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O que o futuro nos reserva

Jomar Morais

Uma das características marcantes de nossa época é a velocidade fantástica em que se produzem conhecimentos e tecnologias capazes de mudar profundamente todos setores da civilização. Na tradição judaico-cristã, e acostumamo-nos a conviver com profecias que, não raro, apontavam para um “fim de mundo” ou um dos tempos” ao mesmo tempo espetacular e catastrófico, coisa que ao longo dos séculos atemorizou tantas mentes e deu margem a tantas fantasias. Ao observarmos o cenário da Terra, neste final de milênio, no entanto, constatamos a enorme distancia a que estacionaram da realidade dos dias atuais os profetas apocalípticos ou os seus muitos intérpretes. Ficaram para trás também os exercícios de ficção da era moderna e muitas projeções apoiadas em cálculos científicos que pareciam tão seguras e infalíveis.

Sim, num mundo onde apenas 50 anos – os últimos 50 anos – acumulou-se mais conhecimentos do que em toda a trajetória do homem na Terra, anunciar o que estar por acontecer tornou-se algo cada vez mais difícil e temeroso. Grandes empresas americanas, por exemplo, gastam anualmente cerca de 200 bilhões de dólares com consultores e analistas, inclusive físicos e matemáticos convocados a obter dos computadores uma imagem, ainda que pálida do porvir. Tudo o que conseguiram, até agora, foram alguns acertos pífios e vários erros monumentais. Como o velho paradigma newtoniano-cartesiano, mecanicista, já não funciona 100%
quando aplicado aos sistemas complexos da atualidade, parece claro que o futuro deixou de ser uma simples extrapolação do passado. Apesar disso, decifrar o amanhã ou, no mínimo, preparar-se para atuar em um mundo sob o signo da mutação tornou-se detalhe fundamental tanto na área dos negócios quanto em outros campos de atividade, inclusive o da religião.

Não poderia ser diferente com o Espiritismo. Quais as possibilidades do movimento espírita em meio ao processo de globalização? O que nós, espíritas, podemos ou devemos fazer para assegurar a continuidade da divulgação doutrinária, em condições de fidelidade aos propósitos do Cristo e da Espiritualidade Superior? Como o Espiritismo pode contribuir para levedar a massa das grandes mudanças com o fermento do Evangelho, a fim de que entremos em uma era de transformação moral? São perguntas que nos fazemos, às vezes perplexos, diante dos novos desafios.

Obviamente não disponho de respostas definitivas para questões tio importantes em face da conjuntura mundial. Atrevo-me, porém, a apresentar algumas reflexões nesse sentido, para o que se faz necessário tecer, antes, rápidas considerações sobre a globalização e sua compatibilidade com o ideal evangélico e com a Doutrina dos Espíritos.

Novos paradigmas – Convencionou-se chamar de globalização ao processo econômico de ampliação de mercados, com integração produtiva e circulação global de capitais. Isso é muito pouco. A globalização abrange também a padronização de uma série de atitudes e comportamentos em escala mundial e a intensificação das relações sociais num ambiente em que acontecimentos locais são modelados e alterados por eventos globais e vice-versa.
Vários fatores contribuíram para o surgimento dessa nova situação, entre eles o desenvolvimento dos sistemas informatizados, a expansão da tecnologia de telecomunicações, as novas tecnologias de produção, a queda em 50% no custo dos transportes nos últimos 15 anos, a emergência de novos países industriais e – não se pode desconhecer a influência cultural dos Estados Unidos no resto do mundo.
A convergência de tais fatores determinantes produziu uma cena mundial surpreendente:
– Notícias dão volta em torno do planeta em segundos
– Cerca de 1 trilhão de dólares transitam diariamente entre os continentes através de transferencias eletrônicas no mercado financeiro
– Novos produtos são fabricados simultaneamente em vários países
– Em 25 anos, o comércio mundial explodiu, passando de 557 bilhões de dólares para 6 trilhões de dólares ao ano.
– O mercado assumiu papel preponderante na estruturação da vida política e social sobrepondo-se a fronteiras e aos Estados nacionais.
Uma nova ordem mundial vai-se instalando e mudanças radicais em diversas áreas:
Na Economia – desregulamentação, privatização e flexibilização de mercados, acirramento da competição, supremacia do marketing e da inovação e concentração de capitais.
Na Política – reforma da ordem jurídico-política, redução do Estado, fortalecimento das organizações não governamentais e estabelecimento progressivo de uma sociedade civil global e democrática.
Na área Social – padronização das preferencias, principalmente na classe média; concentração de renda, fim do emprego estável, valorização da capacidade de comunicar e produzir em equipe, criar prever e intuir.
Na área Cultural – interação entre o local e o global, o particular e o universal; descentralização, segmentação e pluralismo circulação mundial de idéias e objetos culturais
Na área Ambiental – visão holística do homem, introdução do conceito de desenvolvimento sustentável abordagem ambiental como uma questão global.

Evangelho e Espiritismo – A globalização é processo, é caminhada e, como tal, também abriga riscos e desvios, alguns dos quais já são bem visíveis, a merecer correção urgente. Três exemplos: a excessiva concentração de renda com algumas conseqüências sociais perversas, o tráfico internacional de drogas e a crise de valores éticos alimentada pelo culto ao consumismo como um fim em si mesmo. Não há como negar, contudo, que ela tem favorecido o desenvolvimento econômico, o saneamento ambiental, a democratização política com a ampliação e respeito aos direitos humanos e a melhoria das relações entre os povos.
A globalização, reconhecem alguns sociólogos, resulta de forças materiais e espirituais. Reverter agora a humanidade à fase de isolamento nacional afetaria o desenvolvimento de tecnologias, desorganizaria a produção e acarretaria custos econômicos, sociais e culturais bem maiores do que os dos atuais vícios do processo.
Considerada a sua irreversibilidade a esta altura dos acontecimentos, surge então a grande pergunta: a globalização e a mensagem do ,Cristo são incompatíveis?
Acho que não.
O Evangelho foi o maior movimento de que se tem notícia em direção à integração dos povos, mediante a prática da lei de amor. Aí, aliás, reside uma das grandes diferenças entre os paradigmas religiosos do Judaísmo e do Cristianismo. Os judeus reverenciavam um deus antropomórfico e nacional, que ele, era seu povo predileto e desprezava os demais. Jesus revelou-nos o Deus Pai, que ama a toda a humanidade. Marcos (16:15) nos apresenta um Jesus universal e integrador. “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura”, e recomendou o Cristo redivivo segundo os registros do evangelista.

Esse mesmo traço universalista iria a marcar 18 séculos depois a presença entre nós do Consolador prometido por Jesus. As manifestações mediúnicas que nos proporcionam a Doutrina Espírita, no século XIX, não estavam limitadas a m pequeno grupo de médiuns ou iniciados, tampouco a uma cidade ou país. Pipocaram em várias partes, com a mesma clareza e coerência de ensinamentos que levaram o codificador Allan Kardec a destacar a universalidade dos ensinamentos como uma das principais características da Terceira Revelação. Vale lembrar que o alicerce doutrinário do Espiritismo representa a síntese de conhecimentos milenares das grandes religiões, integrando dessa forma povos e crenças de diversos pontos do planeta.

A visão kardequiana da nova era, da Terra elevada ao estágio de mundo de regeneração, é a de uma humanidade irmanada, acima dos estados nacionais. e consciente de sua relação com o cosmo. Não é o planeta do bem absoluto, mas o da prevalência da ética, da transparência nas relações entre os homens. É impressionante a antevisão de Kardec, há mais de 140 anos, e com ela coincide com os novos paradigmas
da atualidade, em especial o paradigma ecológico.
Vale também lembrar que Kardec deixou claro qual o campo de contribuição do Espiritismo à construção dessa nova era, evitando transformá-lo em panacéia para males que cabe ao homem resolver com o concurso da ciência e da técnica. Em A Gênese (cap. XVIII, item 25), assevera o codificador: “O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das “questões que abrange, o Espiritismo é mais apto do que qualquer outra doutrina a secundar o movimento de regeneração”.
É bom não perdermos de vista essas guias ao considerarmos a atuação do movimento espírita no mundo globalizado.

Vantagens e riscos – Algumas condições e situações geradas pela conjuntura mundial favorecem – e
muito – a divulgação doutrinária e a expansão do movimento espírita. O maior relacionamento entre países e povos, as facilidades de comunicação e transporte e o acesso universal às tecnologias de informação é certamente o fator preponderante. Há cinqüenta anos, por exemplo, o médium e tribuno Divaldo Franco percorria roteiros empoeirados em automóveis precários, locomotivas “Maria Fumaça” e até sobre jumentos. Conseguia ir pouco além de seu Estado Natal, a Bahia. Nos últimos anos, percorreu 52 países, pregando o Espiritismo para auditórios os mais diversos e através dos meios de comunicação de massa.
Em que pese a mistura de joio e trigo, das iniciativas sérias e dos interesses comerciais nem sempre éticos, é fato que há em todo o mundo uma busca acentuada de conteúdos espirituais pelo homem moderno. perplexo e ansioso ante conhecimentos e mudanças e que não consegue processar. O abalo dos velhos paradigmas, com o questionamento das “verdades” oficiais e acadêmicas, abriu caminho para o crescimento das fontes alternativas de conhecimento, entre elas o Espiritismo, hoje respeitado em círculos nos quais até há pouco era alvo de chacota.
É óbvio que nas circunstancias atuais, a Doutrina Espírita deverá interagir com outros conhecimentos de forma mais freqüente e imprevisível, o que nos coloca diante de variáveis que constituir-se em fator de enriquecimento da Doutrina e fortalecimento do movimento espírita ou em ameaças ao saudável desempenho da tarefa que nos foi confiada pela Espiritualidade.
Estamos preparados para empreender a divulgação da Doutrina Espírita dentro de novas condições globais? Eis a questão.
Em janeiro passado lancei esta pergunta para Divaldo Franco, após um workshop do médium em Natal RN. Divaldo não dissimulou sua preocupação. Ele acha que é melhor avançar nesse caminho com cautela, cuidando antes de investir na formação de trabalhadores, capacitando-os a entender e ensinar a Doutrina. Só partir para um novo passo após consolidar o anterior, pensar na qualidade do que vamos mostrar ao mundo e como vamos mostrar. Atitudes precipitadas podem resultar em prejuízos também em escala global.
Sábias palavras que não fazem mal a ninguém, nem mesmo ao mais entusiasta empreendedor do campo da divulgação espírita. A propósito, a divulgação e a prática do Espiritismo jamais deveriam ser dissociadas da ética cristã, e por isso nos remete a velha questão : propaganda ou ou difusão? Se quisermos tocar apenas os sentidos, induzir as pessoas ao “consumo” do Espiritismo, em busca de “milagres” ou de “novidades” que lhos abrandem momentaneamente a ansiedade, então poderemos aderir ao estilo raidoso e nem sempre honesto da propaganda. Se buscamos esclarecer, despertar consciências, certos de que trabalhamos com espíritos eternos, então haveremos de persistir na difusão séria e equilibrada dos princípios doutrinários, ainda que por todos os meios modernos de comunicação e com a utilização de técnicas que facilitem a compreensão e fixação dos ensinamentos, sem banalização ou deturpações.
A própria administração do movimento espírita exige cautela quanto à adoção de novas técnicas de gerenciamento por que aqui, como em tudo quanto diz respeito ao Espiritismo, a ética do Evangelho deve dar o tom. Não há dúvida de que precisamos aperfeiçoar estruturas administrativas pesadas, arcaicas, que impedem a agilidade do movimento, mas será que tudo o que é “verdadeiro” e eficaz numa empresa vale para o movimento espírita? A empresa moderna deve ser ágil e flexível, adaptando-se constantemente às expectativas e exigências do consumidor. Tom Peters, um dos gurus empresariais da era da globalização, sugere que as corporações admitam passar por uma revolução a cada semestre. O Espiritismo deve submeter-se às expectativas e exigências das massas ou educar o homem para o progresso moral? Empresas buscam resultados, lucros, quase sempre a curto ou médio prazos. O Espiritismo trabalha na perspectiva da eternidade. Não é mesmo um desafio fácil modernizar o movimento espírita sem descaracterizar o Espiritismo.
Quanto à interação da Doutrina Espírita com outras filosofias e disciplinas científicas, o bom senso nos pede agir sem preconceitos, porém com prudência. Costumamos repetir com Allan Kardec, em A Gênese: “Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado porque se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”. É isso mesmo e não tem nada a ver o espírita mostrar-se receoso com descobertas e experiências científicas, a exemplo da ainda polemica clonagem. Mas vamos devagar com o andor.
É que ainda o bom senso de Kardec que nos avisa, em A Gênese: “O Espiritismo não estabelece como princípio senão o que se acha evidentemente demonstrado ou o que ressalta logicamente da observação. Entendendo-se com todos os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas”.
Vivemos um período de efervescência de experimentos, hipóteses e teorias, muitos dos quais são contraditados por outros estudos ainda quando são alvo da divulgação barulhenta da mídia. Que tal, então, encará-los com cautela até que o novo conhecimento esteja sedimentado e comprovado com todo o rigor da ciência?
Nesse campo temos algo a aprender com o Stanislav Grof, c pai da Psicologia Transpessoal. em sua avaliação da postura da ciência ante os fenômenos mediúnicos. Diz ele: “Até que a ciência ocidental moderna seja capaz de oferecer explicações plausíveis para todas as observações referentes a fenômeno como experiências espíritas e memórias de vidas passadas. os conceitos encontrados na literatura mística e ocultista devem ser encarados como superiores à abordagem atual da maioria dos cientistas ocidentais, que ou não conhecem fatos ou os ignoram”.
A Codificação Kardequiana continua atualizada – em que pese alguma defasagem quanto à terminologia – e até agora nenhum de se pontos basilares foi sequer arranhado por algum conhecimento produzido no nosso século. A abertura do movimento espírita para o mundo deve se processar sem complexo de inferioridade, com segurança e sem os vícios do intelectualismo esnobe, arrogante, que subestima os valores morais, com o que tentando compensar, assim, nossas limitações na área do amor, da fraternidade.
Viver Jesus é e será sempre a melhor maneira de atestar a validade da doutrina espírita em seu campo primordial de ação: o da reforma moral da humanidade. Viver a espiritualidade em oposição aos valores materialistas, tantas vezes cultivados até em nome da religião. Qualquer adaptação às mudanças conceituais e tecnológicas do mundo globalizado, a meu ver, deve considerar esse detalhe que em suma, é a essência do ideal que cultivamos e com o qual esperamos melhorar o mundo.

E-mail: extrabr@summer.com.br

(JORNAL ESPÍRITA – FEESP – Setembro 1998)

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