Em meio a tantas “novidades” inseridas no Movimento Espírita em relação à doutrina codificada por Allan Kardec a partir da metade do século XIX, faz-se mister voltar às origens e perguntar a quem é de direito o que se entende por espiritismo.
Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, na introdução de O Livro dos Espíritos, o livro que dá início a uma série de outros que consubstanciam essa doutrina, diz que:
“A Doutrina Espírita ou Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível”. (KARDEC, 2017)
Kardec destaca também que a Doutrina Espírita, por trazer uma ordem de coisas novas e grandes, deve ser estudada por homens sérios, perseverantes e livres de prevenções com sincera vontade de se chegar a um resultado de pesquisa. Estudo esse que exige continuidade, regularidade e seriedade, pois trata-se de uma ciência.
Ele enfatiza ainda que a doutrina dos Espíritos não é uma concepção humana, porque foi ditada pelas próprias inteligências que se manifestaram e trouxeram um pensamento que, em seu conjunto, apresenta uma nova forma de se perceber a vida, aqui e no além. “A verdadeira Doutrina Espírita está no ensino que os Espíritos deram”. (KARDEC, 2017, p.51).
O Espiritismo vem levantar o véu da matéria para que se possa ver o transcendental de forma lógica e fora de dogmas religiosos inquestionáveis. O Livro dos Espíritos, por exemplo, traz as explicações necessárias nesse sentido, provocando novos e permanentes estudos. Trata-se de um guia para aqueles que desejam esclarecer-se, encontrando um fim grande e sublime do progresso individual e social.
Kardec também apresenta o Espiritismo como o maior antagonista do materialismo e alerta que é por meio do Espiritismo que a humanidade deve entrar numa nova fase, a do progresso moral que lhe é consequência inevitável.
Sendo assim, ele entende que o Espiritismo tem como consequência tornar o homem melhor e mais feliz pela prática da mais pura moral evangélica. Com essa assertiva o autor fundamenta o alicerce desta doutrina nas bases da religião, apoiando sua confiança em Deus e convidando os homens à fraternidade, à felicidade e à esperança, por meio de explicações racionais.
Kardec elucida que a força do Espiritismo não vem da prática das manifestações mediúnicas e sim da sua filosofia, na razão e no bom senso.
O Espiritismo como ciência reúne um corpo de doutrina, com explicações lógicas e termos próprios. Tem como consequência geral desenvolver o sentimento religioso, porque a vida terrena já não terá tanto valor quando o indivíduo perscrutar as explicações lógicas do mundo invisível, ou espiritual. O Espiritismo possibilita ao homem conquistar mais coragem perante as aflições e mais moderação quanto aos desejos terrenos.
A moral do Espiritismo está de acordo com a moral de Jesus. Os Espíritos com suas vozes por todo o mundo vieram não somente confirmá-la, mas, principalmente, explicar a sua utilidade prática.
O codificador faz questão de ressaltar que os homens se coligarão pela força mesma das coisas e hão de se unir num pensamento comum: o amor de Deus e a prática do bem. Kardec enfatiza que o escopo principal da Doutrina Espírita reside no aperfeiçoamento moral do ser humano.
De uma maneira geral, em suas explicações e conclusões é possível perceber em Kardec a importância que ele apresenta à questão moral do espiritismo, quanto ao aspecto religioso, à questão lógica e racional, enquanto ciência do espírito e uma proposta filosófica de vida digna, fraterna e com vistas à evolução humana.
Não sendo um aspecto da Doutrina mais importante do que o outro, tudo o que que for proposto em nome do espiritismo deve abordar essas três vertentes: o científico, o filosófico e o religioso. Separá-los significa fragmentar um ensinamento amplo e completo e enfraquecê-lo em seus pilares, fazendo ruir não somente esse edifício planejado pela espiritualidade, como também desestruturar o Movimento Espírita, ainda não consolidado.
Na introdução da primeira Revista Espírita (1858/2003) o Espiritismo é apresentado como “uma ciência que descobre todo um mundo de mistérios, que torna patentes verdades eternas (…). É uma doutrina sublime que mostra ao homem o caminho do dever, e que abre o campo, o mais vasto, que jamais fora dado à observação do filósofo”. Não se trata, contudo, segundo Kardec, de uma ciência exata, mas sim de uma ciência filosófica.
Quanto à revelação trazida pelos Espíritos sobre o mundo espiritual através dos médiuns, Kardec (2013) reforça em A Gênese que essa se deu parcialmente, em diversos lugares e por muitos intermediários, cabendo a cada centro encontrar nos seus pares o complemento de suas informações. Sendo assim a Doutrina Espírita foi se formando pelo conjunto de todos esses ensinos parciais.
Sob a sua coordenação, Kardec pode organizar todas as informações obtidas com o objetivo de integrá-las e estabelecer uma unidade de pensamentos, apesar das diversidades das fontes. As ideias contrárias foram se dissipando, pouco a pouco, em consequência do isolamento e do esquecimento.
Kardec em nota de rodapé nesse mesmo livro avisou que alguns grupos espíritas foram formados com a intensão de provocar a cisão, apresentando princípios divergentes da Doutrina, ou por questão de amor-próprio, para não se submeterem à lei comum, pretendendo caminhar sozinhos. Esses se extinguiram ou vegetaram nas sombras.
Em seu entender, faltou a esses grupos pautarem-se na força dos elementos morais da Doutrina Espírita, que constituem a sua unidade e, ao mesmo tempo, é a defesa contra as ilusões quiméricas que têm atraído, ainda hoje, século XXI, grupos que se denominam espíritas, mas com propostas divergentes das originais.
O codificador do Espiritismo adverte que “a moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, em virtude de não haver outra melhor”. (Kardec, 2013, p.40).
À moral do Cristo o Espiritismo acrescenta o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, a compreensão da solidariedade que religa todos os seres. Antes o que era feito por dever, passa a ser feito por convicção, querendo praticar essa moral.
Allan Kardec como espírito visionário que era, chegou a alertar que o princípio da concordância das mensagens dos Espíritos é uma garantia contra as alterações que porventura algum grupo queira fazer, em proveito próprio, inserindo seitas e acomodando-o à sua maneira. Caso isso aconteça pode-se até provocar uma pequena perturbação local e momentânea, mas jamais dominar o conjunto, quer seja no presente, ou no futuro.
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, o Espírito Erasto se comunica em Paris, em 1862 e exorta os Espíritas a pregarem o Evangelho de Jesus. Pregar o desinteresse, a mansidão, a abstinência. Pede para que os bons Espíritas aniquilem o culto ao bezerro de ouro, que vem se expandindo, e hoje, infelizmente, esse “brilho” terreno tem iludido muitos irmãos e irmãs de caminhada.
Esse mesmo Espírito adverte quanto à possibilidade de se extraviar no caminho. Para não se correr esse risco, apresenta o verdadeiro espírita com sendo aquele que ensina e pratica os princípios da caridade, que distribui consolações aos aflitos, com amor. Aquele que realmente se dedica ao próximo, com abnegação e altruísmo. Aquele que não falseia o espírito da lei divina, para satisfazer sua vaidade e ambição.
Para Herculano Pires (2017) a Doutrina Espírita precisa ser compreendida como um chamado viril à dignidade humana, à consciência do homem para deveres e compromissos no plano social e no plano espiritual, conjugados com a exigência da lei superior da evolução humana.
Os grupos que se formaram após Kardec sofreram influência, ou no aspecto religioso, deixando penetrar comportamentos atávicos de outras religiões ou por um cientificismo pretensioso, com o objetivo de sobrepor-se às pesquisas kardequianas. Grupos assim só servem para fragmentar e desestruturar o Movimento Espírita, onde quer que ele aconteça, perdendo sua característica tripla de ciência, filosofia e religião.
Segundo Pires (2017) essas novidades que surgem são decorrentes de discordâncias interpretativas, marcadas por preconceitos e por precipitações. Características da leviandade do espírito humano, mais apegado à forma do que ao fundo.
Urge, nos dias de hoje, a formação de grupos de estudo sobre as obras deixadas por Allan Kardec para se compreender o espiritismo em sua base, de acordo com que os Espíritos ditaram e de onde se originou um corpo de Doutrina, um ensinamento a todos os homens encarnados e desencarnados.
A teoria já está pronta cabendo aos herdeiros de Kardec, estudá-la e, principalmente, praticá-la, oferecendo ao mundo a transformação social, anunciada a Kardec pela equipe espiritual.
REFERÊNCIA
KARDEC, A. Revista Espírita – ano 1858. Trad. Salvador Gentile. São Paulo: Mundo Maior, 2003.
___________ A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo Trad. Evandro N. Bezerra Brasília: FEB, 2013
___________ O Evangelho segundo o Espiritismo trad. J. Herculano Pires. 73. ed. São Paulo: LAKE, 2014.
___________ O Livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 82. Ed. São Paulo: LAKE, 2017.
Pires, J. H. O Centro Espírita. 5. ed. São Paulo: PAIDEIA, 2017
Autor: Carlos Gomes