A razão e seus limites
Essa compreensão do momento em que o Espírito da Verdade nos trouxe a
Doutrina suscita outras questões. Uma delas, que considero mais digna de
reflexão, refere-se a aspectos das antigas práticas religiosas. Se o Espiritismo
significa uma alteração profunda da compreensão que temos sobre a Razão e seus
limites, como devemos passar a encarar as práticas religiosas herdadas do tempo
em que a Fé era tão somente o campo do inexplicável e do fantástico? Como
devemos refletir sobre a missa católica, a circuncisão judaica ou os ritos
budistas?
Na verdade, poucos de nós, espíritas, admitiríamos ser totalmente insensíveis
diante das cerimônias religiosas de outras crenças, sejam elas cristãs ou não.
Qual de nós não se sente tocado ao ouvir o som harmonioso dos cânticos
gregorianos, só para citar um exemplo mais contundente? Felizmente, essa comoção
que muitas vezes sentimos diante de outros credos e mesmo diante de outros
rituais não deve causar-nos nenhum drama de consciência. É a própria Doutrina
espírita que vem em nosso socorro para esclarecer, afinal, porque o espírita,
tão mais racional que tantos outros adeptos de outras tantas religiões, não é
insensível a alguns de seus ritos.
Antes de expressar minha própria opinião nesse campo, gostaria de louvar o
texto “Ritos e Doutrina Espírita”, publicado na edição 337 do Boletim GEAE, pelo
companheiro Ademir Xavier, sobre o mesmo tema. Acerca da opinião de Ademir,
acredito que não cabe reparo algum.
Como aprendemos no Livro dos Espíritos, aplica-se à evolução da compreensão
humana, em todos os campos, à máxima de que a Natureza não dá saltos. Isso
significa que, a cada nova experiência terrena, avançamos um pouco mais nos
campos intelectual e moral, sem jamais rompermos abruptamente com passado, seja
em seus aspectos positivos – o aprendizado já acumulado – seja nos negativos –
as dívidas acumuladas com o próximo ou conosco mesmos.
Cada um de nós que hoje abraça a Doutrina Espírita, encontra-se em estágio
mais avançado de entendimento acerca da Razão e seus limites. Sabemos que Fé e
Razão são plenamente conciliáveis, até as fronteiras do nosso entendimento. Se é
assim, certamente fomos iniciados no campo da religião em vidas anteriores, no
seio de outras doutrinas, praticando seus ritos e comungando de seus dogmas e
crenças. Inescapavelmente, teremos ouvido os cantos, acendido os lumes, visitado
os alteres e respeitado os dias consagrados dessas outras crenças. Foi em meio a
seus ritos que realizamos os primeiros progressos na escola do entendimento
religioso, aprendendo os rudimentos da fé na existência de um Ser Maior e da
vida espiritual. Foi em meio aos ritos antigos que nos sentimos irmanados a
nossos companheiros de fé e de jornada evolutiva e convocados a refletir sobre a
justiça divina e a necessidade de um comportamento moral adequado.
Não é relevante o quanto essas crenças antigas, com seus rituais
verdadeiramente tidos como mágicos, estão afastados de nossa crença atual. Não
há homem adulto que, sentido-se em plena maturidade intelectual, renegue as
brincadeiras de criança, nas quais desenvolveu, quiçá, a sociabilidade, o
domínio do idioma, aprendendo moral com as fábulas e hábitos de higiene com as
histórias em quadrinho. Para aqueles que estão na infância do entendimento,
mesmo que moralmente muito avançados, como tantos expoentes de outras religiões,
é justo que se reservem as práticas mais antigas, que sob o véu do inexplicável,
trazem ensinamentos sublimes.
Não é por outro motivo que, tantas vezes, no fundo de nossas almas, nos
sentimos comovidos diante do soar de um sino ou a imagem do incenso sendo
queimado, nos templos mais diversos. Essa emoção é comparável àquela que
sentimos ao visitar, depois de décadas, o prédio já desgastado pelo tempo no
qual a professora primária nos ensinou as primeiras letras.
Em resumo, a mensagem que gostaria de deixar é essa. O Espiritismo não
comporta as práticas ritualísticas como o homem adulto não volta aos brinquedos
da infância. Nem por isso o ritual das antigas religiões deixa de nos tocar o
fundo da alma. Essas práticas merecem não apenas nosso respeito, como nossa
verdadeira gratidão pois a emoção que sentimos não nega o racionalismo que
abraçamos. Essa emoção está tão simplesmente para além da Razão e de seus
limites.
(Publicado no Boletim GEAE Número 377 de 28 de dezembro de 1999)