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Viagem no Espaço e no Tempo

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Amilcar Del Chiaro

    Último domingo de janeiro. Dia Mundial do Hanseniano. Já num novo milênio, e o mundo, o terceiro mundo, tem nas suas estatísticas uma grande quantidade de hansenianos, que, em muitos lugares, mesmo nos mais cultos do Primeiro Mundo, são chamados leprosos. Não sei se sofro alguma compulsão esquizofrênica, mas a cada ano me obrigo a recordar o terrível holocausto que foi a profilaxia da doença até poucas décadas atrás. Ficamos a pensar como pode a ciência e os governantes aceitarem a decisão de uns poucos, que determinaram a segregação, a qualquer custo, de homens, mulheres e crianças que portavam no corpo um bacilo que tinha a honra de ser bíblico. Retorno pela magia do pensamento aos mesmos sítios e caminhos já trilhados, procurando fazer a rota inversa. Vou passando pelas alamedas da saudade e revendo rostos queridos que ocuparam parte da minha vida, procurando diminuir as minhas dores, e lenir meus sofrimentos. Revejo fisionomias amigas, corpos juvenis, risos de crianças, sepulturas modestas e cruzes inúmeras no Campo Santo, cuja terra generosa acolhia os corpos mutilados, tecidos corroídos antes mesmo da morte, mas ali éramos igualados aos demais mortais do mundo. Nesta caminhada inversa chego aos primeiros anos da década de 40, na cidade de Araguari, no Triângulo Mineiro. Meu lar pobre, castigado pela ausência da mãe, que se fora, talvez portando esse mesmo vacilo cruel. Vejo meu pai cabisbaixo, ensimesmado, porque minhas irmãs, flores juvenis a despontar para a vida, foram segregadas num Asilo Colônia para leprosos. Um pouco mais de tempo, e era eu quem tomava o rumo do Asilo. As imagens são fugidias como fumaça ao vento, pois estão apenas na minha mente. O caminho inverso que terminou naquela casa pobre e triste, encontrou-a vazia, pois o tempo levou embora para outros lugares, ou para o além, os que ali habitaram. Duas grossas lágrimas dançam no parapeito das janelas dos meus olhos e escorrem por minhas faces. Sinto o gosto salgado em minha boca. Passaram-se décadas e depois de ter o corpo marcado a ferro em brasa, depois de sofrer mutilações, suportar o preconceito, a dor de novas separações, somos esquecidos por aqueles que não conheceram a nossa história, porém determinam as nossas vidas. Há inclusive aqueles que julgam que queremos privilégios, e que vivemos no passado, esquecidos que os tempos mudaram. Mas eles não sabem o que significa carregar no organismo o “Micobacteriun Leprae”, ter sofrido dores lacerantes, no corpo e na alma, ser crucificado com longos cravos, vendo o tempo martelá-los insistentemente, enterrando-os em nossas carnes, até a exaustão fechar os nossos olhos, porque o único privilégio foi ter sido temperado pela dor, que nos deu dignidade e uma alma de aço, capaz de suportar as torturas do inferno, e dali sair com dignidade. Agora, no meu delírio esquizofrênico volto a fazer o caminho para o presente. Mas, a cada curva, a cada aclive o ou declive, a cada abismo, vejo aqueles que dividiram comigo a maior das suas riquezas, suas próprias vidas.

Meus Deus, quantas carreiras promissoras foram cortadas no seu início. Quantos vencedores tiveram que descer do Pódium da vitória e devolver as medalhas e a coroa de louros, porque enfrentariam dali para a frente uma longa maratona, se resistissem. Vi crianças que mal largaram o peito das suas mães, serem fechadas nesses Asilos, e as vi morrer. Vi homens e mulheres que engoliram as próprias lágrimas e desempenharam relevantes papéis dentro desses hospitais-cárceres. Quantas vezes ouvi a palavra “coitadinho”, o que equivalia a um punhal enterrado no peito. Vi, também, pessoas se degradarem nos vícios, na prostituição, e irem perdendo tudo pelo caminho, como se as vestes morais fossem sendo rasgadas pelos espinhos que margeiam a vereda, e perderam até a vergonha, explorando em seu favor a desgraça que os acometeram.

Esbocei dois livros para contar essa história, mas eles saíram muito pálidos. Talvez algum dia alguém de talento escreva essa epopéia. Alguém digno de ganhar um Prêmio Nobel de Literatura. Hoje já me sinto alquebrado, e não sei quanto tempo mais resistirei para contar essa história. Descobri, finalmente, que só tenho talento para a dor. Meu corpo já se curva para o solo, como a prelibar o último aconchego da mãe natureza. É verdade que não somos os únicos sofredores da Terra, mas, sobreviver ao holocausto da nossa história é uma experiência estarrecedora, porém rica, muito rica. Sobretudo, confiamos em Deus. Sabemos que tudo isso não foi em vão. Não acreditamos em fatalidade ou castigo, mas sim, num crescimento constante para a luz. Olho para o céu numa noite estrelada, e abro os braços para ser crucificado no Cruzeiro do Sul, suprema glória de quem, desde os mais verdes anos da infância, carregou no ombro o madeiro infamante, e nele foi crucificado. Meu Deus, como abençôo cada passo dessa jornada! Como agradeço àqueles, que, mesmo no monturo em que todos estávamos, semearam flores de esperanças no meu coração, e plantaram em minha alma a dignidade de viver. Apesar de tudo, aceitaria passar novamente por esses mesmos caminhos, talvez com melhor aproveitamento, talvez com mais coragem.. Quando eu me for deste mundo bendito, nada deixarei, a não ser a lembrança no coração daqueles que me amam.

Quero aprender a escrever na areia as minhas mágoas e o meu rancor por aqueles que sufocam os nossos direitos, porque na areia o vento e os passantes apagarão depressa. Contudo, quero aprender a escrever na rocha de granito a minha gratidão, pelos que, quais “Cirineus” amigos, ajudaram a carregar a minha cruz até o alto do meu Gólgota.