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Os temas de Allan Kardec

Richard Simonetti

 

(Texto de Richard Simonetti publicado no Anuário Espírita 1974 do
Instituto de Difusão Espírita)

 

Se tratássemos de definir o comportamento do homem comum em três palavras que
exprimissem suas tendências mais fortes poderiamos falar em prazer, conforto
e riqueza.

Poucas pessoas inspiram-se em motivações mais nobres, vivendo em função de
eternidade, isto é, cuidando do aprimoramento moral, intelectual e espiritual,
com vistas à vida que segue adiante, além do túmulo e muito além das limitações
da Terra.

Por exceção marcante situaremos Allan Kardec, cujas tendências, a
evidenciarem sua elevada posição espiritual e sua condição especial de
missionário, poderiam ser resumidas na máxima que ele próprio situou como o
roteiro da ação espírita em favor de um mundo melhor: Trabalho, Solidariedade
e Tolerância,

O primeiro tema enseja considerações especiais. Neste mundo de
inversão de valores em que vivemos, uma das ilusões mais arraigadas no Homem,
causa principal de grande número de suas aflições e males, é a de confundir
felicidade com inatividade; paz de espírito com a ausência de responsabilidade.
O estudante vibra com a chegada das férias escolares; o operário aguarda
ansiosamente o fim de semana, o feriado, as férias anuais e, por extensão, a
própria aposentadoria, considerada por muitos como o estágio ideal, em que,
garantido o sustento diário, se sentem plenamente eximidos de qualquer esforço.

Por paradoxal que pareça, pessoas há que se desdobram em múltiplas
atividades, buscando alcançar no menor prazo possível uma condição financeira
que lhes possibilite a felicidade de não fazer nada.

Tão arraigada está essa idéia no espírito humano,que a própria escatologia
das religiões ortodoxas nos apresenta o Céu como uma região de beatitude, onde
as Almas eleitas se comprazem no descanso eterno.

Num Universo dinânico, onde tudo vibra em sinfonia de movimento e progresso,
desde as formas rudimentares de vida às mais altas expressões de
espiritualidade, eis o Homem, situado no mais alto estágio da evolução
biológica, querendo subverter a ordem natural, confundindo a estagnação da
indiferença com felicidade. O fato desse comportamento constituir-se numa
aberração diante do dinamismo que vibra na Criação nos permite compreender o
pôrque de sua crônica infelicidade – ele vive descompassado em relação à Vida,
como alguém a dançar fora do ritmo.

Kardec levantava-se, diariamente às 4:30 da madrugada, empenhando-se com todo
o ardor em suas atividades, desde o tempo em que exercia as funções de professor
e pedagogo. Manteve esse padrão na codificação da Doutrina Espírita, consciente
das enormes responsabilidades que pesavam sobre seus ombros, e da exigüidade de
tempo para a gigantesca tarefa que lhe competia realizar.E encontrava no
trabalho o estímulo sempre renovado para seguir adiante sua missão,
sobrepondo-se às perseguições e ataques com que o velho misoneísmo humano cerca
as idéias novas.

O segundo tema é a solidariedade. Caráter universalista, empolgado com os
problemas que envolvem o progresso e a felicidade do Homem, o Codificador cedo
concluiu que os males que afligem a Humanidade são resultantes exclusivamente do
egoísmo. A eterna preocupação com o próprio bem-estar é a grande fonte geradora
de desatinos e paixões desajustantes.

A máxima “Fora da Caridade não há Salvação”, divulgada insistentemente por
Kardec, é a bandeira da Doutrina Espírita na luta contra o egoísmo. A
solidariedade é a caridade em ação, a caridade consciente, responsável, atuante,
empreendedora …

Juridicamente os participantes de uma sociedade são solidários quando
respondem em idênticas proporções por lucros ou prejuízos que valorizem ou
onerem os bens patrimoniais. Espiritualmente, somos todos solidários diante dos
patrimônios da Vida e colhemos alegrias ou sofrimentos de conformidade com a
nossa contribuição. Os males que afetam a coletividade, em virtude de nossas
faltas ou omissões, atingem nossa economia espiritual em particular,
situando-nos em clima de desarmonia. Da mesma forma nosso esforço em favor do
bem-estar alheio, por menor que seja, renderá juros altos de alegria e paz.

A tolerância é o terceiro lema. Trata-se da arte de aceitar as pessoas como
elas são e, conseqüentemente, relevar os males que porventura venham a nos
causar. Cada criatura está numa faixa de evolução. Não podemos exigir das
pessoas mais do que podem dar. E ninguém é intrinsicamente mau. Somos todos
filhos de Deus.

É interessante destacar que em qualquer relacionamento humano as pessoas
tendem a se comportar da maneira como as vemos. Identificar pequenas virtudes é
uma forma de desenvolve-las. Estar sempre a apontar mazelas e imperfeições é
simplesmente exacerbá-las …

Sem tolerância é impossivel manter o próprio equilíbrio ou realizar um
trabalho profícuo no campo do Bem, porquanto, na medida em que nos detemos no
mal que vemos nos outros passamos a assimilá-lo.

A obra de Kardec é profundamente marcada pela tolerância, inclusive em
questões religiosas, advindo daí sua recomendação para que os espíritas não se
preocupem em fazer proselitismo. E revela seu comportamento, em face dos ataques
e critícas:

Quando me sobrevinha uma decepção ou contrariedade qualquer, eu me
elevava pelo pensamento acima da Humanidade, e me colocava antecipadamente na
região dos Espíritos; desse modo, desse ponto culminante, as misérias da vida
deslizavam sobre mim sem me atingirem. Tão habitual se me tornara esse modo de
proceder que os gritos dos maus jamais me atingiram.

Ante as responsabilidades resultantes do conhecimento da Doutrina Espírita,
que nos convida a superar a temática de vulgaridade e imediatismo que
caracteriza o comportamento humano, em larga maioria, a máxima vivida por Kardec
apresenta-se como roteiro abençoado de uma ação espírita consciente, capaz de
esclarecer e edificar os corações, com a força irresistível do exemplo.