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O Natal do Apóstolo

Quando Simão Pedro foi arrancado aos grilhões do cárcere para o derradeiro
sacrifício, sentia o coração varado de angústia, conquanto mostrasse o passo
firme.

O velho apóstolo, que transpusera os oitenta de idade, levantava a cabeça
branca, destacando-se na turba à maneira de um pai atormentado por filhos
inconscientes.

Irmãos do Evangelhos ladeavam-no, tristes, escondendo o próprio desespero,
diante da serenidade com que ele, encanecido em duras experiências, acomodava ao
martírio.

Mulheres e crianças emaranhavam-se, cortejo a dentro, para beijar-lhe as
mãos. Transeuntes, ainda mesmo adversos ao Cristianismo nascente, fitavam-no,
respeitosos, qual se vissem um soberano humilhado e pobremente vestido, a
caminho de inesperado triunfo… E até soldados da escolta, recordando vários
companheiros de Simão transfigurara, ao curar-lhes os parentes enfermos,
abeiravam-se dele com veneração e carinho…

Apenas um dos pretorianos, Sertório Aniceto, destacado elemento na expedição,
não poupava o sarcasmo.

Desejando quebrar a atmosfera de reverência e de êxtase que se fazia,
desdobrava impropérios:

– Para diante, velho impudente! Judeu sujo! Lixo humano, que envergonharia os
postes da arena!…

E mais à frente:

-Não abuse da crendice do povo! Ladrão imundo, chegou seu fim!…

Pedro, entretanto, contemplava o céu escaldante da tarde orava em silêncio…

Sentia-se, agora, fatigado e incapaz! Compreendia que a Boa Nova exigia
servidores robustos e rogava ao Cristo enviasse obreiros novos e valorosos para
a vinha do mundo… Mas não era só isso… No imo do coração, ardia-lhe a
saudade do Mestre e ansiava retomar-lhe a companhia para sempre…

Escalando a colina, via não longe o Campo de Marte, assinalado pelo monumento
de Augusto, as cintilações do Tibre espreguiçando ao sol, o casario imenso, as
termas e os jardins; no entanto, regressava pela imaginação à Galileia distante,
buscando Jesus em pensamento…

Revia o lago de Genesaré, em seus dias mais belos, e as multidões simples e
generosas com que o Senhor repartia o pão e a verdade, o consolo e a
esperança…

Por estranhos mecanismos da memória, respirava, de novo, o perfume das rosas
de Betsaida, das romãzeiras de Magdala e dos pequenos vinhedos de Cafarnaum…

Apesar do calor reinante, rememorava a pesca e supunha-se envolvido pelo
sopro da brisa, quando a barca sobrestava as ondas calmas.

Reconstituía, enlevado as pregações do Divino Amigo e parecia-lhe jornadear
de retorno à família das crianças e dos enfermos, das mães sofredoras e dos
velhinhos que ele próprio lhe entregara ao coração…

Atingido o local do suplício, confiou-se automaticamente aos soldados que o
desnudaram, e, como se estivesse hipnotizado pela idéia do reencontro,
sofregamente aguardado, quase nada percebeu dos martelos, rudemente manobrados,
que lhe apresavam pés e mãos ao lenho que se lhe erguia de improviso…

Em derredor, escutava os protestos velados das centenas de espectadores da
lamentável exibição, de mistura, de mistura com as preces dos companheiros
agoniados… Detido, porém, na ânsia do repouso, Pedro não via que o tempo se
escoava, sem que lhe desfechassem qualquer golpe…

Aqui e além, grupos em oração e lágrimas salientavam-se de mãos postas;
contudo, a morte tardava… Aniceto, entretanto, não o perdia de vista, e,
reparando que o crepúsculo baixava, atirou-lhe pontiagudo calhau à cabeça e
gritou:

-Morre, bruxo!

O apóstolo observou que o sangue esguichava, mas, sem qualquer reação,
rendeu-se a invencível torpor, qual se fosse repentinamente anestesiado por
brando sono.

Semelhante impressão, contudo, perdurou por momentos. O ancião, após
desalgemar-se do corpo, identificou-se espiritualmente, livre e eufórico, ao pé
dos próprios despojos, e, alheio à algazarra em torno, contemplou o firmamento,
onde os astros se inflamavam, como se dedos invisíveis acendessem lumes
deslumbrantes para uma festa no céu…

Espantado, observou que um homem descia do alto, como que materializado pela
fulguração das estrelas, e, decorridos alguns instantes de assombro, viu Jesus a
dois passos, a endereçar-lhe o inolvidável sorriso.

– Mestre! – exclamou, inclinando-se para beijar o chão que ele pisava. O
Messias redivivo tomou-os nos braços e partiu, conchegando-o ao coração, qual se
transportasse frágil criança.

Por várias semanas restaurou-se Pedro na estância de luz que o Cristo lhe
reservara.

Junto dele, visitou paragens de inexprimível beleza, recolheu lições
preciosas, presenciou espetáculos soberbos da grandeza cósmica e abraçou
afeições inesquecíveis…

Quando mais integrado se reconhecia no Plano Superior, eis que o Celeste
Companheiro lhe anuncia nova separação. Que o discípulo descansasse quanto
quisesse, elevando-se às excelsas regiões… Ele, porém, devia ausentar-se…

-Senhor, aonde vais? – indagou o apóstolo, penosamente surpreendido.

E Jesus, indicando-lhe escuro recanto da vastidão, em que se adivinhava a
residência planetária dos homens, informou sereno:

-Pedro, enquanto houver um gemido na Terra, não me será lícito repousar…

-Então, Senhor, eu também…

E, como outrora, demandaram juntos, atravessaram Roma, parando, por fim, em
espaçoso cemitério da Via Ápia, mergulhado na sombra noturna…

A multidão cantava, glorificando o Senhor…

Não obstante o Natal estivesse na lembrança de poucos, rememorava-se, ali,
diante da imensidão constelada, a melodia dos mensageiros angélicos.

Simão, fremindo de emotividade, começou a chorar de alegria. Anelava ser bom,
aspirava a ser irmão da Humanidade, queria auxiliar a construção do Reino de
Deus e homenagear a manjedoura de Belém, ofertando algo de si mesmo, em louvor
do Evangelho…

Nesse ínterim, aproximou-se Jesus e disse-lhe ao ouvido:

-Pedro, alguém de chama…

O apóstolo voltou-se e, admirado, enxergou na pequena comunidade um homem
triste, carregando nos braços um pequenino agonizante… Era Aniceto, a
rogar-lhe, mentalmente, se lhe compadecesse do filhinho que a febre devorava.
Qual se lhe registrasse a presença, expunha-lhe os remorsos que amargava e
pedia-lhe perdão…

O antigo pescador não hesitou. Depois de oscular-lhe a fronte suarenta,
afagou a criança atribulada, impondo-lhe as mãos, e, ali mesmo, magneticamente
tocado por forças renovadoras e intangíveis, o menino despertou, lúcido e
refeito, enlaçando-se ao pai, à feição da ave assustada que torna à segurança do
ninho.

Aniceto, no íntimo, compreendeu o socorro e a bênção que recebia e, renovado,
começou a cantar em lágrimas de júbilo: “Glória a Deus nas alturas, paz na Terra
e boa vontade para com os homens!…”

Para o rude legionário de César começava nova vida e para Simão Pedro o
serviço continuou…

(Pelo espírito Irmão X, psicografado por Fancisco Cândido Xavier, publicado
em Antologia Mediúnica do Natal)