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Os doutores espíritas

“Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo
a carne, nem muito os poderosos, nem muito os nobres que são chamados”
– Paulo
de Tarso (I Coríntios 1:26).

É bastante conhecida a influência que as elites exercem nos diversos setores
da sociedade e, como não poderia deixar de ser, também na área da religião. Com
suas idéias de cunho humano, elas modificam o verdadeiro sentido dos textos, moldando-os
segundo as próprias conveniências. A história, como veremos, é testemunha deste
fenômeno.

No movimento espírita, de uns anos para cá, vêm se observando mudanças de práticas,
hábitos e pensamentos em torno do Espiritismo. A Doutrina do Consolador, promessa
feita por Jesus Cristo aos homens, vem sendo interpretada de forma equivocada, sem
qualquer baliza racional. Os responsáveis por esta conduta são membros das elites
que acabaram assumindo postos de comando nas federações e casas espíritas. Embora
seus pensamentos sejam relativamente úteis, quase sempre trazem o cunho das idéias
humanas. Amam as glórias sociais, os títulos e o sentar nos primeiros lugares da
festa.

A história de Epífanes – Por volta do ano 175 AC, governou a Judéia o príncipe
Antíoco Epífanes, que tinha simpatia pela filosofia grega (helenista), adepta do
politeísmo. O monarca via com bons olhos a fundação deste tipo de seita em seus
domínios, chegando mesmo a levantar a estátua de Júpiter no templo de Jerusalém.

As escrituras antigas, deixadas por Moisés, determinavam que não se deveria cultuar
deuses estranhos. Que um só deus existia, chamando-O Deus dos deuses. Epífanes,
frente às obrigações da Lei, começou a vê-la como obstáculo ao crescimento do helenismo.
Procurou resolver o problema pela forma que julgou mais simples: destruir as Escrituras
Sagradas. Com isso, iniciou acirrada perseguição a todos quanto por elas tivessem
simpatia. Mas, Deus sempre coloca ao lado do mal o remédio. Um velho sacerdote chamado
Matatias Macabeus, tomado de indignação pelas atitudes do soberano, deu início a
um levante popular destinado a proteger os escritos divinos, chamado “A Revolta
dos Macabeus”. Segundo alguns estudiosos, a palavra “macabeus” significa as iniciais
da frase hebraica “Quem há semelhante a Ti, ó Jeová, entre os deuses?”.

Considerado um fora da lei, Matatias fugiu para as montanhas e, em segredo, fundou
uma seita onde reuniu todos os que desejavam proteger a fé judaica. Tratava-se dos
Fariseus que, como diz o próprio nome, viviam “separados” dos costumes religiosos
da época. Graças a eles, os apontamentos de Moisés e dos profetas antigos foram
preservados.

A decadência dos Fariseus – Os Fariseus foram os mais encarniçados inimigos de
Jesus. Pergunta-se: como uma seita que nasceu de princípios tão elevados, transformar-se-ia,
mais tarde, no tribunal hipócrita que perseguiu, julgou e condenou o homem de Nazaré?
Voltemos à história. Dois anos depois de nascer o movimento liderado por Matatias,
o sacerdote adoeceu e desencarnou. Seus cinco filhos assumiram a direção da seita
e, a partir daí, o poder político passou a ser do interesse de todos. Julgavam que,
atuando junto ao governo, teriam maiores chances de modificar as leis estabelecidas,
corrigindo os rumos da religião. Com isso, deram partida à luta pela posse de posições
na esfera governamental.

Os Macabeus, inebriados pelo sonhos humanos e fazendo uso dos conchavos, passaram
a conviver pacificamente com os seguidores das doutrinas gregas.

Em pouco tempo, os doutores que dirigiam o Estado, principal elite da época,
começaram a influenciar na interpretação da Lei. Nasciam normas e mais normas, introduzidas
nas práticas, conhecidas mais tarde como “a tradição dos antigos”.

Os costumes eram adaptados segundo a conveniência dos doutores. Nascia o Sanedrim,
ou Sinédrio, que perseguiu e condenou ao sacrifício o homem chamado Jesus, que ousou
expor uma doutrina diferenciada da que cultuavam.

A Igreja Católica – Na história da Igreja Católica, observamos o mesmo tipo de
interferência. No princípio, sob a orientação de Paulo de Tarso, a Igreja não estava,
em momento algum, ligada aos poderes do mundo. Ao contrário, era perseguida por
eles. O cristianismo vivia os ensinamentos morais e espirituais do Mestre. As práticas
da época eram semelhantes as dos atuais centros espíritas, com a única ressalva
de que nem todos sabiam que o Espírito Santo – aquele dos “dons espirituais” -,
era almas de homens que se manifestavam.

A mediunidade era praticada e desenvolvida tendo em vista a orientação, cura
e alívio dos desesperados. A filosofia do invisível era estudada na busca do entendimento
de tudo o que se estendia além da morte. O mundo de César, porém, não deu tréguas.
Providências foram tomadas para que os poderes transitórios viessem, uma vez mais,
apossar-se dos bens de Deus.

As portas do Espírito, abertas por Jesus com seu profícuo trabalho, fecharam-se.
Iniciou-se um grave processo de distorção que culminou no papado. Pela influência
das elites e do Estado, a interpretação da mensagem divina foi novamente adaptada
aos interesses terrenos. Nascia o catolicismo.

No movimento espírita – Atualmente, vê-se no movimento espírita uma poderosa
influência das elites, que podemos considerar os “doutores” do nosso tempo. Semelhante
ao que ocorreu no passado, estas pessoas estão interpretando os ensinamentos dos
Espíritos à luz do próprio conhecimento e dos interesses pessoais. As personalidades
transitórias vêm sendo cultuadas como faziam os Fariseus dos tempos do Cristo. Alguns
jornais espíritas, editados por federações, são verdadeiros templos de vaidades,
onde se deleitam orgulhosos escritores, oradores e médiuns. A maioria dos congressos
são meros acontecimentos sociais e políticos, onde brilha o culturalismo daqueles
que dirigem o sistema.

As obrigações fundamentais da vida espírita, o esforço constante para conhecer-se,
o estudo regular da revelação e o desenvolvimento do raciocínio lógico foram substituídos
por preocupações de somenos importância. O assistencialismo tornou-se a principal
tarefa dos seguidores de Allan Kardec. Pseudo-professores e falsos líderes semearam
no terreno filosófico as sementes de doutrinas de Espíritos enganadores. TVP, Transcomunicação
Instrumental, Cromoterapia, Ufologia, Roustainguismo e outras “ciências” sem bases
morais e doutrinárias, chegaram até o movimento pelo discurso polido dos intelectuais.

As elites adoram a troca pública de amabilidades, uma espécie de doença moral
da nossa época. Paulo disse em sua segunda carta a Timóteo que nos últimos tempos
haveria criaturas amantes de si mesmas, soberbas, desobedientes à Lei. Com aparência
do bem, mas sem a eficácia dele. Entre nós, multiplicam-se esses valores. É a decadência
dos que seguem revelação espírita.

O trabalho dos centros espíritas está entregue às interpretações de cada dirigente
que, bem ou mal, tenta fazer a casa cumprir com sua tarefa. Nunca tivemos um sistema
lógico e objetivo, que pudesse formar dirigentes e trabalhadores produtivos, com
reais condições de servirem às necessidades da Seara. Um amadorismo pueril está
presente em toda a parte. A prática doutrinária brilha em letras, discursos e obras
materiais, mas em realizações espirituais e objetividade, mostra-se extremamente
pobre.

O Espírito e o mundo – Todos temos consciência que a obra do Espírito fere mortalmente
os interesses terrenos. Entre nós espíritas, houve um grave descuido do “vigiai
e orai”, ensinado pelo Mestre. O mundo agiu e nós fizemos pouco para impedi-lo.

Hoje, não é tempo para a destruição de livros, nem para a perseguição de pessoas,
mas existem métodos hipócritas pelos quais os símplices podem ser enganados. Onde
a seriedade da desobsessão? Onde a formação de médiuns sérios, capazes? Onde o Controle
Universal dos Espíritos? Onde a ascendência moral que transforma pela palavra os
que se perderam na vida? Onde está o estudo do pensamento e da história em busca
da verdade?

Falta-nos o ânimo dos cristãos primitivos, dos espíritas legitimamente kardequianos.
Não é possível continuarmos ouvindo oradores realizarem discursos ufanistas de felicidade
enquanto a humanidade agoniza; assistirmos às tolas discussões filosóficas em torno
da doutrina de Roustaing ou da supremacia da Federação Espírita Brasileira sobre
os espíritas do mundo. É chegada a hora de nós espíritas sérios pensarmos em reunir
forças em torno dos ideais de Allan Kardec, de modo a preservarmos sua mensagem.

04/06/99