Perispírito: Um elemento de ligação
Quando em 1637 René Descartes apresentou ao mundo a primeira edição do seu
Discurso sobre o Método pôs uma sombra de dúvida nas realidades imutáveis que a
filosofia fideísta havia consagrado ao longo de séculos de imposição religiosa e
que a Ciência nascente haveria de revogar pela consagração da metodologia
científica. Num tempo em que a Religião tomou para si o domínio da verdade e
dispôs da Filosofia como servidora menor que justificava com rodeios lógicos as
proposições que os dogmas antecipadamente impunham, o século XVII inaugurava a
reflexão metodológica na Ciência. Descartes apresentava a dúvida pertinaz como
primeiro critério para avaliação das coisas não as aceitando até que elas se
mostrassem claras e distintas ao pensar humano. Entretanto, ao mesmo tempo que
coloca em dúvida a realidade de todas as idéias, Descartes apresenta o “Cogito
ergo sum “- Penso logo existo – como a realidade fundamental de sua
filosofia e, ao mesmo tempo, oferece ao mundo a concepção dualista de Espírito e
Matéria como as realidades fundamentais do Universo, os pilares centrais que
sustentam todos os elementos do mundo material e espiritual. Criou, dessa forma,
um sistema de idéias onde espírito e matéria representam-se como as antíteses
recíprocas da dialética existencial das coisas, uma concepção que isola os dois
elementos e os faz miraculosamente conviver sem jamais interagir.
À proposição de um método indutivo baseado nesta dicotomia entre espírito e
matéria seguiu-se uma reflexão epistemológica, erigida inicialmente por John
Locke, que propõe a matéria como a única entidade percebida pelos sentidos; e
considerando que todo o nosso conhecimento é haurido por meio desses mesmos
sentidos, somente a matéria deve existir; já que o espírito nada tem a ver com o
mundo material. Considerando ainda que não existem contatos entre espírito e
matéria – como tão bem argumentou Descartes -, resta-nos a seguinte conclusão:
só a matéria existe!
A reação a tais idéias apareceu na filosofia do bispo George Berkeley que
volta, por força de expressão, a filosofia contra o filósofo e argumenta que
exatamente pelas razões apresentadas por Locke, o inexistente é a matéria – e
não o espírito – já que ela só existe como percepção da mente humana. Não
existisse o Espírito para coordenar as informações que os sentidos fornecem
então não haveria matéria porque nada haveria para percebê-la. Contudo, o bispo
George Berkeley não esperou muito pela resposta. O escocês David Hume analisando
ainda o processo de conhecimento e compreensão humana argumentou com a mesma
força de Berkeley que do mesmo modo que percebemos a matéria, inexistente para o
bispo, percebemos a mente como uma idéia que não têm em si mesma substância e
por trás da nossa percepção da mente não identificamos nenhuma substância para o
espírito, que julgamos existir.
Em resumo, Hume destruiu a alma que estaria na mente com mesma violência com
que Berkeley destruiu a matéria, que não estaria no mundo. Quando Augusto Comte
apresentou ao mundo a teoria dos três estados, na qual lançava o espírito para
uma concepção primitiva da história do pensamento, a Ciência optou pelas
conclusões do materialismo que pareciam promissoras. O Positivismo de Comte
parecia oferecer alternativas para o pensar científico que ficou impregnado de
seus fundamentos, conforme o apresentamos no trabalho “A revolução do Espírito –
Perspectivas da Ciência Espírita.” Mas o quadro filosófico era desesperador. O
espírito não passava de uma abstração absolutamente destituída de substância – o
que equivale a dizer: inexistente para o pensamento da época. Sem contato com a
matéria e sem realidade própria, não havia razão para a concepção do espírito
como um elemento do universo. O materialismo parecia uma imposição lógica. A
Ciência impregnava-se de idéias e métodos mecanicistas que apontavam para a
matéria como o elemento existente e para o espírito como o mito a ser
esquecido…
É nesse contexto que Allan Kardec vem propor, como resultado de pesquisas com
o fenômeno mediúnico, a existência do perispírito, um elemento de substância
intermediária entre o espírito e a matéria, cuja existência e propriedades
seriam responsáveis pela elucidação de inúmeros fenômenos até então
inexplicáveis. A própria questão da substância do espírito seria retomada pela
proposição de um elemento intermediário considerando-se os limites de contato
entre o espírito, a matéria e o perispírito. Kardec retoma uma discussão
filosoficamente colocada por Descartes e a posiciona num contexto mais global
qual seja o da Ciência, da Religião e da própria Filosofia. Seus métodos eram
tão novos como novo era o problema. Embora a questão estivesse colocada no campo
do espiritualismo, Kardec a vem discutir no contexto da Ciência porque ela era
de fundamental importância para a explicação dos fenômenos mediúnicos e para
retirar o espírito do campo do maravilhoso e do sobrenatural. Na abordagem do
problema, o Codificador do Espiritismo optou por trabalhar em cima dos fatos.
Erigiu uma concepção do perispírito que para muitos parece simplista demais. Os
motivos que o levaram a esta posição foram de caráter metodológico: o
Espiritismo não poderia trabalhar com suposição num campo tão novo. Para ele a
questão do perispírito foi colocada de maneira clara: é o elemento semi-material
que serve de intermediário entre o espírito e a matéria. Kardec trata-o como
fluido assim como a Física tratava a eletricidade. Para a posteridade ficaria a
incumbência de trazer mais elementos e enriquecer os métodos de modo a detalhar
– e aprofundar – os conhecimentos sobre a natureza do perispírito.
O campo permanece aberto às conjecturas. O Espiritismo apresenta seu ponto de
vista com os respectivos argumentos. O conhecimento exige a consideração desses
argumentos e deste novo elemento – o perispírito.
Natal, 27 de agosto de 1996
André Henrique