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O Povo que Aprendeu a Descolaborar

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Enéas Canhadas

Era uma vez, há muito tempo, um país distante onde as pessoas viviam felizes. Cada pessoa ao nascer, ganhava um saquinho de qualidades. Sempre que tivesse necessidade, tirava dali uma qualidade desejada com a qual realizava coisas e podia compartilhar, cooperar, colaborar ou estabelecer parcerias de ajuda com os outros.

Em contato com a luz do sol, as qualidades ficavam aquecidas, expandiam-se causando sempre bons relacionamentos entre as pessoas e fazendo bem a quem estivesse por perto. Eram muito comuns a colaboração e as parcerias entre as pessoas. As qualidades eram gratuitas, recebidas ao nascer, os habitantes daquele país podiam dar e receber à vontade. Havia sempre o suficiente para todos.

Um dia apareceu uma bruxa que ficou indignada de ver as pessoas felizes, dando e recebendo qualidades, potenciais, enfim tantas virtudes. Segundo o seu ponto de vista, inteiramente desperdiçadas ou dadas talvez a quem não merecesse ou nem estivesse precisando. E o que era pior, logo percebeu que naquele lugar não poderia vender nenhum frasco das suas poções mágicas e nem dos seus óleos. Assim sendo, precisava montar, urgentemente, uma estratégia de marketing para dar saída aos seus “produtos”.

Colocou um letreiro muito atraente na porta de sua casa e veiculou um anúncio no jornal local. Também deu uma entrevista na rádio da cidade divulgando possuir algo muito importante para oferecer aos habitantes daquele lugar. É claro que, os seus produtos, estariam disponíveis mediante um negócio. Seria uma coisa insignificante para as pessoas tão felizes, capazes e tão cheias de qualidades daquela região. Ao primeiro habitante que entrou na sua loja explicou que, se todos continuassem dando gratuitamente as suas qualidades e colaborando com os outros de graça, os conteúdos dos saquinhos iriam se acabar e aí não haveria mais qualidades disponíveis para ninguém.

Não demorou para que o raciocínio da bruxa tomasse conta da mente das pessoas, espalhando-se pela cidade, correndo de boca em boca. Alguns habitantes do lugar tinham ouvido falar de civilizações distantes, onde os povos não possuíam tal condição de vida. Lá não se podia, simplesmente, oferecer suas qualidades sem algo equivalente como pagamento. Essas parcerias espontâneas e gratuitas, não eram comuns nem produtivas. A era da escassez estava chegando também àquele país de desavisados.

Todos passaram a economizar suas qualidades. As tarefas passaram a ser realizadas individualmente. Foi instalado o hábito de pequenos pagamentos. Algumas qualidades a mais em troca de uma colaboração prestada. As pessoas tornaram-se menos prestativas, menos colaborativas, e menos parceiras umas das outras. Ficaram econômicas, acumulando qualidades e engordando seus saquinhos. Comportamentos agiotas não demoraram a surgir.

Pessoas que alugavam ou emprestavam qualidades mediante juros. As taxas progrediram e, em breve um mercado surgiu na região.

Mas, voltemos à nossa “sábia” bruxa. As suas poções e óleos eram feitos para as mais diferentes necessidades. Havia poções para cada atitude. Os remédios tiravam o efeito de preocupações. Quando surgia a necessidade de algum trabalho em equipe, todos tomavam uma espécie de vacina ficando imunizados contra excessos de colaboração ou favores gratuitos.

As pessoas que haviam conseguido acumular mais qualidades dentro de um certo tempo, ou por que cobravam taxas de juros mais altas ou por que eram mais hábeis nos negócios, acabaram enriquecendo, passando a viver apenas de vendas e locações de suas qualidades acumuladas.

A situação econômica daquela região foi ficando cada vez mais crítica.

Praticamente, haviam desaparecido a confiança, a cooperação e a colaboração. As parcerias tornaram-se atitudes muito arriscadas. Tornou-se habitual a assessoria de um Advogado para orientar sobre as bases contratuais das relações de parceria. Economistas logo aperfeiçoaram seus conhecimentos específicos sobre aquele mercado peculiar. Terapeutas das mais diversas tendências surgiram para ajudar as pessoas a conviverem com a nova realidade. Era preciso restaurar a sinceridade e transparência nas relações entre as pessoas. Certas religiões prosperaram rapidamente. Ofereciam saquinhos de qualidades como bônus válidos na vida após a morte. Em troca, ainda nesta vida, os seguidores doavam qualidades que possuíam por terem nascido com elas.

Um velho sábio que voltou do bosque onde morava há muito tempo, ainda mantinha o hábito de dar gratuitamente suas qualidades, conselhos, potenciais e tudo o mais que possuía. Logo foi taxado de louco e simplesmente desprezado. Ele só conseguiu a simpatia das crianças. Tornou-se necessário introduzir uma matéria obrigatória nas escolas. Era preciso ensinar que as qualidades não podiam mais ser doadas, mas sim, negociadas e vendidas a preço justo. Afinal de contas, todos passaram a ter o direito de adquirir outras qualidades através do lucro do seu trabalho. As crianças passaram a aprender, desde pequenas, que qualidades são bens naturais que nascem com a gente, e não devem ser doadas ou compartilhadas, senão mediante certas leis e regras, que instituíram as negociações e a atitude do toma lá, da cá.

“Chegando, por fim, o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas onde não semeaste, e ajuntas onde não espalhaste, receoso, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondeu-lhe porém, o senhor: servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Cumpria portanto, que entregasses o meu dinheiro aos banqueiros, e eu, ao voltar, receberia com juros o que é meu. Tirai-lhe pois, o talento, e dai-o ao que tem dez. Porque a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado.” (Parábola dos Talentos, Evangelho de Mateus, cap. 25).