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Na Casa Espírita

Na Casa Espírita

Índice

 

  1. A carne é fraca
  2. O crítico
  3. O passista falante
  4. O semeador e os solos atuais
  5. Procura-se um Povo!
  6. Nossa Ruanda
  7. Companheiros perfeitos
  8. Síndrome da criança espancada
  9. Sozinho na Casa Espírita
  10. Divulgação pela palavra
  11. Ano Novo! Vida Nova?
  12. Autodesobsessão ou soluções mágicas
  13. Como vemos Deus?
  14. O Natal
  15. Uma estória de Carnaval
  16. Após o Carnaval

Introdução

Este livro é resultado de uma coletânea de estórias escritas aqui e ali, e
que buscam retratar a imensa galeria de tipos de pessoas que participam das
atividades das Casas Espíritas. São todos resultados da observação, e vivência,
de inúmeras situações, algumas engraçadas, outras até dolorosas.

Não se trata da estória de fulano ou beltrano. Não se buscou endereçar estes
casos a quem quer que seja. O objetivo sempre foi servir de subsídio para que
cada um de nós possa fazer o exercício de auto-análise, tão bem enfocado por
Agostinho na pergunta 919 de O Livro dos Espíritos.

Gosto de encarar estas estórias como pedaços do cotidiano dos Grupos
Espíritas, onde se movimentam tantas pessoas, algumas com a percepção clara do
que representa uma Casa Espírita, outras ainda em busca de milagras, de solução
externa para seus problemas.

Não se tem a pretensão de apresentar soluções, e sim, mostrar como é complexa
a natureza humana, como o contraditório ainda se faz presente no nosso mundo
interno, refletindo-se nos grupos que participamos.

Espero que este livro te seja útil, que lhe faça sorrir um pouco em algumas
situações, sentir-se emocionado em outras, mas que te faça refletir em todas.


1- A carne é fraca…

Antônio Miranda, deitado em seu leito, próximo à janela do terceiro andar de
um grande hospital, observava a chuva cair, e pensava nos últimos acontecimentos
da sua vida.

O tempo correra célere, e cada vez mais ficara clara a necessidade dele se
desvencilhar das influenciações que o estavam levando a tomar certas decisões.
Perdera, desde alguns meses, a alegria de viver, o entusiasmo pelo trabalho.
Continuava envolvido nas atividades, maquinalmente, mais por hábito do que pela
satisfação que elas proporcionam.

Aconselhado por amigos, resolvia lutar, mas logo se rendia às influências,
repetia erros, arrependia-se e, consequentemente, se deprimia. Internamente,
reconhecia que o problema não era a influenciação espiritual que certamente
existia, e sim a sintonia desta influência com seus desejos e paixões.
Considerava-se, porém, fraco demais para superar as forças internas e externas
que o impulsionavam ao erro, aos excessos.

Este ciclo, vivido e revivido, ia desgastando suas energias, e o Espírito
combalido não se encontrava em condições de reorganizar os parcos recursos
existentes, e equilibrar-se organicamente. Acabara adoecendo seriamente. Uma
mistura de doença física e espiritual. Aliás, como a maioria das doenças que
observamos hoje em dia. Fez inúmeros exames que nada detectavam, mas,
efetivamente, não se sentia bem.

Recostado no travesseiro, lembrou da prece, recurso que ele, inclusive,
tantas vezes havia recomendado às pessoas que o procuravam na Casa Espírita em
busca de orientação. Orou como há muito tempo não se dispunha a fazer, e
sentiu-se sonolento. Arnaldo, seu guia espiritual, carinhosamente o abraçou, e
saíram, deixando o corpo adormecido. Antônio sentiu-se bem com a companhia,
ficara até mais fácil respirar. Seu amigo, contudo, nada falava, apenas o
levava, não sabia para onde. Após algum tempo, chegaram a uma praia, que lhe
trazia uma vaga lembrança. Onde seria? Arnaldo o convidou a respirar
profundamente e sentir a energia penetrando-o, fortalecendo-o. Disse, então:
“Você não se recorda daqui? Já trouxemos muitos para sentirem a influência
benéfica do mar. Mas Antônio, meu filho, estamos diante de uma grave decisão.
Tenho tentado orientá-lo, mas você se mantém refratário a qualquer sugestão
minha. Não posso fazer mais, pois o teu livre arbítrio deve ser respeitado. Os
problemas nos quais você se vê hoje envolvido já foram causa de sua queda em
outras encarnações. O desejo de poder, a satisfação de suas paixões estão sempre
na origem dos seus mais graves deslizes. Nesta encarnação, como aliás em outras,
você muito recebeu, e tem responsabilidades, muitos dependem de você. E o quê
você está fazendo? Você, em seus pensamentos, às vezes, acha que a opção pelo
crescimento espiritual é a do seu sacrifício para ajudar os outros. Não se trata
disso, meu amigo. Você precisa sacrificar as suas paixões, para, assim, ajudar a
si mesmo. As pessoas, se não forem ajudadas por você, o serão por outros. Deus a
tudo provê, nós somos apenas intermediários. Acorde deste pesadelo criado por
você mesmo. Você está se deixando levar por ilusões. O que você busca na Terra?
Poder? Satisfazer paixões? Você já respondeu estas questões tantas vezes com as
palavras que saíam dos seus lábios. Por quê não respondê-las agora com o
coração?”

Antônio chorou, sentia as lágrimas rolarem. Acordou soluçando. O que estava
fazendo de sua vida? Olhou para a janela, e o mundo também chorava, com lágrimas
de chuva. Anoiteceu, mas ele não conseguiu dormir. Ao amanhecer, no entanto, não
se sentia cansado. O médico, na sua visita matinal, considerou-o mais saudável.
Após uma semana, recebeu alta. As palavras do seu amigo espiritual não saíam de
sua mente. Achava, porém, que não teria forças para superar os problemas.
Surpreso ficou quando a própria seqüência de acontecimentos, aliadas, é claro, à
sua vontade de vencer-se, foram solucionando as questões mais relevantes. Mudou
alguns hábitos, revisou alguns conceitos, e começou a sentir-se melhor. Passaram
alguns meses e, um dia, ao final de uma palestra, sentou-se aguardando a prece
final. Sentiu-se envolvido por uma vibração serena, e viu, num relance, seu
amigo Arnaldo sorrindo. Emocionou-se, e uma discreta lágrima rolou em sua face.
Afinal, foram dezenas de palestras proferidas ao longo de muitos meses, nas
quais ele não sentira qualquer envolvimento. Ressoou, então, em sua mente aquela
voz que já lhe era familiar, dizendo: “Seja bem vindo, meu amigo. É motivo de
muita alegria entre nós, observarmos o retorno à estrada de um trabalhador da
Seara de Jesus. Que bom que você está de volta.”


2 – O crítico

Belarmino Silveira já participava desde algum tempo daquele Grupo Espírita.
Havia sido atendido nos diversos tratamentos espirituais existentes na
instituição, tinha participado dos estudos, e agora cooperava em algumas
atividades desenvolvidas naquele Recanto Espiritual. No fundo, reconhecia-se
ainda muito imperfeito, mas sentia-se feliz com a confiança depositada nele.
Afinal, sabia que somente através de pequenos trabalhos se capacitaria a
desenvolver atividades cada vez mais complexas.

A Casa era grande, e tinha uma enorme afluência de pessoas em busca de alívio
para suas dores, consolo e orientações. Observava as pessoas irem e virem, e
percebia os resultados alcançados. Ele próprio havia passado por aquele mesmo
processo. Quando chegou à Casa, trazia tantas dúvidas, e havia sido tão bem
atendido… Tinha, inclusive, convidado muitas pessoas e acompanhado sua
melhoria ao longo do tempo.

Na medida em que Belarmino participava dos trabalhos, mais se sentia
envolvido pelos amigos espirituais, mais desejava participar. Sentia-se bem em
estar naquele grupo de pessoas, com defeitos, mas desejosas de se melhorarem.
Sempre que podia, acorria até aquele local que sabia servir de ligação com os
Planos Maiores da Vida. Belarmino seguia bem, mas um pequeno detalhe não vinha
sendo adequadamente cuidado, e acabou por comprometer toda a sua trajetória.
Embora estudasse, Belarmino não conseguiu apreender o que representa a Doutrina
Espírita em nossas vidas. Ele se ligava às pessoas, e não ao sentido espiritual
da Casa. Ele vinculava integralmente as pessoas à Doutrina, sem se dar conta que
mesmo aqueles que, naquele momento, dirigiam a instituição, eram falíveis, se
encontravam em processo de crescimento.

Um belo dia, Belarmino se aborreceu. Não importa aqui o motivo. Existem, na
verdade, tantos Belarminos, e tantos motivos. Tudo, a partir dali, resultava em
crítica. Onde antes via atenção, passou a ver intromissão. Onde antes via
companheirismo, agora via hipocrisia. Não via mais valor em qualquer atividade
desenvolvida naquela Casa, que antes amava. Embora ele próprio tivesse sido
amparado ali, embora tivesse visto tantas pessoas adentrarem a Casa em completo
desequilíbrio, sentirem-se melhor após o adequado tratamento, passou à completa
descrença. Só tinha, agora, olhos para o erro. Em seguida, passou aos
comentários. Sempre que o assunto vinha à tona, em sua residência, ou na própria
instituição, pois ele continuava a desenvolver suas atividades lá, falava do seu
descontentamento. Algumas pessoas, amarguradas como ele, passaram a lhe dar
ouvidos, mas a maioria começou a se afastar. Afinal, é cansativo ficar ouvindo
constantes reclamações. Havia quem perguntasse: Mas o que houve com Belarmino?
Por quê ele fala mal da instituição na qual ele próprio foi atendido, e agora
exerce suas atividades espirituais? Não existe afinal nada de bom nesta Casa?
Será que são todos marionetes na mão de pessoas inescrupulosas?

O tempo foi passando, e Belarmino cada vez mais isolado. Certa noite, subindo
a escada do prédio até o salão de palestra, ouviu a conversa de um grupo, na
qual elogiava-se a Casa, falava-se do sentido que havia sido dado as suas vidas,
antes tão confusas. Decidiu assistir à palestra, e diferentemente do que
habitualmente fazia, prestou atenção nas palavras do expositor. Talvez por
inspiração dos seus amigos espirituais, talvez pela conversa ouvida na escada,
talvez porque gostasse do expositor, talvez… Ele pensava: eu o conheço, e sei
que ele irá, certamente, colocar certas pessoas desta Casa em seu devido lugar.
O orador, tranquilo, começou contando uma conhecida estória, que fala a respeito
da crítica. Nesta estória, um expositor arrumara, cuidadosamente, uma mesa,
cobrindo-a com uma belíssima tolha de linho branco, que tinha uma pequena mancha
em determinada extremidade. Quando perguntou o que as pessoas estavam vendo,
elas responderam uníssonas: uma mancha na toalha.

Aquela estória caiu sobre Belarmino como um raio. Achou que todos olhavam
para ele. Baixou a cabeça, até tomar coragem de olhar em volta.

Percebeu que ninguém olhava para ele, as pessoas estavam atentas à palestra,
buscando absorver os conceitos que eram apresentados. Experimentou um brilho em
seus olhos que não percebia há muito. Por quê seria? Parou para refletir, e
chegou à seguinte conclusão: o brilho jamais deixou de existir, ele, Belarmino,
é que havia perdido a capacidade de alcançá-lo. Acostumara-se a criticar, e
achava que tudo o que diziam era para ele. Belarmino sentiu-se envergonhado,
seus olhos ardiam, mas não conseguia chorar. Olhou, novamente, em volta. Se
deteve em alguns rostos, viu esperança em uns, alívio em outros, mas ainda
existiam rostos aflitos, expressões perturbadas. Aí, então, Belarmino chorou.
Concluiu que, nos últimos tempos, suas opções foram erradas. Poderia ter
escolhido desanuviar essas expressões perturbadas, aliviar os corações aflitos.
Mas a sua opção fora a da crítica contínua.

As lágrimas ainda corriam, quando deu-se conta que a reunião havia terminado,
e o público já se levantava. Levantou-se, também, e sorriu. Sentia-se leve como
há muito tempo não se sentia. Deteve-se nos quadros de aviso, leu as mensagens,
cumprimentou as pessoas.

Desde aquele dia, Belarmino mudou sua atitude. Quando percebia uma falha
qualquer no trabalho, e muitas existiam, não mais criticava. Ele se perguntava:
o que posso fazer para corrigir esta falha? Oferecia-se para ajudar, cooperando
no atendimento das pessoas. Belarmino, agora, parecia entender o que é ser
espírita!


3 – O passista falante

Alice era o que podemos chamar, a passista dedicada. Tinha verdadeira
adoração pela atividade do passe. Desde que começou a frequentar a Instituição,
seu sonho fora se tornar “passista da Casa”. Participou dos cursos, mostrou-se
interessada, e foi aceita como parte da equipe.

Ela havia aprendido, no curso, que muitas pessoas adquiriam determinados
“cacoetes” desnecessários, e resolveu zelar desde o início de suas atividades
para não incorrer em erro algum. Passou a observar as pessoas, com o intuito de
aprender, e evitar erros, e não, conforme dizia inicialmente, para comentar com
os outros o que recolhia de informação. Começou, então, a preparar uma listagem
das incoerências que via, catalogando cada tipo de passista de acordo com uma
classificação toda sua.

Certo dia, estava na Sala de Passe, ouvindo a palestra, quando uma amiga sua,
companheira no trabalho do passe, sentou-se ao seu lado. Começaram a conversar,
apesar da palestra estar se desenvolvendo, e Alice começou a se empolgar,
listando para a amiga, os diversos tipos de passista que já havia registrado:

 

Passista aconselhador: aquele que insiste em dar conselhos para as
pessoas no próprio salão. Interrompe a atividade, ou marca para depois uma
conversa de esclarecimento. Este tipo de passista é parente do passista
intuitivo.

 

Passista intuitivo: aquele que durante a aplicação do passe, “recebe”
orientações acerca do problema da pessoa, indicando determinados cuidados. Em
alguns casos, o procedimento do passista é discreto. Há outros, os passistas
mais intuitivos, que chegam a assumir atitudes esdrúxulas como, por exemplo: se
abaixar até o chão para aplicar o passe no pé do doente.

 

Passista farmacêutico: aquele que, apesar das orientações contrárias,
insiste em recomendar algum tipo de medicamento, um chazinho, um cloreto de
cálcio ou magnésio, uma barbatana de tubarão…

 

Passista ginasta: aquele que dá uma verdadeira aula de ginástica
aeróbica. Ele se balança, gesticula violentamente, agita-se. Nos dias de extremo
calor, termina suas atividades cansado e suado, dizendo: Puxa, como eu doei
energia hoje! Este passista é primo do passista torturador.

 

Passista torturador: aquele que aplica o passe com movimentos velozes,
próximos à orelha da pessoa. Ele faz com que a pessoa fique o tempo todo tensa,
orando para que acabe o passe logo, antes de receber uma pancada na cabeça,
tenha a orelha arrancada, ou até uma fratura no nariz.

 

Passista asmático: aquele que ao aplicar o passe, emite ruídos
acentuados, aparentando dificuldade de respiração. Apresenta-se, às vezes, tão
exagerado, que a pessoa que recebe o passe tem vontade de abaná-lo, ou chamar um
médico.

 

Passista espanhol: aquele que insiste em ficar estalando os dedos. Parece
até que utiliza castanholas pela altura do barulho que consegue fazer.

 

Passista chaminé: aquele que nem nos dias de trabalho consegue parar de
fumar. Este tipo pode ser também chamado de passista hortelã, pois utiliza
muitas balas para minimizar o hálito do tabaco.

 

Passista birita: aquele que não consegue ficar sem o uso da bebida. O
passista birita apresenta, dependendo do grau de adiantamento do vício, muitas
características interessantes que variam, desde o hálito “puro”, até a
dificuldade de se manter em pé.

Ia continuar sua lista, quando uma velhinha que se encontrava próximo, falou:

– Minha filha, coloca na tua lista, o passista falante.

Alice, interessada, perguntou:

– E quais as características?

A velhinha, tranqüila, disse:

– Conversar com seus amigos na Sala de Passe, sem se preocupar com a palestra
em desenvolvimento, desrespeitando as pessoas interessadas em aprender.

Alice, envergonhada, desculpou-se, e anotou mais um tipo de passista na sua
longa lista.


4 – O Semeador e os Solos Atuais

O tema da palestra era A Parábola do Semeador, mas os pensamentos de Antônio
estavam longe, muito distantes do que estava sendo dito. A última coisa que
tinha ouvido do expositor era que sementes caídas à beira do caminho haviam sido
comidas pelas aves do céu. Havia buscado o tratamento espiritual em função de
grave processo obsessivo que o havia desarmonizado completamente. No seu
desequilíbrio mostrava-se irritadiço, inquieto, e o efeito benéfico do
tratamento, que já se fazia sentir, o tinha acalmado. Mas faltava algo, não
sabia o quê.

Num determinado instante, sua atenção voltou-se para um senhor que ouvia
atentamente as palavras do expositor, e mostrava-se muito interessado em cada
uma delas. Parecia que ele nem piscava. Aquela cena o tocou e ele pensou: ele
está tão atento ao que está sendo dito, está tão envolvido, que talvez possa me
ajudar. Não havia pensado em pedir ajuda ao dirigente dos trabalhos, ou ao
expositor, porque eles pareciam ocupados demais, mas aquele senhor estava
próximo, estava sentado na assistência como ele, e o que era fundamental,
parecia satisfeito.

Distraiu-se com outros pensamentos, e ao final da reunião quando procurou o
velho, não o encontrou no burburinho da saída das pessoas desejosas de voltar
logo ao lar naquela noite fria e chuvosa. Também precisava pegar seu ônibus e
preferiu seguir seu caminho. A lembrança, porém, permaneceu viva em sua mente
durante todo o restante da semana.

Na semana seguinte, ao chegar ao Centro, o encontrou logo na entrada. Ele
estava distraído, observando as pessoas que entravam no velho casarão que servia
de instalação para aquele Grupo Espírita. Encheu-se de coragem e se apresentou.
Falou do vazio que sentia, que buscava alguma coisa que não conseguia definir.
Pedia ajuda. Dizia que tinha se animado a conversar com ele por causa da cena da
semana anterior. A palestra parecia tão interessante para o velho, e, no
entanto, para ele não parecia ter qualquer sentido prático. O velhinho sorriu e
disse que aquele tema o agradava muito. Falou que as parábolas de Jesus traziam
ensinamentos profundos, mas sempre aplicáveis na nossa vida diária. O rapaz um
pouco decepcionado com a resposta, pensava: como uma mensagem tão antiga pode me
ajudar? Eu só me lembro de uma estória de aves comendo sementes à beira de um
caminho. Parecendo ler seus pensamentos, o velho lhe fez a seguinte proposta:
vamos comparar a parábola do semeador com o que vemos a nossa volta. A reunião
estava começando e as pessoas já haviam se dirigido ao salão. Algumas, porém,
permaneciam conversando animadamente pelos corredores, não demonstrando qualquer
interesse em participar do trabalho que se iniciava. O dirigente proferiu a
prece, e passou a palavra ao expositor da noite, mas algumas pessoas insistiam
em conversar, prejudicando o trabalho. Num canto do salão, risinhos denotavam
que a atenção destas pessoas não estava voltada para o trabalho que se
apresentava. Discretamente, o velho apontava para estas pessoas, e o rapaz mais
intrigado ficava. Ao final da reunião, saíram juntos, e o velho convidou a ouvir
os diálogos que estavam sendo travados na saída do salão:

– Choveu durante toda a palestra!

– Espero chegar a tempo para ver o jogo!

– Você viu como é bonita aquela moça que sentou na primeira fila?

– Estou com uma fome danada. Não ouvi nenhuma palavra do que o expositor
disse!

O jovem, já cansado das observações do seu novo amigo, perguntou aonde ele
queria chegar. Ele respondeu: se você estivesse realmente buscando olhos de ver
e ouvidos de ouvir perceberia que a parábola que foi contada na semana passada,
retrata exatamente o que vimos aqui hoje. As pessoas retratadas na parábola como
“beira do caminho” são aquelas que se mantêm indiferentes à mensagem de
renovação trazida pelo Mestre. Nas Casas Espíritas, podem ser percebidas vagando
pelos corredores, conversando, ou de risinhos durante as palestras, são aquelas
incapazes de perceber as boas influências. Sintonizam com influências negativas,
representadas na parábola como as aves do céu, e acabam se afastando das Casas
Espíritas, sem nunca, na verdade, terem participado dos trabalhos. Freqüentaram
por semanas, meses, até anos, mas nada penetrou realmente em seus corações.

O jovem ouviu atentamente as palavras do velho, pensou um pouco, sorriu,
abraçou o amigo e se despediu sem nada falar. Sua mente, porém, fervilhava,
enquanto seguia em direção ao ponto de ônibus. Percebeu que esteve o tempo todo
à margem do caminho e queria logo encontrá-lo. Sentiu ali que o seu problema
tinha solução, mas ela não viria de fora. A parte externa já havia sido
realizada, faltava a interna, parte que lhe cabia. Reconheceu que era um “solo”
inadequado e que a semente havia sido plantada, mas não tinha condições de
germinar. Precisava cuidar do seu “solo”, aprender a ver e a ouvir. O ônibus
chegou e ele seguiu com seus pensamentos, agradecendo os exemplos que o velho
tinha lhe mostrado, de maneira tão simples.

Na semana seguinte procurou o amigo, mas não o encontrou. Perguntou por ele,
mas ninguém o conhecia. Passando pela secretaria, viu um quadro. Era o velho!
Perguntou à secretária quem era aquele homem, e ouviu, surpreso, a sua resposta:
este é o “Seu” Barbosa. Ele foi o fundador deste Centro. Já desencarnou há uns
vinte anos!


5 – Procura-se um Povo!

Procura-se um Povo!

Mas não é esse que se encontra nas ruas, embaixo de marquises e pontes. Não é
esse povo que já se acostumou a ver suas crianças morrerem de fome, de frio, e
de doenças.

Será que o Povo que procuro está assistindo filmes no cinema sobre a terrível
guerra do Vietnã, ou sobre o holocausto nazista, ou sobre os conflitos internos
do homem na sociedade construída pelos habitantes dos países do 1o mundo?

Procura-se um Povo!

Mas não esse que se acotovela em barracos construídos com caixas e papelão.
Nem o que constrói buracos no chão para morar, ou “casas” sobre os mangues,
cercado de baratas e ratos.

Será que o Povo que procuro está no interior dos teatros assistindo peças
sobre a miséria humana? Ou, quem sabe, lendo livros sobre socialismo, ou
comunismo, e entre suspiros, pregando a necessidade de uma reforma social?

Procura-se um Povo!

Mas não é esse que bebe água do esgoto que passa embaixo dos viadutos onde
mora. Nem o que revira latas de lixo para ter o que comer. Nem o que cata papel,
papelão, plástico, para comprar algo para comer, e assim sobreviver por mais um
dia.

Será que o Povo que procuro está em alguma festa, recostado em algum sofá,
falando da insegurança das grandes cidades, reclamando, sentindo-se lesado no
seu direito de ir e vir? Ou será que conversa, durante o jantar, em algum
restaurante, sobre as mulheres daquele povo que não param de ter filhos e que
deveriam ser esterilizadas?

Procura-se um Povo!

Mas não é esse que esmola nas ruas, exibindo crianças raquíticas e doentes,
ou feridas abertas que teimam em não curar. Nem esse povo que sorri sem
expressão, sem alegria, sem dentes.

Será que o Povo que procuro está nas academias de aeróbica ou nos cursos de
inglês e durante o intervalo fala dos “trombadinhas” que importunam na
lanchonete, pedindo um trocado ou o resto do sanduíche? Ou será que estão
lanchando, repugnados diante da criança magra, suja, remelenta, que estende a
mão, ousando pedir algo que mate a sua fome, a fome de toda uma vida?

Procura-se um Povo!

Mas não é esse que tem que lutar cada dia sem saber se terá o que comer à
noite, comprando a vida no varejo por não podê-la comprar no atacado. Nem esse
cujas filhas são obrigadas a se prostituir desde a infância, para sobreviver.

Será que o Povo que procuro se encontra em gabinetes, em discussões
intermináveis, tratando da pena de morte, da legalização do aborto, da
esterilização das mulheres daquele outro povo, como a solução para os problemas
que assolam a sociedade?

Não! Eu procuro um Povo com P maiúsculo. Um Povo capaz de sentir, mas sentir
profundamente a dor de um pai que vê seu filho morrer lentamente de fome, o
desespero daquele que não encontra trabalho para garantir o sustento de sua
família e a vê se esfacelar, a desesperança daquele que não tem onde morar, a
animalização daquele que passa a viver de restos e perde toda e qualquer noção
de Dignidade.

Procura-se um Povo que tenha a força interior para mudar tudo isso. Esses que
se encontram nas ruas não o podem fazer. Os que fingem não ver, não o farão.
Procura-se um Povo que queira fazer.

Procura-se um Povo que seja solidário, que queira lutar contra a Miséria que
mata, aos poucos, milhares de pessoas todos os dias, que mina as resistências, e
destrói todos os valores morais.

Procura-se um Povo constituído de gente como você que não consegue mais viver
neste mundo do jeito que ele está, que deseja fazer algo além de reclamar, ou
lamentar.

Procura-se um Povo capaz de arregaçar as mangas, de se doar. Procura-se um
Povo que acredite que aqueles que se encontram nas ruas são gente, são
brasileiros, como cada um de nós.


6 – Nossa Ruanda

É noite. Minha família se encontra reunida, após o jantar, assistindo a mais
um telejornal. As notícias violentas se seguem, rotineiras, um assalto aqui, um
ou outro seqüestro, desabamento em alguma favela, desabrigados, enfim, situações
do nosso cotidiano.

De repente, surge, na tela, um trator empurrando dezenas de corpos, vítimas
da Cólera, da Fome, da Miséria, em mais um país falido, destroçado, no
continente africano. Tratavam-se dos fugitivos da guerra civil de Ruanda. Um
choque! Aquela cena fazia ressurgir, no nosso íntimo, lembranças terríveis dos
inúmeros genocídios já praticados pelo Homem. Corpos esquálidos, pele e osso,
aglomerados em valas comuns, que faziam as vezes de túmulos. E a notícia seguia,
soturna, falando sobre a falta de alimentos, a necessidade de se escolher a quem
alimentar dentre os que apresentavam melhores condições de sobreviver.

Foram cenas impressionantes. Pensei: Ver seres humanos amontoados como lixo
será sempre impressionante, causará choques sempre. Uma dúvida, porém, logo se
instalou em minha mente: Mas será mesmo? Para ser honesto, não sei se tenho
tanta certeza. Passei a observar o restante do telejornal, analisando e buscando
sentir cada caso apresentado. Depois de algum tempo, me perguntei: Qual a real
diferença entre corpos de pessoas que morreram de fome e que são empurrados por
um trator até uma vala comum na distante Ruanda, e outros que também morrem de
fome, nas diferentes esquinas, das diversas cidades, no nosso país? Fiquei
pensando na nossa Ruanda interna, nos nossos tratores que empurram tantos para
as valas comuns. Senti medo, medo de que eu me acostume com tudo isso. Afinal,
tantos já se acostumaram a ver pessoas dormindo nas ruas, morrendo de frio e de
doenças! Já se acostumaram a ver pessoas mendigando comida… Já se acostumaram
com a idéia de 32 milhões de brasileiros vivendo na mais profunda miséria… A
que mais podemos nos acostumar?

O telejornal acabou e eu fiquei com o meu medo. Será que os brasileiros que
podem assistir um telejornal, após terem se alimentado, estão percebendo a nossa
Ruanda? Será que estamos nos acostumando com a miséria que grassa em nossa
sociedade? Em meio aos medos, começaram a desfilar em minha mente algumas ações
que buscam devolver a Dignidade a nossa sociedade, e então lembrei-me dos
inúmeros Comitês contra a Miséria criados, das Instituições Filantrópicas. Mas
seria isso o suficiente? Pode-se fazer algo mais?

Antes de dormir, com a cabeça deitada sobre um travesseiro, recordei-me de
uma antiga estória que me contavam quando era pequeno, a estória da andorinha.

De forma resumida, a estória diz o seguinte: Um homem observava um incêndio
numa floresta próxima a sua casa, quando percebeu uma andorinha que vinha até o
lago, molhava as suas asas, dirigia-se até o incêndio, derramava algumas poucas
gotas de água e voltava ao lago, repetindo o trabalho. Após algum tempo,
perguntou, irônico, à andorinha se ela acreditava que iria apagar o incêndio
daquela forma. A pequena ave respondeu rapidamente, para voltar ao seu trabalho:
“Eu sei que não, mas é o que eu posso fazer”. Lembrei, então, com especial
carinho, daqueles que não têm muito a dar, mas dividem o seu pouco com outros
que nada têm. E pensei em cada um de nós, homens que observam o incêndio, e
dormi sonhando com o dia em que todos se transformarão em andorinhas, molharão
suas asas no lago da Solidariedade e juntos apagarão o incêndio da Fome e da
Miséria.


7 – Companheiros perfeitos

Quando Márcia encontrou a Doutrina Espírita sentiu-se renovada. Ali estava,
pensou ela, a resposta para todas as suas perguntas, as dúvidas que haviam lhe
acompanhado durante anos não resistiam à lógica simples das respostas de O Livro
dos Espíritos.

Passou a freqüentar a Casa Espírita desejando recuperar o tempo que
considerava perdido, e como era uma pessoa muito dinâmica, logo passou a
integrar o grupo de trabalhadores daquela pequena Casa. Um grupo pequeno porque
sempre são escassos os trabalhadores.

A princípio via em seus companheiros, modelos de perfeição. Com o tempo,
porém, começou a perceber que um deles, o Antônio “livreiro”, irritava-se
profundamente por causas sem importância. Uma outra médium, D. Conceição,
participante assídua das reuniões de desobsessão, trabalhadora da Casa desde sua
fundação há 20 anos, vivia em conflito com o Sr. Amadeu, responsável pelo
Departamento de Patrimônio. Ora ela criava dificuldades para o desenvolvimento
do trabalho do dirigente, ora ele era quem estabelecia regras estranhas de
difícil compreensão. E lá ia a D. Conceição falar dele para quem quisesse ouvir.

Um a um, os participantes do grupo iam desfilando em sua mente e cada um
apresentava determinado defeito. Márcia verificou que a harmonia perfeita que
acreditava existir naquele grupo não era tão generalizada como acreditou no
início. E ao pensar assim, começou a ser procurada continuamente por Dirceu,
antigo freqüentador da Casa que sempre lhe trazia “novidades” sobre os trabalhos
e os trabalhadores. Era uma pessoa que deixava as salas desorganizadas, ou um
orador que não conseguia prender a atenção da assistência que começava a crescer
nos salões daquela Casa, ou uma pessoa que vinha em busca de auxílio e que não
era bem tratada. Enfim, sempre uma reclamação acerca dos trabalhos lá
desenvolvidos. Tanto ouviu, tanto falou, que Márcia tornou-se uma crítica severa
de tudo o que a envolvia. O entusiasmo inicial deu lugar a uma presença azeda,
sempre pronta a observar o erro. Afinal, pensava: “Como pessoas que participam
do trabalho há tantos anos, podem cometer tantos erros?”

E assim seguiu, em meio as suas dúvidas, questionando mais do que
trabalhando, se constituindo mais num verme roedor do que numa abelha laboriosa.
Em certa tarde morna de primavera, passando diante da Casa, viu o Sr. Cláudio,
presidente da instituição, que se encontrava varrendo o quintal, e que a recebeu
com carinho. E ela falou, falou muito, eram informações verdadeiras e falsas,
antigas e recentes, não importava, ela queria dividir tudo aquilo que passou a
conhecer e que considerava a mais pura verdade. Os minutos se passaram e viraram
uma hora. Quando ela parou, esperava uma expressão de surpresa do “calejado”
presidente, ou, ao menos, um comentário de encorajamento as suas reclamações,
mas nada disso aconteceu. Ele, já acostumado a tudo isso, tendo trabalhado com
grupos humanos desde muitos anos atrás, tendo atravessado muitas crises,
simplesmente sorria compreensivo.

Após alguns segundos que pareceram séculos para a moça, ele disse: “Eu
entendo a sua aflição porque já a senti. Durante anos busquei a perfeição nos
companheiros de trabalho, foram anos de conflitos e aflições. Ora a decepção me
arrasava o coração, ora o desânimo paralisava as minhas mãos, e, quando errava
numa avaliação, vinha o remorso abrasar a minha mente. Cheguei ao ponto de não
mais perceber as virtudes das pessoas porque seus erros, na minha visão, eram
gigantescos. Freqüentei vários grupos espíritas nesta busca. Nunca pensei em me
afastar da Doutrina Espírita porque eu a percebia, no imo de minha alma, como a
resposta às aflições humanas. Decidi, então, há vinte anos, fundar este pequeno
grupo. Deus, nossos amigos espirituais, e, em particular, o bondoso Dias da Cruz
abençoaram o esforço, e o grupinho começou a crescer. Eu pensava em formar um
grupo perfeito, de acordo com os meus moldes, mas as dificuldades internas
começaram a surgir, minando os trabalhos que surgiram tão promissores.

Um dia, profundamente entristecido, após verificar que mais uma das nossas
atividades corria riscos de ser suspensa, fui até o fundo do salão de palestras
e orei, orei tão profundamente que me senti envolvido por um doce torpor, e uma
voz ressoou dentro de mim: “Cláudio, por quê te lamentas tanto? O que esperas
das pessoas que trabalham contigo? São todos candidatos ao Bem, não são bons
ainda, não venceram a batalha. Tu podes e deves ajudá-los, mas não basta apontar
erros, tocar em suas feridas, você tem que estimular as virtudes, ressaltar os
seus acertos. Não se consegue desenvolver uma horta que vai alimentar a muitas
pessoas, sufocando as tenras plantinhas, sob a alegação de que se deseja
exterminar as ervas daninhas. Pensa nisso! Mesmo Jesus, nosso Mestre Amorável,
não contou com um grupo perfeito na sua passagem pela Terra…”

“O torpor foi passando e me vi só. Olhei para a grande mesa lá na frente,
andei pelas dependências da Casa e passei a ver, no Centro, uma horta a qual
tantas vezes sufoquei boas disposições de trabalho, na minha ânsia de perfeição.
Questionei que tipo de agricultor era eu, que, preocupado com as ervas daninhas,
tinha perdido a capacidade de estimular o crescimento das tenras mudinhas que
via surgir naquela amada horta, precisando de ajuda para crescer. Mudei, então,
a minha postura diante dos conflitos, passei a ouvir e ver as pessoas procurando
seu lado bom, os pontos positivos da situação. Desta forma, vi os trabalhos
florescerem, e muitas pessoas serem ajudadas, como você foi. É claro que
dificuldades surgem, mas a essência da Doutrina, esta nunca poderá ser violada,
e estamos atentos para isso”. E, olhando dentro dos olhos da dinâmica
trabalhadora, disse: “Márcia, eu aprendi naquele momento que devo buscar
construir a perfeição dentro de mim e não nas pessoas que me envolvem. E quanto
mais eu luto neste sentido, mais eu consigo compreender as dificuldades alheias
e posso assim ajudar. Não podemos nunca confundir a Doutrina Espírita com as
pessoas que freqüentam ou trabalham nas Casas Espíritas”.

A moça ficou ainda alguns minutos absorta em seus pensamentos após a
despedida do presidente que iria dirigir a reunião da noite. Muitas imagens
passavam, muitas estórias, e ela foi se dando conta que o velho presidente
estava repleto de razão. Mais surpresa ficou quando, abrindo seu exemplar de O
Livro dos Espíritos ao acaso, leu na nota explicativa da pergunta 918:
“Verdadeiramente, homem de bem é o que pratica a lei de justiça, amor e
caridade, na sua maior pureza. Se interrogar a própria consciência sobre os atos
que praticou, perguntará se não transgrediu essa lei, se não fez o mal, se fez
todo o bem que podia, se ninguém tem motivos para dele se queixar, enfim se fez
aos outros o que desejara que lhe fizessem”.

Fechou o livro e foi caminhando lentamente para casa pensando em como é fácil
nos perdermos na estrada, se não nos mantivermos vigilantes. Levantou os olhos
para o céu, e numa prece muda agradeceu a Deus a oportunidade de poder
trabalhar. Dali em diante, toda vez que era procurada por alguém trazendo alguma
“novidade”, buscava apontar um ângulo positivo do assunto, e muitas vezes
sorria, lembrando aquela tarde morna de primavera diante do experiente
companheiro de trabalho.


8- Síndrome da criança espancada

Todos os dias lemos nos jornais ou assistimos na televisão, casos de crianças
espancadas. Estas agressões têm se tornado tão comuns nos Pronto-Socorro dos
hospitais que muitos médicos vêm elaborando trabalhos sobre a chamada Síndrome
da Criança Espancada. Seria esse um “fenômeno” do nosso século, mais um
“sub-produto” da desagregação da família? Sabemos que a criança é um Espírito
imortal que reinicia sua caminhada no mundo físico, que traz suas tendências,
sua estória “impressa”. Muitas vezes velhos ódios ressurgem. Seria este ódio a
causa do espancamento? A situação sócio-econômica em que se encontram muitas
pessoas é bastante precária. Muitos vivem sem acesso à Educação, Saneamento
Básico, etc e o que é ainda pior: sem horizontes. Seriam estas agressões
causadas pela situação sócio-econômica da população?

No intrincado universo humano as soluções não são do tipo um mais um igual a
dois, de modo que as explicações para este “fenômeno” não são simples. Não
existe uma resposta única que explique todos os casos. As várias causas
apresentadas e outras repercutem em maior ou menor grau em cada caso. Passado e
presente se mesclam estabelecendo um relacionamento de desequilíbrio e dor entre
adultos e crianças. Como se costuma dizer: cada caso é um caso. Tornam-se
necessárias, porém, reflexões profundas por parte de cada um de nós, de modo a
que todos possamos verificar onde poderemos agir visando minimizar este
problema. Não podemos modificar as causas passadas mas e as causas do presente?

Todas essas reflexões me vêm à mente ao recordar uma das manifestações
ocorridas no trabalho de orientação a desencarnados em desequilíbrio do qual
participo. Nossa irmã, em estado físico deplorável, roupas rasgadas, sujas,
apresentou-se agressiva:

– Bato mesmo, eu bato quanto eu quiser. Eu sou mãe. Faço o que eu quero com
estes três diabinhos. Bato até matar. Eu também apanhei muito.

Não quer conversa e reluta em estabelecer o diálogo com o doutrinador.
Continua repetindo as ameaças aos seus filhos. Com muita dificuldade consegue-se
imprimir um novo rumo à conversa. Nossa amiga, ainda agressiva, fala de seus
sofrimentos, da fome, da miséria. Permanece céptica com relação a nossa postura
de apoio. Afirma, com certa dose de razão, que “nunca” teve apoio em sua
miséria, que a mesma sociedade que a condena, a abandonou.

O diálogo prossegue, arrastado, sem muitos resultados objetivos até que ela,
surpresa, aponta para o canto da sala, dizendo:

– Olha ali o diabinho. Ô menino, o que você está fazendo aí? Tá todo
limpinho, arrumadinho… O que você está aprontando? O que você quer, menino?

Deste ponto em diante, não participamos mais da conversa. Apenas observamos o
encontro de mãe e filho.

– Genivaldo, ô Geni. Tira essa cabeça do meu colo, menino. Esta cabeça está
me queimando. Menino…

Aos poucos vai cedendo, começa a chorar e acaba abraçando o filho. Acalma-se
após algum tempo e é levada pela equipe espiritual para um local de repouso onde
poderá repensar sua vida e Geni, sorridente, volta com a “professora” que o leva
para sua escolinha, feliz por ter “reencontrado” sua mãe.

Quais teriam sido os motivos que levaram esta mãe a espancar os filhos? Por
quê apenas Geni, dos três filhos, apareceu para conversar com ela? As causas
seriam apenas passadas, apenas presentes ou uma combinação das duas? Na verdade,
responder estas perguntas não é o mais importante. Talvez, o mais importante
seja responder: o que cada um de nós poderia ter feito para minimizar este
problema?

Pudemos perceber naquela noite a força do Amor, do perdão, “cobrindo uma
multidão de pecados”. Refletindo sobre os tristes casos de espancamento de
crianças, vêm a minha mente a imagem do Mestre Jesus falando às multidões:

– Precisamos aprender a separar o pecado do pecador. O erro, de quem erra.

Voltando à mãe de Geni, poderíamos perguntar: seria ela a única vilã? Jesus
tentou nos ensinar que o que deve ser combatido são as ações erradas, não as
pessoas. Não devemos, portanto, dirigir nossas vibrações de angústia e tristeza
e até indignação, para os agressores. Eles precisam, e muito, de nossas
vibrações de afeto. Estão doentes. As causas dessa doença podem ser passadas ou
presentes. Elas precisam do remédio do Amor. Remédio que Geni soube aplicar tão
bem, sem uma palavra, com um único gesto.


9 – Sozinho na Casa Espírita

João se encontra no meio da multidão. Aguarda que o sinal de trânsito fique
vermelho, detendo o fluxo de carros que parece interminável. Fecha-se o sinal,
buzinas soam, a multidão se move anônima. João vê rostos inexpressivos, rostos
alegres, rostos tristes, mas não consegue encontrar um único rosto amigo. É
tarde, quase dezoito horas, e ele se apressa para chegar logo à fila do ônibus
que o levará de volta para casa. A fila é imensa, mas ele continua sem encontrar
um rosto amigo. O ônibus vai cheio e o trânsito é lento. Algumas pessoas, já
cansadas pelo longo dia de trabalho, resmungam, outras ironizam, e o ambiente
torna-se tenso. Várias vezes surgem atritos, porém todos continuam anônimos.
João faz toda a viagem sem pronunciar uma palavra. É como se as pessoas fossem
parte da paisagem, parte da viagem, como se não fossem, cada uma, um Universo
diferente.

Já são quase vinte horas quando João chega ao seu destino. Não há mais tempo
de ir até em casa e ele segue direto para a Casa Espírita. Chegando lá, encontra
o auditório repleto. Conhece alguns rostos, acompanha algumas conversas, mas
está só. Encontra um lugar para sentar, assiste a palestra, recebe o passe e, ao
final da reunião, dirige-se para casa. Isso tudo sem abrir a boca, sem conversar
com ninguém. Inúmeras vezes sentiu vontade de conversar com o dirigente da
reunião, ou com o presidente da Casa, ou com o responsável pelo passe, mas todos
pareciam tão ocupados! E assim vai João, sozinho no mundo e na Casa Espírita. E
isso tudo no meio de tanta gente!

Esta estória, que é a estória de muitos “joões e marias”, nos oferece
reflexões com relação ao papel da Casa Espírita e, principalmente, o nosso
papel
na Casa Espírita. Diante da situação apresentada, a reação de todos
aqueles que já se encontram engajados no trabalho é de indignação. Como,
perguntaremos, se pode conceber que isso ocorra numa Casa de Amor, que trabalha
sob a orientação de Jesus? Não teria Ele dito que é fundamental que nos amemos
uns aos outros?

As respostas a estas perguntas são óbvias. Devemos reconhecer, porém, que é
impossível para o dirigente da reunião, o presidente da Casa ou o responsável
pelo passe, conversar com todos aqueles que chegam ou que se encontram
“isolados”. Poderão atender a alguns, nunca a todos. Onde estará, então, o erro.
Refletindo sobre o nosso papel na Casa Espírita, encontraremos as respostas.

Um Grupo Espírita tem que funcionar como uma família. Não existe uma
hierarquia estabelecida, determinando que fulano ou beltrano sejam responsáveis
por conversar com os que se encontram sozinhos ou “deslocados”. Todos somos
responsáveis pela integração das pessoas no trabalho. “Ninguém é tão pobre que
não tenha algo para doar”. Estamos na Casa Espírita! Não podemos doar alguns
minutos, ouvir os problemas que as pessoas tragam e oferecermos a nossa amizade?
Um dirigente não poderá abraçar a todos, mas se cada um dos “antigos” abraçasse
um “novo”…

A responsabilidade com relação àqueles que se encontram sozinhos no mundo
está diluída por toda a Humanidade, mas a responsabilidade com relação àqueles
que estão junto à nós, sentados na cadeira ao lado, é nossa. Se estamos, hoje,
integrados a um grupo, certamente “devemos” algo a alguém. Chegou a hora de
retribuir à Vida, parte de tudo aquilo que ela nos tem oferecido.

E é pedir tão pouco. Jesus dizia que seus discípulos seriam conhecidos por
muito se amarem! Não queremos ser trabalhadores da Seara de Jesus? Como falar de
caridade aos que estão distantes, se não apoiarmos os que estão sozinhos ao
nosso lado, seja em nossos lares ou na Casa Espírita que trabalhamos?

Fica, então, o convite para todos. Prestemos atenção. Mantenhamos os olhos e
ouvidos abertos. Existem dezenas de pessoas cruzando nosso caminho todos os dias
que necessitam de nossa ajuda, de uma palavra amiga. Muitas vezes, essas pessoas
estão ao nosso lado, na Casa Espírita. Esqueçamos, um pouco, nossas dores e
poderemos perceber como são muito maiores as que muitas pessoas, a nossa volta,
estão carregando. Muitos gritam em silêncio por socorro enquanto os ouvidos de
nossa alma permanecem surdos em função do nosso egoísmo e da nossa preguiça.
Está em nossas mãos a oportunidade de evitar que existam pessoas sozinhas. Pelo
menos, na Casa Espírita!


10 – Divulgação pela Palavra

Os objetivos principais da divulgação da Doutrina Espírita pela palavra são,
sem dúvida, o esclarecimento e o consolo. Quantas lágrimas podem ser enxugadas
com a certeza da nossa imortalidade? Quantos crimes evitados com a percepção de
que os nossos sofrimentos de hoje são conseqüências das nossas ações passadas?
Devemos, portanto, participar, na medida de nossas possibilidades, deste
processo de divulgação. Nos grupos espíritas, encontraremos normalmente um
ambiente favorável, fraterno, o que facilita muito a expressão dos nossos
pensamentos nas palestras.

Algumas perguntas, porém, devem ser respondidas, inicialmente, na preparação
do que vai ser exposto às pessoas, de modo a se conseguir estabelecer a
comunicação. O objetivo não é apenas falar, e sim comunicar-se.

Os “especialistas” em comunicação orientam que existem algumas perguntas
básicas que devem ser analisadas:

Para quem vou falar?

Onde vou falar?

Quando vou falar?

O que vou falar?

Surge, também, uma outra questão: como estabelecer e manter uma comunicação
efetiva entre orador e os ouvintes? Para isso, deve-se manter os ouvintes
atentos e receptivos. A atenção é conseguida, despertando-se a curiosidade do
grupo, mantendo-o intrigado, interessado pelo assunto. É garantida com a
brevidade e objetividade da argumentação, assim como a alternância de ritmo. Já
a receptividade pode ser atingida através da ligação natural e simples com o
grupo, deixando a sensação de que todos sairão enriquecidos no final do
trabalho.

Com todas estas questões solucionadas, pode-se partir para a organização da
palestra. Ela deve apresentar início, meio e fim, ou seja, introdução,
desenvolvimento (Aristóteles dividia esta parte em afirmação e prova) e
conclusão.

A introdução deve ser interessante de modo a atrair a atenção das pessoas.
Podem ser utilizados diversos recursos: uma estória contada, notícias atuais,
assunto ligado ao grupo ou um tema original. Desta forma, cria-se uma
expectativa favorável com relação ao desenvolvimento da exposição. Este deve ser
claro e convincente, apresentar uma idéia central que possa ser sintetizada
(isto é importante para não se perder de vista, em nenhum momento, o objetivo da
palestra). Já a conclusão deve ser breve e buscar a emoção. Pode-se utilizar uma
poesia lida ou decorada, comentar uma passagem evangélica ou lembrar um
pensamento célebre. A conclusão é algo que deve ficar “ressoando” no íntimo das
pessoas.

O expositor deverá desenvolver seu estilo próprio, nunca ficar copiando o
estilo dos outros. Pode aproveitar exemplos, fontes, encadeamento de idéias,
figuras e imagens utilizadas por outra pessoa, mas a sua identidade deve ser
buscada, a sua maneira pessoal de transmitir as idéias. É importante lembrar-se
de que a qualidade do seu trabalho vai se caracterizar pela originalidade. E com
o passar do tempo, a variedade de temas apresentados lhe permitirá “fundir” 3 ou
4 palestras, fazendo uma nova, adaptada ao momento. Existem muitos recursos para
se melhorar um trabalho: apresentar boa bibliografia, manter arquivo com
anotações, utilizar cartazes, vídeos, quadro-negro ou “slides”, devendo-se,
também, evitar as seguintes situações: ler longos trechos durante as palestras,
falar “humildemente” de seu despreparo, apresentar excessiva insegurança,
fixar-se em uma pessoa, organizar palestras só no papel esquecendo-se de
organizá-las na mente.

Acima de qualquer coisa, porém, devemos nos lembrar que cada um de nós é um
“embaixador da Doutrina” e devemos agir como tal, não apenas divulgando-a por
ocasião de palestras mas, sobretudo, vivenciando-a. Vamos buscar fazer bem o
nosso trabalho na área de ação que a Vida nos ofereceu e lembrar Paulo de Tarso
em sua primeira epístola aos Coríntios: “Quem tem o dom de falar, que fale. Quem
tem o dom de ouvir, que ouça. Quem tem o dom de ver, que veja”.


11- Ano Novo! Vida Nova?

Mais um ano se inicia. Época de promessas de modificações interiores. É o
viciado
de qualquer área, ainda não dominado por seu vício, que se
compromete a abandonar o vício; o rancoroso que, muitas vezes, ajoelhado
no último dia do ano, desfaz-se em lágrimas, jurando reatar os laços de amizade
com quem, por mínimas desavenças, criou gigantescas barreiras mentais; o
indiferente
que, ao rememorar seu ano, percebe quantas oportunidades de
auxiliar as pessoas deixou pelo caminho e se propõe a aproveitar todas as que
surgirem no novo ano.

São promessas que todos fazemos. Afinal, qual de nós não tem vícios? Qual de
nós não guarda rancor algum, por menor que seja? Qual de nós consegue aproveitar
todas as oportunidades que a Vida oferece, a cada instante, sem se manter
indiferente à dor alheia? Vícios, rancores, indiferenças são desvios que todos
trazemos e precisam ser corrigidos. Devemos, então, prometer? Sim, e mais que
isto, devemos nos organizar, analisar nossas dificuldades íntimas, conhecer-nos
melhor e estabelecer um plano evolutivo.

Promessas há muitas, principalmente no final do ano, mas poucas resistem ao
início de um ano novo, com seus chamados para as “coisas do mundo”. Não
precisamos, é claro, aguardar a meia-noite do dia 31 de dezembro. Cada instante
da nossa vida pode significar um Ano Novo, uma Vida Nova. Costuma-se dizer que
“hoje é o primeiro dia do resto de nossas vidas”, mas poderíamos dizer que esse
instante é o primeiro de uma seqüência infinita de instantes pela eternidade à
fora.

Marco Prisco nos fala da importância de lutarmos cada segundo para
conquistarmos, após 60 batalhas, a vitória de um minuto. A “luta interior” que
se faz tão premente, deverá ser uma constante em nossas vidas. Afinal, aqui
estamos nesta Casa de Humildade e Amor, sob a proteção de Francisco de Assis,
usufruindo desta atmosfera de Paz, usufruindo do auxílio constante de nossos
companheiros do Mundo Maior, usufruindo, usufruindo…

Estamos aqui, e como o Querido Francisco, que amparou os pobres e consolou os
doentes do corpo e da alma, receberemos muitos doentes, que trarão dores
profundas, radicadas no íntimo de seu ser, com raízes, muitas vezes, seculares.
Temos muito a oferecer. Neste Ano Novo, portanto, que nós possamos erradicar dos
nossos corações e desta Casa de Humildade e Amor, todos os vícios, todos os
rancores, e a indiferença, essa doença tão terrível que faz com que não tenhamos
“olhos de ver” como as pessoas precisam de ajuda, e assim, tenhamos Vida Nova,
lutando todos os dias do ano para a construção de um novo mundo, onde o Trabalho
amenize a dor e a Paz possa “residir” em nossas consciências.


12- Autodesobsessão ou soluções mágicas

Freqüentemente buscamos as reuniões de desobsessão como se elas pudessem
exercer algum processo mágico que solucionasse nossos problemas espirituais e
até materiais. Existem, inclusive, “viciados” que pulam de reunião em reunião,
Centro em Centro, perseguindo algo que, muito provavelmente, nem conseguiriam
reconhecer se encontrassem.

É claro que as reuniões de desobsessão são importantes como suporte em uma
fase difícil que estejamos vivendo, é obvio que devemos buscar auxílio quando a
pressão espiritual se faz forte em demasia. Agora, não podemos encarar esse
processo como a solução mágica, sem necessidade de nossa atuação. Ela será o
suporte que permitirá que a tormenta exercida tenha seus efeitos atenuados, que
o domínio exercido pelo Espírito agressor se faça mais frágil, e nós tenhamos
margem de manobra para nos reerguermos e transcendermos os estreitos limites que
ainda caracterizam a nossa atuação no mundo. E não devemos esperar que isto seja
um processo rápido. Afinal, foram décadas, séculos de erro, até chegarmos ao
ponto onde nos encontramos. Foram muitas agressões, muitas lágrimas vertidas por
nossa causa. Não serão alguns minutos de trabalho mediúnico que solucionarão
todo o problema. Manoel Philomeno de Miranda diz que a obsessão é “enfermidade
de longo curso, exigindo terapia de segura aplicação e de resultados que não se
fazem sentir apressadamente”.

O primeiro ponto que precisamos entender, então, é que o processo demandará
tempo, exigirá paciência, resignação. Verteremos lágrimas e suor, mas é
necessário que perseveremos. Não podemos nos esquecer de que as obsessões
existem porque existem dívidas a resgatar, passadas e até atuais. O erro está em
acreditar que as reuniões poderão solucionar nossos problemas seculares sem
qualquer esforço de nossa parte. Acreditar que basta comparecer ao Centro,
perdendo a novela ou outro programa “interessante”, assistir a uma palestra
“chata” ou mesmo participar de uma reunião, ler bons livros, conversar sobre
temas saudáveis quando dentro da Casa Espírita e depois voltar ao mundo do mesmo
jeito, com os mesmos defeitos e vícios, e ter nossos problemas resolvidos é, no
mínimo, muita “ingenuidade” de nossa parte.

Mas o que é obsessão afinal? Kardec a define como o “domínio que alguns
Espíritos logram exercer sobre outros”. E complementa falando das sensações
desagradáveis das quais a pessoa anseia por se libertar. São as idéias
torturantes que teimam em se fixar, é a vontade dominada por outra vontade, são
as inquietações crescentes na nossa intimidade mental, as angústias, as
depressões… O grau destas obsessões varia de pessoa a pessoa, a ponto de
algumas não expressarem mais a sua própria vontade. Outros, em flagrante
conflito interno, buscam a Casa Espírita. Lá encontram o benefício do passe, o
refrigério da água fluidificada que revigora seu já combalido organismo e as
reuniões de desobsessão que promovem a orientação dos agressores, amenizando a
pressão espiritual.

E então? Ficam curados? Não necessariamente, porque como já mencionamos, a
obsessão existe porque existem causas para tal. Até o presente momento, na nossa
análise, apenas se falou do tratamento dos efeitos. E as causas? Kardec
costumava dizer que não adianta espantarmos as moscas e deixarmos nossas feridas
sem tratamento. Ele lembrava que poderíamos até nos livrar daquelas moscas mas,
certamente, outras seriam atraídas pela ferida.

Diante disso tudo, o que fazer? A solução já foi apresentada por Jesus há
dois mil anos e diz respeito à Reforma Moral. Tentaremos traçar agora algumas
atitudes que devemos tomar para nos livrarmos do assédio daqueles que ainda não
compreenderam os objetivos maiores da Vida e insistem em agredir, prejudicar,
destruir, e que, com isso, sem se dar conta, também sofrem terrivelmente.
Chamaremos este conjunto de atitudes de autodesobsessão. Ao primeiro ponto
chamaremos O Valor da Prece, buscando dimensionar a sua importância em nossas
vidas, e ao segundo, A Terapia da Caridade.

O VALOR DA PRECE

Não conseguimos avaliar a importância da prece em nossas vidas. Quando
estamos orando, na verdade estamos buscando sintonizar com os planos mais
elevados da Vida, estamos, mesmo que momentaneamente, nos desprendendo das
vibrações pesadas do mundo que nos envolve e alçando vôos na busca de amigos que
vivem tentando chegar até nós. A prece abre caminhos e facilita a “chegada”
deles. É importante que nos lembremos sempre de sua eficácia nos momentos
difíceis que estivermos vivendo. Não podemos encarar a prece como um conjunto de
palavras endereçadas a Deus, contendo nossos pedidos e lamentações. A prece é a
expressão dos nossos sentimentos mais puros, nosso desejo de conversar com Deus
e, deste modo, não necessita que uma palavra sequer seja pronunciada. Orar é
sentir Deus perto de si, é vibrar com todos os recursos de que dispomos,
tentando alcançar, mesmo que por breves instantes, a sintonia com companheiros
amados que estão ao nosso lado e não percebemos.

Este é um aspecto muito interessante da prece. Ela não apenas alcança aqueles
que podem nos ajudar, ela nos predispõe a sermos ajudados. É muito comum nossos
amigos espirituais chegarem até nós, tentarem nos ajudar e não conseguirem
porque nós mesmos bloqueamos todos os canais que possibilitariam que o auxílio
se fizesse. Nos momentos difíceis, pedindo ajuda, e nos momentos felizes,
agradecendo a Deus, a prece será sempre nossa atitude segura, firme, adequada, e
nos oferecerá as forças necessárias (que aliás residem em nós mesmos) para
suportar nossas dores e caminharmos, conscientes de que somos filhos do mesmo
Pai, e, que, apesar de todos os erros, agressões, ódios, somos todos irmãos.
Lembremo-nos sempre, pois, da prece.

A TERAPIA DA CARIDADE

Buscamos na Casa Espírita a solução para nossos problemas, acreditando,
muitas vezes, que ela possa ser alcançada através de algum artifício externo.
Nesta busca, assistimos palestras onde se ressalta a necessidade de um trabalho
interno de renovação de modo a se atingir a desejada Paz. Aprendemos, também,
que nenhuma ação se mostra tão ampla em seus resultados quanto a da prática da
caridade.

Poder-se-ia questionar a que caridade estamos nos referindo, já que no mundo
de hoje, onde tantos buscam iludir os outros, a assistência material se torna
difícil, exigindo uma criteriosa análise de nossa parte. Estamos tratando da
Caridade no sentido global do termo. Poderíamos até dividi-la em Caridade
Material e Espiritual conforme o Evangelho segundo o Espiritismo (Cap.XIII), mas
o seu objetivo maior em nossas vidas é mostrar que somos todos irmãos, que
existem pessoas em situações piores que as nossas, e que podemos nos ajudar uns
aos outros.

A Caridade se constituirá numa verdadeira terapia a partir do momento em que
a dinamizarmos em nossas vidas, já que a forma com que olhamos o mundo se
modifica gradual, porém radicalmente. Alguns minutos conversando com uma das
mães de uma das famílias assistidas nesta Casa ou em qualquer outra, nos
mostrará como, muitas vezes, nos lamentamos por coisas sem sentido. Alguns
momentos ouvindo as estórias de pessoas que, apesar de não apresentarem
quaisquer dificuldades financeiras ou enfermidades do corpo, carregam a cruz da
enfermidade espiritual de um ser amado, nos comovem e mostram como, às vezes,
estamos próximos da felicidade e não notamos. Se olharmos este mundo de dores e
sofrimentos como imenso campo de oportunidades de trabalho, e colocarmos nossas
mãos em ação, esqueceremos nossos próprios problemas.

Talvez quem tenha definido melhor a Caridade tenha sido o apóstolo Paulo em
sua carta aos Coríntios, cap. 13, quando disse:

“Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e as dos anjos, se eu não
tivesse a Caridade, seria como o bronze que soa ou com um címbalo que tine.
Ainda que eu tivesse o dom da profecia, o conhecimento de todos os mistérios e
de toda a ciência, ainda que tivesse toda a Fé, a ponto de transportar os
montes, se não tivesse a Caridade, eu nada seria. Ainda que eu distribuísse
todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se
não tivesse a Caridade, isso nada me adiantaria. A Caridade é paciente, a
Caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se incha de orgulho.
Nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita,
não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A Caridade jamais passará.
Quanto às profecias, desaparecerão. Quanto às línguas, cessarão. Quanto à
ciência, também desaparecerá. Pois nosso conhecimento é limitado, e limitada é a
nossa profecia. Mas quando vier a perfeição, o que é limitado desaparecerá.
Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava
como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio da
criança. Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face
a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou
conhecido. Agora, portanto, permanecem Fé, Esperança, Caridade, estas três
coisas. A maior delas, porém, é a Caridade”.

VIGILÂNCIA DO PENSAMENTO

Jesus se referia aos hipócritas comparando-os a túmulos caiados de branco que
se apresentam limpos, bonitos por fora, mas carregam podridão interiormente.
Somos assim quando não buscamos vigiar os nossos pensamentos, nos preocupando
simplesmente com nossas palavras.

Nossas ações são, muitas vezes, cerceadas pela sociedade da qual fazemos
parte. Antes de tomarmos determinadas decisões, pensamos: O que as pessoas vão
pensar? O que falarão de mim? Limitamos nossas ações mas não o nosso pensamento.
Quantos, em seu desequilíbrio, deixam de atirar com um revólver em outra pessoa,
mas descarregam toda sua carga de ódio nela?

Não somos o que fazemos, nem o que falamos. Somos, realmente, o que pensamos.
Nossas ações são limitadas pelo mundo lá fora. Nossas palavras espelham o que
gostaríamos que as pessoas pensassem que somos. O nosso pensamento, no entanto,
espelha o que somos realmente.

Oscar Wilde em seu livro O Retrato de Dorian Gray, conta a estória de um
homem que possuía um quadro, o qual mostrava como ele se apresentava
intimamente. À medida que os anos iam passando, apesar do rosto permanecer jovem
(ele havia feito um pacto para manter a juventude), sua imagem refletia um homem
velho, retorcido, repulsivo até, em função do peso das maldades que ia fazendo
ao longo de sua vida. Não possuímos espelhos que nos mostrem interiormente mas
sabemos o que somos, observando o nosso pensamento.

Kardec lembra em O Livro dos Médiuns que ninguém é responsável por um pássaro
pousar em sua cabeça . A responsabilidade surge, todavia, se for permitido que
esse pássaro faça ninho sobre ela. Uma idéia que passa por nossa mente e é
rapidamente afastada não nos acarreta problemas, mas, uma idéia agasalhada no
íntimo de nossos corações, mesmo que não transformada em atos, apresentará
consequências.

Vivemos onde vive o nosso pensamento. Nossas companhias espirituais são
atraídas pelo nosso pensamento. Paulo de Tarso falava da nuvem de testemunhas
que nos acompanha. Se queremos melhorar e encontrar a solução para os nossos
problemas, devemos agir. Devemos disciplinar os nossos pensamentos, vigiando-nos
a cada instante, pois um instante de hesitação, de desatenção, e todo o esforço
vai por água abaixo. De nada adiantará assistirmos a mil palestras, recebermos
milhares de passes se não trabalharmos o nosso mundo íntimo, controlando o fluxo
dos nossos pensamentos.

É lógico que a mudança não será automática, mas, gradativamente, lograremos
êxito. Mantenhamo-nos ocupados no trabalho do Bem, que não sobrará tempo para
pensarmos no Mal. As mãos ociosas são um caminho aberto para o desequilíbrio dos
nossos pensamentos. Devemos permanecer envolvidos no trabalho de modo a
aproveitarmos todos os instantes de nossa Vida.

André Luiz diz que o Mal não merece comentários, e poderíamos adaptar a frase
dizendo: E nem merece que gastemos tempo pensando nele. Nosso tempo é escasso,
há muito o que fazer. Não podemos perder mais tempo sintonizados com o
Desequilíbrio, com a Dor, com a Ignorância.

Já sabemos da importância da oração em nossas vidas. Aliando-a à Vigilância
dos nossos pensamentos, estaremos estabelecendo um roteiro seguro para o nosso
crescimento espiritual.


13 – Como vemos Deus?

 

“Inteligência das inteligências; Causa das causas; Lei das leis; Princípio
dos princípios; Razão das razões; Consciência das consciências.” Eurípedes
Barsanulfo

 

Podemos ter uma idéia do grau de evolução de um povo observando a forma como
ele vê Deus. Povos violentos sempre tiveram deuses violentos, sanguinários. Se
recuarmos bastante no tempo, encontraremos civilizações que praticavam
sacrifícios humanos como forma de aplacar a ira de seu deus, ou para cair em
suas boas graças.

Com o passar dos séculos, a forma de enxergar Deus foi sendo modificada, e o
relacionamento com Ele, sofrendo alterações. Os sacrifícios passaram a ser
feitos com animais, depois plantas, flores, frutos e, por fim, atingiu-se o
estágio do que poderíamos chamar de sacrifícios internos. Mesmo aí, porém,
podemos observar diferentes gradações. Ainda hoje, encontramos pessoas que
buscam, através de determinados artifícios, “agradar” a Deus e, desta forma,
obter favores. É o caso, por exemplo, das promessas.

– “Se eu ganhar na loteria, construirei uma igreja”.

– “Se eu conseguir aquela herança, ajudarei os pobres”.

– “Se eu ficar curado, deixarei de fumar”.

– “Se minha filha voltar prá casa, subirei de joelhos a escadaria da igreja”.

– “Se eu achar o documento perdido, darei três pulinhos, para Deus e São
Calunguinho”.

E por aí vão os pedidos, os mais diversos, alguns até justos, outros
completamente descabidos. Neste estágio, as pessoas ainda enxergam em Deus, uma
pessoa. Talvez um velhinho de barbas brancas, com um coração muito bom e,
portanto, facilmente ludibriado por nós, bastando apenas um choro aqui, uma
desculpa ali. A imagem antropomórfica de Deus foi fundamental nos estágios
iniciais da civilização, em função da incapacidade do homem entender algo além
disso, porém, limita Deus aos padrões humanos, e Ele, sem dúvida, transcende em
muito, a esses padrões.

Com a evolução dos povos chegou o momento de se tentar mudar a forma de se
“ligar” a Deus e Jesus representa o grande marco neste sentido, ao transformar a
imagem de um deus violento, ciumento, vingativo pregada por Moisés ao povo
judeu, face ao seu estado precário de evolução moral, na de um Deus
soberanamente Justo e Bom. Imaginem a mudança que se verifica quando se passa a
chamar Deus de Pai. Imaginem a surpresa dos discípulos ao ouvirem Jesus se
dirigir ao Planos mais elevados da Vida e dizer: “Pai Nosso…”

De modo a reforçar a tese de que os povos criam seus deuses à sua imagem,
podemos extrair um trecho de Henry Thomas, do livro Vidas de Grandes Capitães da
Fé: “Moisés encontrou na solidão o seu novo Deus. Um terrível Deus do deserto.
Um Deus que galga montanhas, galopa pelos ermos e se reclina em tendas
esplendidamente coloridas. Um Deus que vela sobre o sono de seu povo, e o guia
nos combates; que golpeia sem misericórdia os inimigos, muda como o vento, não
hesita em vingar uma ofensa, e mente quando isso convém aos seus fins. No
entanto, é um Deus que não tolera a injustiça, que é generoso para com o
estrangeiro, meigo para com o órfão e bondoso para com o pobre. Um Deus, em
suma, que tem todos os defeitos e todas as virtudes do homem do deserto. É como
se Moisés tivesse olhado num espelho e reconhecido a Deus em sua própria
imagem”.

Em meados do século dezenove, com a Codificação da Doutrina Espírita por
Allan Kardec, Deus passou a ser visto de uma outra forma. Na visão espírita da
divindade, Deus é definido como a “Inteligência suprema, causa primária de todas
as coisas”. Deus não é alguém, tanto que a pergunta formulada em O Livro dos
Espíritos foi: “Que é Deus?” e não “Quem é Deus?” Todo um conjunto de
pensamentos precisa ser revisto em função deste novo conceito.

De uma página escrita por Miramez no livro Favos de Luz (psicografia de João
Nunes Maia) podemos, adicionalmente, extrair alguns trechos que podem nos ajudar
no entendimento melhor do que é Deus.

“Todas as qualidades perfeitas são atributos de Deus que, quando descobertas
pelos homens, tomam formas inferiores à vista da pureza espiritual. A Causa
Primária de todas as coisas não pensa, não medita, não se arrepende, não ri, não
chora e de nada tem necessidade. Partindo da premissa de que Ele é todo
perfeição, não pode pensar, porque isto ainda é função dos homens; não tem
necessidade de meditar, usando a razão, já que o raciocínio é usado para quem
precisa aprender alguma coisa. Ele tudo sabe e dispensa a razão. Não tem
arrependimento, por ser Onisciente e por não errar, pois é Perfeição. Não ri,
por ser dotado de qualidades superiores ao bem-estar humano; não chora, por ser
o Equilíbrio de todas as emoções”.

Devemos ver Deus, então, como nosso Pai e Criador, Causa Primária de tudo o
que existe, como o determinante da nossa existência. Devemos sentir Deus quando
olhamos as estrelas, quando sentimos o vento soprar ou a chuva cair. Devemos
perceber Deus nas pessoas quando fazem brilhar a luz que cada um traz dentro de
si. Devemos sentir Deus em nós, quando acertamos nosso passo na Vida, quando
somos úteis ao mundo, quando a semente que nos foi plantada por ocasião da nossa
criação consegue romper as grossas camadas de “terra” que ainda existem em nós,
e germinar, transformando-se em “flor e fruto.”


14 – O Natal

Caía uma chuva miúda e a rua estava quase vazia naquela noite, véspera de
Natal. Apesar do verão, um vento frio percorria as vielas, e dava um toque mais
soturno ainda à noite. João caminhava lentamente, sem se importar com as coisas
à sua volta. Parecia perdido em meio aos seus pensamentos, não se preocupando
com o vento ou com a chuva. Ouvia seus próprios passos na água, ritmados,
lentos. Por fim parou. Nada de diferente ao seu redor, a não ser algumas caixas
num beco mais a frente. Estudou o local, e, após alguns instantes dirigiu-se até
o beco. Depositou algo no chão e saiu apressado. Imediatamente surgiu um homem
mal vestido, sujo, com feridas nas pernas, que pegou o pacote, abriu-o
rapidamente e, recostando-se numas caixas, começou a comer.

Em seu caminho de volta, João começou a rememorar cenas do final do ano
anterior, quando diante de um homem alto que, vestindo um terno claro,
gargalhava, tendo na mão um copo de cerveja, durante as comemorações de Natal
com um grupo de colegas de importante instituição que operava na Bolsa de
Valores do Rio de Janeiro. Os olhos faiscantes inspiravam receio a João apesar
da amizade existente entre ele e o homem que se chamava Paulo, e presidia a
empresa.

Lembrou-se das inúmeras ocasiões onde Paulo havia tomado decisões que
envolviam milhões de reais, e, em seguida, do seu envolvimento com drogas,
mulheres, da destruição do seu lar, da perda dos bens materiais e, por fim, da
sua completa degradação física e moral. E tudo em apenas um ano. Paulo não era
mais nem a sombra do homem que surgia em sua mente.

Voltando seus olhos para o céu, fitou demoradamente uma estrela que teimava
em brilhar em meio às densas nuvens que recobriam a cidade já há alguns dias.
Nisso, ouve um certo alarido. Percebe a chegada de algumas pessoas que, de
maneira ágil e organizada, começam a distribuir alimentos e roupas para aqueles
que se encontravam já deitados, embaixo das marquises, em meio a uma confusão de
panos e caixas. Interessou-se, e se aproximou. Após alguns instantes de
observação, parecendo um sonâmbulo, foi notado por uma senhora que parecia
coordenar o trabalho. Ela se dirigiu a ele, e começaram a conversar. Sem saber
como, nem porque, logo se entrosou no grupo e ao se despedirem, conservou uma
vaga saudade… No caminho até o carro, rebuscou nos bolsos uma mensagem que lhe
havia sido entregue, e só então leu com cuidado o nome da Instituição que os
reunia: Grupo Espírita Francisco de Assis. Conhecia a rua, era até perto de onde
morava. Imediatamente, em sua mente, voltou a imagem do amigo que agora estava
nas ruas. Decidiu-se, na semana seguinte iria até o Grupo.

Antes do horário marcado para o início dos trabalhos, João estava lá.
Conversou, assistiu, emocionado, à palestra, e no fim, antes de se despedir,
tomou coragem e contou o caso do amigo. Obsessão: este foi o diagnóstico. Ouviu
algumas explicações sem entender completamente, mas percebeu que estava no
caminho da resposta. Poderia salvar o amigo? Ainda não sabia!

Passou o tempo, e, com ele João compreendeu o que havia acontecido, as causas
da queda do amigo, os erros que o levaram à completa subjugação espiritual.
Começou a trabalhar na Instituição, ajudava na distribuição de alimentos aos que
viviam nas ruas, auxiliava nas tarefas de desobsessão. Sabia que agora estava no
caminho certo e não poderia se descuidar, para não correr o risco de cair,
também, nas malhas da obsessão. A todo instante lembrava-se do amigo Paulo que,
inadvertidamente, se deixou arrastar pelas coisas do mundo.

Após alguns meses, conseguiu que Paulo fosse levado ao albergue mantido pela
Casa, recebesse atendimento médico, psicológico e, sobretudo, espiritual. O
amigo, mais magro, não lembrava o outrora arrogante Paulo, porém, os tratamentos
recebidos já se faziam sentir nos olhos, onde uma expressão inteligente começava
a se mostrar. João lembrou-se do Natal do penúltimo ano, das festas, quando
ambos se encontravam envolvidos com bebidas e mulheres. As imagens foram sendo
substituídas pela do Natal anterior, onde enfim havia se sentido útil,
solidário. Pensou, então, nos Natais futuros, em que, talvez, eles pudessem
estar novamente juntos numa festa diferente, uma festa espiritual.


15 – Uma estória de Carnaval

Terça-feira de Carnaval. Júlio Silveira acordou um pouco indisposto e
preocupado. Pensou: O que teria feito na noite anterior quando se desprendeu do
corpo durante o sono? Vinha já há alguns anos trabalhando numa Casa Espírita
próximo a sua residência e conhecia os desprendimentos noturnos do Espírito.
Sabia que cada um segue em direção aos locais em que encontrará suas afinidades.
Não era perfeito, é claro, mas estava em processo de melhoria, tentando dominar
suas más tendências e colocar em prática suas virtudes.

Passou a manhã um tanto cabisbaixo e à tarde, dirigiu-se ao Grupo para a
reunião habitualmente realizada durante o Carnaval. Em meio a prece de abertura,
buscou conversar mentalmente com seu Guia Espiritual buscando entender o por quê
daquele abatimento. Sentiu-se envolvido por um suave brisa e acalmou-se.
Interpretou como a presença do amigo espiritual e asserenou. Os trabalhos
transcorreram tranqüilamente, num ambiente fraterno. Poucos encarnados
presentes, porém imbuídos de um desejo sincero de colaborar no envio de
vibrações harmônicas para um mundo que se encontrava em grave crise moral,
agravada ainda mais pelas dissipações do período carnavalesco.

Despediu-se dos amigos e dirigiu-se calmamente para casa. A noite se
aproximava e um vento fresco anunciava uma tempestade que já se desenhava no
horizonte. Chegou em casa, alimentou-se frugalmente, pegou o livro Trilhas da
Libertação que havia recém adquirido e começou a ler. Após alguns minutos,
sentiu-se envolvido pela mesma sensação do início da reunião na Instituição.

Júlio sentiu-se, imediatamente, na Casa Espírita. Ela, porém, se encontrava
cheia de gente. Uns poucos encarnados davam lugar agora a um número incontável
de trabalhadores espirituais. Uma movimentação intensa, embora extremamente
ordeira, se fazia presente nas diversas dependências da Casa, que era muito
maior do que ele estava habituado a percorrer. Aproximou-se dele um homem, que
ele achava conhecer, mas que não conseguia associar ao nome, que se apresentou
como Sérgio, dizendo trabalhar no Setor de Segurança. A simpatia pessoal do
companheiro não possibilitava qualquer dúvida e Júlio foi logo atraído pelas
informações que lhe eram passadas:

– Nossa Casa está em meio a vibrações muito grosseiras, derivada do
pensamento desarmonizado da humanidade. Podemos dizer que estamos em meio a uma
zona umbralina, tornando-se, portanto, fundamental a proteção adequada. Como
você conhece, funcionam nas nossas instalações um número enorme de atividades.
Temos assistência a recém desencarnados, amparo a Espíritos envolvidos em
obsessões, loucos, doentes, dependências para pequenas cirurgias,
pronto-socorro, e tantas outras atividades que poderemos conversar numa outra
ocasião. Hoje, eu gostaria de te mostrar como está nosso sistema de proteção em
função do aumento da perturbação ambiente provocada pelo desequilíbrio reinante
deste período carnavalesco.

Dirigiram-se até um compartimento que Júlio identificou como sendo um
elevador. Subiram muitos andares, o que o sobressaltou, já que a Instituição no
Plano Físico só tinha três andares. Chegaram no andar superior, que apresentava
uma abóboda de um material que parecia vidro, onde funcionava um estacionamento.
Deslumbrou-se diante do número e variedade de veículos. Acompanhou o seu amigo
até uma pequena nave transparente com quatro lugares e logo percebeu a subida do
aparelho sem qualquer ruído. Sabia que era noite, mas a luminosidade era intensa
como a de um dia de sol. Subiu muito, podia perceber os prédios lá em baixo, e
depois eles se transformaram em simples pontos.

Júlio estava deslumbrado diante da beleza à sua volta. Não imaginava que a
Casa que freqüentava apresentasse uma atividade tão intensa, que envolvesse
tanta gente. Pensou naqueles que freqüentavam a Casa sem maiores compromissos e
entristeceu. Sérgio trouxe-o de volta a realidade dizendo:

– Vamos agora sair do raio de proteção da Casa. Como você pode perceber este
cone de luz que vem dos Planos mais Elevados do nosso planeta envolve toda a
Casa. O aparelho vai descer até a rua em frente ao Centro, mas não tocará no
solo.

Subitamente, toda a luz desapareceu. Percebia-se uma estrada, se é que aquele
caminho sinuoso pudesse ser qualificado como tal, de barro, árvores em volta. A
noite envolvia a tudo com seu manto silencioso, até que começou-se a ouvir
gritos. A nave tornou-se mais opaca, e após alguns instantes estava em frente ao
Centro. O espetáculo era aterrador. Muitas pessoas na rua, brigas, agressões
diversas, verbais e físicas. Grupos entravam em conflito com freqüência. O
portão principal da Casa, porém, permanecia incólume, assim como seus muros. Uma
proteção magnética impedia a aproximação de qualquer um que não fosse
autorizado. Freqüentemente apupos eram ouvidos. Eram cenas realmente
deprimentes.

Sérgio pediu que Júlio se concentrasse porque iria se aproximar de um
determinado grupo, que não os perceberia mas que seria importante que ele
observasse as expressões destas pessoas. Júlio sentiu-se tonto diante do quadro.
Diante dele, em meio àquela balbúrdia, percebia, no mesmo envolvimento, algumas
das pessoas que com ele participavam dos trabalhos da Casa. Eram cenas
repulsivas, onde ele via companheiros de ideal, pelo menos ele antes achava
assim, enroscados com seres de aparência repugnante. O contraste era assustador.
Do lado de dentro o trabalho fervilhava e alguns encarnados, desprendidos do
corpo por ocasião do sono físico, participavam ativamente. Do lado de fora o
desequilíbrio imperava e outros encarnados, também desprendidos parcialmente do
corpo, se mostravam completamente integrados à desordem reinante. Júlio via com
os próprios olhos que de nada adianta freqüentar a Casa Espírita, até participar
das atividades, se não nos esforçarmos para dominar as más tendências e promover
a reforma íntima. Como se iludem aqueles que acreditam poder ludibriar a Vida.

Sérgio o trouxe de volta dos seus pensamentos, alertando-o que o veículo
estava prestes a voltar para a Instituição. Estava tão atônito que não conseguiu
sequer contar o número de andares da Casa no Plano Espiritual. Eram andares e
mais andares, talvez dez, ou doze, não conseguiu recordar depois. Percorreu
ainda outros departamentos, mas sentia-se meio distante, distraído. Na verdade,
estava estarrecido.

Alguém se aproximou e ele despertou. Ainda um tanto sonolento, percebeu que
se encontrava no sofá de casa, o livro ainda em suas mãos. Levantou os olhos e
viu que um homem, com semblante tranqüilo, o observava. Ele pareceu sorrir por
um momento, e depois disse:

– Meu caro Júlio, você apenas estava relembrando a atividade que
desenvolvemos na noite passada. Não era nossa intenção que você ficasse tão
amuado. O seu despertar, hoje pela manhã, foi envolto em nuvens de preocupação
sem sentido. Por isso decidimos conversar contigo. Cada um constrói o mundo que
deseja. Continua o teu trabalho, semeando o bem, buscando crescer para servir
melhor. Aqueles que se envolvem nas teias da ilusão serão amparados no momento
próprio. Tranqüilize-se!

A imagem foi se desvanecendo, mas agora Júlio sentia-se sereno. Havia, enfim,
compreendido. Enxugou uma lágrima que teimava em cair, abriu novamente o livro e
recomeçou sua leitura.


16 – Após o Carnaval

“Examina se a tua alegria de hoje será, também, tua alegria
amanhã” André Luiz

Mais um Carnaval se foi. Inúmeros momentos de insânia e desespero, onde
tantos enveredaram por caminhos tortuosos que só conduzem à Dor, encontram-se
registrados nos corações aflitos de mães, pais, filhos, amigos. Quatro dias de
desequilíbrio, mas com conseqüências que se arrastarão por anos a fio. Talvez
esta encarnação não seja suficiente para restaurar a destruição causada neste
período de “festas”, no nosso ainda frágil mundo íntimo.

A chuva incessante destes dias, recurso balsâmico presenteado pela Natureza
de modo a amenizar a atmosfera psíquica carregada de vibrações de baixo teor,
parece representar a Vida chorando as oportunidades perdidas por aqueles que se
deixaram envolver pelo chamado do “carne”, na “festa” de Momo. O velho argumento
de que “a carne é fraca” é repetido por inúmeras bocas, tentando explicar o
inexplicável. A carne não é fraca, ela não pensa ou decide coisa alguma. Não é
ela que determina nossas atitudes. O Espírito, sim, é imperfeito e se deixa
arrastar por suas más tendências, por suas paixões.

Observando, hoje, as estatísticas nos jornais, verificamos inúmeros mortos e
feridos em acidentes de trânsito onde motoristas bêbados ou drogados se
digladiavam como alucinados, assassinatos e suicídios, desequilíbrio de toda
ordem estampados nas primeiras páginas dos jornais. Foi uma verdadeira
devastação física e moral. Foi uma guerra. Todo Carnaval é uma guerra psíquica
onde tantos, no mundo espiritual, aproveitam para instaurar processos obsessivos
que poderão se arrastar por muito tempo, à partir de brechas abertas por
“apenas” alguns dias de folia.

O Centro Espírita neste período funciona incessantemente, como um hospital,
atendendo a inúmeros desencarnados e encarnados desprendidos do corpo físico por
ocasião do sono. A assistência do Bem é ininterrupta, com o fim de amenizar o
desequilíbrio reinante. Muita gente busca auxiliar, e são muitos os
necessitados.

Mais um Carnaval se foi. Um rastro de sofrimento foi deixado, mas o Bem
triunfa sempre, e a Luz brilhará no caminho de todos. Em alguns casos, logo,
noutros a Irmã Dor cumprirá o seu papel e remeterá todos os transviados de volta
à estrada da evolução.

Mais um Carnaval se foi, mas outros virão, e nós precisamos estar preparados
para suportar essas pesadas vibrações e oferecer ao Mundo, vibrações de Paz.
Precisamos “arregaçar as mangas” e auxiliar na construção de um Mundo Novo,
orientando e amparando, libertando as pessoas da ilusão de Momo, do falso
brilho, pelo menos aquelas que durante o ano buscam o refúgio na Casa Espírita
mas se comprazem, ainda, em viver os carnavais da vida, deixando-se dominar
pelos vícios e paixões que somente nos conduzem à Dor.