Percebemos que as narrativas possuem diversos fatos conflitantes entre si, deixando-nos
na convicção que tudo não passa de um ajuste dos textos para se chegar a um objetivo
pré-determinado, conforme já falávamos, desde o início. Para se ter uma idéia mais
exata sobre isso, colocaremos a passagem Mateus 27,1-26, que, para tornar a explicação
mais fácil de ser entendida, iremos dividi-la em três partes:
I) 1-2: De manhã cedo, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo
convocaram um conselho contra Jesus, para o condenarem à morte. Eles o amarraram
e o levaram, e o entregaram a Pilatos, o governador.
II) 3-10: Então Judas, o traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu
remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos,
dizendo: “Pequei, entregando à morte sangue inocente”. Eles responderam: “E o que
temos nós com isso? O problema é seu”. Judas jogou as moedas no santuário, saiu,
e foi enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: “É contra
a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue”. Então discutiram
em conselho, e as deram em troca pelo Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério
dos estrangeiros. É por isso que esse campo até hoje é chamado de “Campo de Sangue”.
Assim se cumpriu o que tinha dito o profeta Jeremias: “Eles pegaram as trinta moedas
de prata – preço com que os israelitas o avaliaram – e as deram em troca pelo Campo
do Oleiro, conforme o Senhor me ordenou”.
III) 11-26: Jesus foi posto diante do governador, e este o interrogou: “Tu
és o rei dos judeus?” Jesus declarou: “É você que está dizendo isso”. E nada respondeu
quando foi acusado pelos chefes dos sacerdotes e anciãos. Então Pilatos perguntou:
“Não estás ouvindo de quanta coisa eles te acusam?” Mas Jesus não respondeu uma
só palavra, e o governador ficou vivamente impressionado. Na festa da Páscoa, o
governador costumava soltar o prisioneiro que a multidão quisesse…”
Para o que queremos colocar não é necessário citar toda a narrativa, assim omitimos
o restante da seqüência dessa última (vv. 16-26), pois até aqui, no versículo 15,
já encontramos o suficiente para entendermos e percebermos que os versículos de
3-10 nada têm a ver com o contexto geral daquilo relatado na passagem. Inclusive,
no versículo 3 está dito que Judas viu que Jesus havia sido condenado, quando, no
desenrolar do texto, esse fato ainda não havia acontecido, que só veio acontecer
mais à frente. A quebra brusca na seqüência dessa narrativa, não deixou de ser percebida
pelo tradutor da Bíblia do Peregrino, conforme nos explica:
“O episódio da morte de Judas interrompe estranhamente o curso do relato, como
se a entrega de Jesus ao governador ultrapassasse suas previsões. Sabemos que
a figura de Judas alimentou desde cedo fantasias legendárias. Lucas dá versão
diferente (At 1,18-20). A morte violenta do perseguidor ou culpado é tema literário
conhecido (p. ex. Absalão, 2Sm 18: Antíoco Epífanes, 2Mc9; em versão poética vários
oráculos proféticos, p.ex. Is 14; Ez 28). Antes de morrer, Judas acrescenta seu
testemunho sobre a inocência de Jesus. Confessa o pecado, mas desespera do perdão…”
(pp. 2385-2386).
Isso vem confirmar todas as nossas suspeitas de que tudo foi um calculado arranjo
visando ajustar os textos às conveniências dos interessados para que eles tivessem
referências às suas idiossincrasias. E em relação ao assunto tratado, temos fortes
suspeitas que vários outros trechos foram intercalados às narrativas bíblicas, para
se amoldá-los ao propósito determinado. Podemos citar, como exemplo, Mt 26,14-16,
21-25, Mc 10,10-11; 14, 18-21, Lc 22,3-6, 21-23, para que você, caro leitor, faça
uma análise mais aprofundada.
Ficamos a pensar como se sentiu e como ainda pode estar se sentido Judas sobre
tudo quanto lhe imputaram como procedimento. O pobre coitado ainda é julgado e condenado,
anos após anos, pelos ditos “cristãos”, que, com certeza, não cumprem: “Não julgueis
os outros para não serdes julgados, porque com o julgamento com que julgardes, sereis
julgados e com a medida que medirdes sereis medidos” (Mt 7,1-2). Não bastasse
isso ainda é humilhado, malhado e, ao final, é espetacularmente “detonado”. Infelizmente
esse nos parece ser o seu destino cruel, que se perpetua anualmente nas comemorações
da Semana Santa realizadas por determinadas religiões cristãs tradicionais.
Set/2004.
Bibliografia
- Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
- Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002.
- Bíblia Sagrada – Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2001.
- Bíblia Sagrada. Aparecida, SP: Santuário,1984.
- Bíblia Sagrada. Brasília, DF: SBB, 1969.
- Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave Maria, 1989.