Enéas Canhadas
Há muitos anos atrás, um amigo operador de cinema me convidava para ficar com ele na cabine de projeção do cinema onde trabalhava. Enquanto conversávamos sobre os filmes e sobre o funcionamento daqueles enormes projetores, tinha oportunidade de ver filmes diretamente saídos do celulóide mais conhecido como fita de cinema. É claro que tudo isso antecedeu até mesmo a fita cassete. As máquinas de projeção eram verdadeiros trambolhos, talvez uma proporção de um navio para um barquinho montado dentro de uma garrafa em relação aos “dvd’s players” de hoje, cuja luminescência se dava por dois eletrodos que, sofrendo uma descarga muito grande de energia elétrica incandesciam produzindo a luminosidade que passando pela fita deixava a imagem ser projetada e aumentada através de um conjunto de lentes, como de uma objetiva de máquina fotográfica. Lá estavam as imagens imensas projetadas numa enorme tela branca. Assistiram Cinema Paradiso? Pois é, naquele tempo as telas de cinema eram muito maiores do que as que vemos hoje, também as salas de projeção eram anfiteatros de muitos lugares. As minhas lembranças me levam ao Cine Santa Clara da minha cidade natal, e a tela era do tamanho da boca de palco, mas ficava no fundo desse mesmo palco, de modo que assim tínhamos os cine teatros, com o palco e a tela no fundo para a projeção de cinema.
Era fascinante todo aquele trabalho para garantir o funcionamento das máquinas, a tarefa de emendar os rolos de fita, pois os filmes vinham desmontados em partes, acondicionados em latas e para projeção tinham que ser coladas umas às outras formando um rolo de mais ou menos uns 70 centímetros de diâmetro. Eram duas máquinas, e enquanto uma projetava o primeiro rolo, em geral com a metade do filme, a outra máquina era preparada com a outra metade do filme. O operador tinha que ser hábil para ver o aviso na tela de que o rolo estava acabando e na última cena uma máquina era desligada enquanto a outra era acionada. Movimentos bem sincronizados para que as pessoas na platéia não percebessem que naquela parte do filme havia um corte, isto é, a projeção passava a ser feita de um rolo para o outro. As vezes também aconteciam acidentes. O inicio da segunda máquina que deveria garantir a continuidade do filme não entrava na hora certa, ou arrebentava a fita justamente quando deveria projetar o filme e então a platéia ficava às escuras, até que o operador acendesse uma iluminação como de emergência apenas para que a sala ficasse numa penumbra, mas suficiente para as vaias cessarem e as pessoas aguardarem até o recomeço da projeção. Enquanto a platéia assobiava e vaiava a interrupção do filme, o operador estava lá na cabine às voltas para resolver o problema, fosse para emendar a fita novamente ou fosse para encaixar a fita nas inúmeras polias por onde o filme deveria passar, polias dentadas e furos nos fotogramas deviam se encaixar para fazer a fita andar dando a tensão suficiente para haver a projeção das imagens na velocidade necessária resultando na ilusão de movimentos sincronizados com o som também gravado na fita, tudo para reconstituir a realidade como havia sido filmada. Porém, de tudo isso sobre o funcionamento da projeção dos filmes o que mais me chamava a atenção e me levava a reflexões era o fato de poder ver ao mesmo tempo o realismo emocionante das cenas, fosse uma comédia ou um drama, fosse a veracidade de uma aventura eletrizante ou fosse o fôlego preso em cenas de suspense ou gritos de terror e os rolos de filme inertes, como uma sequência interminável de fotos que, aos poucos iam se modificando para dar a ilusão de movimento, eram os fotogramas revelados no acetato transparente. Na verdade os filmes não passavam de uma sequência de fotos sendo que de uma para outra havia uma diferença quase imperceptível e isso ia construindo durante a projeção a ilusão do movimento. De um lado o movimento e a ilusão do filme como se fosse verdade e de outro os fotogramas desse movimento, apenas fotos de situações, apenas imagens paradas. Quando vistas na tela tinham, além do movimento, os sons, as vozes dos atores e também a música, indispensável nos filmes. Quando vistas no celulóide, eram sem vida e jaziam na fita plástica, estáticas. Ocorre na minha mente uma analogia com fatos e sentimentos. O sociólogo Georges Vaucher, afirma que os sentimentos não se conservam, mas se transformam e se submetem a indefinidas flutuações, mas o mesmo não acontece com o aspecto cognitivo. Podemos deduzir que os fatos, uma vez ocorridos, são imutáveis, mas os sentimentos são instáveis. Não há sentimento que perdure de um dia para o outro na mesma intensidade e na mesma abrangência. O que sentimos hoje ou agora, não será a mesma coisa daqui a pouco.
Podemos afirmar que os fotogramas são os fatos. No entanto, projetados e com movimento e som eles vão até a nossa imaginação, ao nosso cérebro e retiram de lá a nossa capacidade de sentir, vibrar, emocionar, ter medo, odiar e amar e tudo o mais. O nosso organismo vive uma emoção enquanto reconhece o fato imutável associado a ela. Assim somos nós seres humanos. Disso decorre que as coisas que vivemos e que marcam a nossa mente fixando-se em nossa memória estão sempre associadas às emoções e como as vivemos. Ser emotivo e sensível é uma maneira de passar pelos acontecimentos. Ser mais racional e movido pelos pensamentos é outra. Ter a emotividade à flor da pele resulta em certos comportamentos observados por todos. Ser mais reservado e de humor mais contido é outra. Ser expansivo e um jeito de ser. Ser introvertido é outro.
Ainda bem que as emoções contidas ou expandidas não se deixam determinar pelos fatos, mas sim pela maneira como sentimos e o sentir é que encerra a verdadeira maneira de como somos e existimos. Podemos até dizer que o sentir está para o espírito assim como o pensar está para a maneira como vivemos as experiências. Não somos repartidos ao meio e então, de verdade, estamos sempre impressionando o Espírito pela maneira como vivemos a vida que nos foi dada. Literalmente provocamos na nossa matéria sutil o “imprint” das experiências vividas que levamos para sempre, os nossos fotogramas que o Espírito fará com que se movimentem, com um detalhe fundamental: é real e não ilusório como o cinema.