430, presencia o sítio de
Hipona por Genserico, rei dos vândalos, e a destruição do poderio romano na
África do Norte. É nesse mundo convulsionado por lutas internas, onde proliferam
as heresias e os cismas, que Agostinho exerce o magistério sacerdotal e escreve
sua obra, de tão decisiva importância na história do pensamento cristão.
2 – A Teologia
Fé e Razão – Este é o núcleo em torno do qual gravitam todas as suas
idéias; o conceito de beatitude. O problema da felicidade constitui, para
Agostinho, toda a motivação do pensar filosófico, isto é, uma indagação à
procura da beatitude, ou felicidade.
A beatitude, entretanto, não foi encontrada por Agostinho nos filósofos
clássicos, mas nas Sagradas Escrituras, quando iluminado pelas palavras de Paulo
de Tarso. Não foi fruto de procedimento intelectual, mas ato de intuição e de
fé.
Impunha-se, portanto, conciliar as duas ordens de coisas e com isso Agostinho
retorna à questão principal, ou seja, ao problema das relações entre a razão e a
fé, entre o que se sabe pela convicção interior e o que se demonstra
racionalmente, entre a verdade revelada e a verdade lógica, entre a
religiosidade cristã e a filosofia pagã.
Para Agostinho, ainda que as verdades da fé não sejam demonstráveis, isto é,
passíveis de prova, é possível demonstrar o acerto de se crer nelas, e essa
tarefa cabe à razão. Sustentava ele que a fé é precedida por certo trabalho da
razão, colocando a fé como única via de acesso à verdade eterna. A filosofia é,
para Agostinho, apenas um instrumento auxiliar à teologia, destinada a
sistematizar a doutrina fundamental da Igreja Católica.
A Teoria do Conhecimento – Algumas correntes filosóficas alegavam que
a fonte de todo o conhecimento era a percepção sensível, na qual não se poderia
encontrar qualquer fundamento para a certeza, já que os sentidos forneciam dados
variáveis e, portanto, imperfeitos.
Agostinho, através de engenhosa argumentação, reabilitaria os sentidos como
fonte de verdade. O erro, diz ele, provém dos juízos que se fazem sobre as
sensações e não delas próprias. A sensação enquanto tal jamais é falsa. Falso é
querer ver nela a expressão de uma verdade externa ao próprio sujeito.
De tal forma, a idéia que emerge é a da transcendência hierárquica da alma
sobre o corpo. Presente em sua morada terrena, a alma teria funções ativas em
relação ao corpo. Os órgãos sensoriais sofreriam as ações dos objetos
exteriores, mas com a alma isso não poderia acontecer, pois o inferior não pode
agir sobre o superior. Ela, no entanto, não deixaria passar despercebida as
modificações do corpo e, sem nada sofrer, tiraria de sua própria substância uma
imagem semelhante ao objeto.
Agostinho conclui, que existem dois tipos inteiramente diferentes de
conhecimento: o primeiro, limitado aos sentidos e referente aos objetos
exteriores ou suas imagens; o segundo, imutável e eterno, que é o conhecimento
verdadeiro recebido pelo homem pela iluminação divina.
A Doutrina da Iluminação Divina – Não obstante a influência platônica
em seu pensamento, Agostinho afasta-se, porém, de Platão ao entender a percepção
da alma não como descoberta de uma reminiscência de um conteúdo passado, mas
como irradiação divina no presente. A alma não passaria por uma existência
anterior, na qual contempla as idéias; ao contrário, existiria uma luz eterna da
razão que procede de Deus e atuaria a todo momento, possibilitando o
conhecimento das verdades eternas. Assim como os objetos exteriores só podem ser
vistos quando iluminados pela luz do sol, também as verdades da sabedoria
precisariam ser iluminadas pela luz divina para se tornarem inteligíveis. Assim,
sobre a encarnação, Agostinho dá a mesma ênfase ao humano e ao divino. A
salvação, totalmente imerecida, vem pela graça de Deus; mas essa graça está
vinculada à Igreja católica visível, cujos sacramentos são obra de Deus e não
depende do caráter dos que os administram. Os sacramentos são necessários à
salvação e, por eles, entende todos os sinais de coisas sagradas, incluindo o
exorcismo e o sal dados aos catecúmenos, embora o batismo e a eucaristia sejam,
para ele, sacramentos por excelência.
A teoria agostiniana estabelece, assim, que todo conhecimento verdadeiro é o
resultado de uma iluminação divina, que possibilita ao homem contemplar as
idéias, arquétipos eternos de toda realidade.
A Unidade Divina – Sua doutrina trinitária é decisiva no pensamento
teológico ocidental. Para Agostinho, a unidade das três pessoas da Trindade é
inseparável, não havendo subordinação entre elas, conforme ensinaram Tertuliano
e Orígenes. Em sua explicação do dogma trinitário concebe a natureza divina
antes das pessoas, Deus como mistério que se revela no mistério da Trindade, no
Pai, no Filho e no Espírito Santo. Nessa tese, a natureza divina é concebida por
analogia com a imagem de Deus no mundo e, especialmente, no homem. A alma é
pensamento (lógos) que se exprime em conhecimento (tó ón, “ser”) e
se ama a si mesmo nesse conhecimento (nous, “espírito”). Ora, análogo a
Deus, o homem reproduz o mistério trinitário e, conhecendo-se, conhece-se como
imagem e semelhança de Deus. Conhecer-se e amar-se nesse conhecimento, é
conhecer e amar a Deus, mais interior ao homem do que o próprio homem.
Desta forma, Agostinho concebe a unidade divina não como vazia e inerte, mas
como plena, viva e guardando dentro de si a multiplicidade. Deus compreende três
pessoas iguais e consubstanciais: Pai, Filho e Espírito Santo. O pai é a
essência divina em sua insondável profundidade; o Filho é o verbo, a razão ou a
verdade, através da qual Deus se manifesta; o Espírito Santo é o amor, mediante
o qual Deus dá nascimento a todos os seres.
O Homem e a essência do pecado – Como em outros pontos, sua teologia
contém contradições profundas, devidas à mistura do neoplatonismo com idéias
tradicionais da religiosidade popular. Isso se reflete, por exemplo, no seu
conceito sobre a predestinação, pela qual Deus é livre para oferecer a salvação
a quem quiser, mas está ao mesmo tempo limitado pelos atos sacramentais.
Agostinho chegou a dizer que “muitos que parecem estar fora (da Igreja) na
realidade estão dentro”.
Deus é a bondade absoluta e o homem é o réprobo miserável condenado à danação
eterna e só recuperável mediante a graça divina. O pecado é, segundo Agostinho,
uma transgressão da lei divina, na medida em que a alma foi criada por Deus para
reger o corpo, e o homem, fazendo mau uso do livre-arbítrio, inverte essa
relação, subordinando a alma ao corpo e caindo na concupiscência e na
ignorância. No estado de decadência em que se encontra, a alma não pode
salvar-se por suas próprias forças. A queda do homem é de inteira
responsabilidade do livre-arbítrio humano, mas este não é suficiente para
fazê-lo retornar às origens divinas. A salvação não é apenas uma questão de
querer, mas de poder. E esse poder é privilégio de Deus.
Chega-se, assim, à doutrina da predestinação e da graça, uma das pedras de
toque do agostinismo. Mas, segundo Agostinho, nem todos os homens recebem a
graça das mãos de Deus. Apenas alguns eleitos, que estão, portanto,
predestinados à salvação. Depois do pecado original de Adão e Eva, o homem está
totalmente corrompido e depende exclusiva e absolutamente da vontade divina e
concessão da graça para a salvação.
A Criação – Para Agostinho, o mundo foi criado de uma só vez, todos os
seres ao mesmo tempo, na forma de germes ou sementes. A história do mundo é uma
perpétua evolução, embora não criadora, pois os germes das coisas nele se
encontram desde as origens. Na hierarquia dos seres criados, o homem situa-se
logo abaixo dos anjos, composto que é de alma espiritual e simples e de corpo,
material e organizado. A origem da alma é um problema que Agostinho se confessa
incapaz de resolver e, apesar da influência platônica, não julga a matéria má em
si mesma, nem a união da alma e do corpo um castigo. Em tese, o corpo não é a
prisão da alma; o pecado é que aprisiona o homem à matéria, da qual ele se deve
libertar pela vida moral.
O bem e o mal – Proporcional ao ser, só o bem é positivo, e o mal não
passa de uma privação, decorrente do mau uso da liberdade. O pecado submete a
alma ao corpo e, decaída, não pode a alma salvar-se por suas próprias forças.
Sem a graça é possível conhecer a lei, mas não é possível cumpri-la. A graça não
elimina a liberdade, mas a restaura em sua eficácia, tornando-se capaz de fazer
o bem e evitar o mal. Se o pecado é a ruptura com deus e a precipitação da alma
na matéria, a religião será, ao contrário, o desligamento da matéria e o
encaminhamento da alma na direção de Deus. O cristão será, assim, realmente
filósofo, pois a felicidade, única razão de filosofar, só ele a pode alcançar,
pois conhece o verdadeiro Bem, fonte de toda beatitude.
TEXTOS EXTRAÍDOS DE:
- Coletânea de Textos Filosóficos – CEEF – U.E.C.
- Ensinamentos Básicos dos Grandes Filósofos – S.E.Frost Jr.
- Enciclopédia Barsa.
- Enciclopédia Britânica.
(Publicado no Boletim GEAE Número 417 de 15 de maio de 2001)