Reencarnação e Desigualdades
Como política preventiva, que significa simplesmente atacar o mal ainda na
raiz, antes que seja tarde, o programa espírita sempre se esforçou no trabalho
de assistência e educação, visando à modificação do ambiente moral e social, até
mesmo nos recantos mais sórdidos. Prevenir, portanto, para que a pobreza
aviltada não chegue a uma convulsão incontida.
Se é óbvio que não podemos tratar somente do corpo, mas também,
principalmente, do espírito, é óbvio ao mesmo tempo que não devemos relaxar os
deveres em relação às necessidades do corpo. Se o espírito precisa de
instrumento humano para a comunicação de seus dons, logicamente um corpo doente,
abatido pela deficiência alimentar ou depauperado pelo esgotamento, não pode ser
bom veículo por causa do desmantelo orgânico.
E já se sabe que há repercussão recíproca entre o orgânico e o psíquico. Mas
a Doutrina adverte, a certa altura, que às vezes uma pessoa pode nascer em
“posição difícil e embaraçosa, precisamente para ser obrigada a procurar vencer
as dificuldades, nunca, porém, deve deixar a vida correr à revelia, o que seria
mais preguiça do que virtude.” (O Evangelho Segundo o Espiritismo – cap. V, nº
26). Este ponto, sem dúvida alguma, sugere reflexão sobre o problema das
desigualdades sociais à luz da reencarnação.
Seja, porém, como for, a despeito dos “altos e baixos” dos compromissos
reencarnatórios na vida social, não nos compete fazer julgamento, mas temos o
dever de trabalhar pela melhoria do homem. E com fazê-lo sem ir ao encontro dos
focos de revolta e decadência? Disse muito bem o dr. João Pompílio de Almeida
Filho:
“Devemos ir ao encontro dos necessitados, para dar-lhes o que precisam, moral
e materialmente, antes que eles venham até nós arrancar o que lhes falta, e
destruir as riquezas, que são nossas, mas exigem emprego inteligente, com
distribuição de parte em favor dos que têm fome, sofrem frio, vivem envilecidos
nos vícios, constituindo verdadeiro peso-morto à margem da sociedade”. Tese
oficial – 1° Congresso Espírita do Rio Grande do Sul-1945.
Realmente. Tais palavras estão inteiramente abonadas pela Doutrina Espírita.
A esmola é uma doença da sociedade. Ainda não temos uma consciência de
solidariedade capaz de suprir as falhas no rastro da pobreza extrema e da
invalidez relegada.
Mas a palavra esmola não teria mais razão de ser, dentro de uma organização
social mais espiritualizada ou mais aproximada do Evangelho. Em vez de esmola,
diríamos acertadamente dever. Se é verdade que os males sociais, em grande
parte, têm relação com o nosso passado e, por isso, também é verdade que cabe à
criatura humana fazer a sua parte, a fim de que ninguém seja privado pelo menos
do essencial à subsistência nos flancos mais ínfimos da sociedade.
Melhoramento social engloba estabilidade e libertação do medo, mas não
significa que todos tenham de ser ricos ou venham a possuir automóvel como
requinte de bem-estar; mas todos têm o mesmo direito a uma condição de vida
condizente com a dignidade humana, por mais frisante que seja a desigualdade dos
níveis sociais.
O Espiritismo não propõe a eliminação total das desigualdades, notadamente no
estágio evolutivo em que nos encontramos, pois a sociedade é toda diversificada,
com ricos e pobres, inteligentes e parvos, empreendedores e preguiçosos,
progressistas e retrógrados, homens de bem e homens trapaceiros, por exemplo.
Sem pensarmos, porém, na utopia de um mundo sem falhas e disparidades, como se
fosse um paraíso terrestre, podemos e devemos, contudo, dar o quinhão que a
Doutrina Espírita nos atribui, porque temos a nossa parte de responsabilidade no
conjunto:
“Condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física e moralmente:
embrutece-se. Uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na Justiça deve
prover à vida do fraco, sem que haja para ele humilhação.
Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a
vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns”. (O Livro dos Espíritos-Parte
3a, Cap. XI).
Como se vê, a Doutrina Espírita não absorve a idéia de fatalismo como
explicação genérica dos desacertos sociais, nem a tese da reencarnação levaria a
tanto.
O fatalismo social seria a condenação de pessoas ou grupos a uma vida de
privações indefinidamente, como se fossem todos marcados pela adversidade
inarredável. Não. Nesta ordem de considerações o que a Doutrina afirma nada tem
de radical: os males deste mundo são de duas ordens, isto é, os que têm vínculos
com o passado, por causa de atos praticados noutra existência, e os que resultam
de erros e abusos cometidos no presente. Nem tudo, portanto, se deve lançar na
conta do passado.
A incapacidade ou a falta de escrúpulos na gestão administrativa, a
negligência na vida pessoal e os desperdícios são responsáveis por muitas crises
na sociedade. O cotidiano das ocorrências bem o demonstra. São fatos da presente
existência. A interpretação unilateral seria muito inconveniente, pois os
problemas exigem, antes de tudo, análise conjuntural. Dois fatores são
indiscutivelmente relevantes neste passo: a educação e a reforma moral.
Na confluência dos problemas com que nos defrontamos, de um lado e do outro,
não seria lógico pôr de lado a interferência de “situações cármicas”. Há
criaturas humanas sujeitas ao determinismo de uma existência difícil ou penosa
em razão do que fizeram antes, não se sabe onde ou em que época.
Quem, suponhamos, explorou o suor alheio, quem abusou da riqueza ou da
autoridade como verdadeiro tirano ou corruptor, certamente vai ter que lutar
muito contra a humilhação, as aflições e os embaraços, ainda que trabalhe e
estude com o maior afinco para subir pela inteligência e pela tenacidade.
Por mais que insista na tentativa de afastar os empecilhos, fica sempre na
planície social, em posição apagada, obrigado a executar serviços inferiores,
segundo os valores convencionais do nosso mundo.
Mais adiante se nos depara o varredor de rua, um homem que já fora lorde
noutra época e, agora, volta à Terra para reeducar-se na humildade, pois
impusera humilhação a muita gente quando estava na opulência.
Semelhantemente, não seria um despropósito admitir que antigo e orgulhoso
aristocrata, daqueles que faziam pouco caso das pessoas que estivessem abaixo de
sua camada social, venha a reencarnar com uma prova que o coloque nas calçadas
como engraxate, vivendo à margem das multidões nos grandes centros urbanos.
Noutros tempos, tinha criados sobre os quais tripudiava com arrogância e
desumanidade.
O fato de engraxar sapato nada tem de deprimente para quem trabalha
honestamente, tanto quanto a profissão de gari e outras profissões tidas como
das mais modestas não aviltam as mãos honradas.
Se a sociedade precisa de médico para os problemas de saúde pública, também
precisa do gari, ao mesmo tempo, porque sem a limpeza da cidade e a remoção dos
detritos e entulhos transmissores de vermes e alimentadores de mosquitos os
planos sanitários ficam seriamente comprometidos. O cavalheiro elegante,
habituado a vestir-se com apuro, não pode fazer “boa figura” em público se não
tiver quem lhe engraxe os sapatos no momento necessário. E quem vai fazê-lo?
O titular de um cargo importante? O funcionário de status mais elevado? Claro
que não. É o engraxate, que se torna uma figura indispensável naquele momento.
Naturalmente é uma prova para o espírito que reencarna, como se diz, nas
“classes baixas” da sociedade e não consegue projetar-se, porque tem débitos
pesadíssimos de outras existências. O tipo inteligente ou espertalhão de
outrora, muito afeito a espertezas com prejuízo de terceiros, depois de ter
tantas e tantas vezes abusado da inteligência para fins inconfessáveis, sem
jamais ter sido alcançado pela justiça terrena, não poderá reincorporar-se à
mesma sociedade a que pertencera, mas agora reencarnado como servente ou
trabalhador explorado, sempre em aperturas financeiras, lesado aqui, sacrificado
ali? É uma contingência admissível no desenrolar do processo reencarnatório.
É a lei de causa e efeito.
A justiça nunca deixa de vir, cedo ou tarde, segundo as nossas noções de tempo.
A reencarnação está na vida social, não tenhamos dúvida. Conseqüentemente, não
se exclui em tudo e por tudo a reencarnação como um dos dados de avaliação nos
desajustes sociais, ainda que não seja razoável generalizar, o que daria motivo
a conclusões muito rígidas.
Se, de fato, há circunstâncias que se sobrepõem aos nossos desejos e meios de
ação, porque decorrem de uma carga de responsabilidade individual ou coletiva de
outras etapas da vida, há obstáculos e eventualidades que denunciam apenas a
falta de vigilância ou a displicência nesta existência. E se o homem fosse
conduzido pelo passado em todos os instantes não haveria mudança nem disposição
do livre-arbítrio.
A vida seria uma sucessão fatal de episódios predeterminados.
Como corpo de idéias, baseado em fatos que comprovam a sobrevivência do espírito
além do corpo e a sua comunicação com o nosso mundo, o Espiritismo também se
interessa pelo ser humano na vida de conjunto, o que quer dizer: o homem na
sociedade.
Sem a vida social ninguém teria como se desenvolver e renovar-se, pois a
penitência reclusa, distante dos problemas, ignorando o sofrimento de seu
próximo, sem dar sequer um pouco de si, não faz nenhum santo.
É na forja social realmente que adquirimos experiência e exercitamos as
nossas possibilidades latentes, ora caindo, ora levantando, até que nos
modifiquemos para melhor. Não sendo, portanto, fatalista, como já dissemos e
fazemos questão de repetir, está bem claro que a Doutrina Espírita se preocupa
com as desigualdades humanas, cujas causas devem ser atacadas para que se
corrijam as injustiças.
Muitas chagas sociais já teriam sido extirpadas se houvesse mais sentimento
de humanidade, mais respeito às razões éticas, tanto no plano do poder público
quanto no plano particular. Há desigualdades que são o flagrante resultado do
egoísmo, da ambição e, por fim, das incongruências de uma sociedade
discriminativa na distribuição dos bens indispensáveis à vida humana.
Uma sociedade em que a vivência real do Cristianismo ainda está reduzida a
compartimentos limitados, porque o Cristo é apenas objeto de devoções formais,
sem ação nas profundezas do coração, a não ser das pessoas abnegadas, cujo
espírito de sacrifício vem contrabalançar o peso da indiferença ou da frieza
dominante.
Pois bem, é contra esse tipo de sociedade, ainda vigente, que invocamos os
princípios espíritas, sem compromisso com ideologias e facções políticas.
Não estamos defendendo a igualdade maciça ou mecânica, pois seria uma
pretensão visionária. Como igualar os elementos de um aglomerado humano composto
de criaturas desiguais?
Sim, desiguais espiritualmente, desiguais no temperamento, na formação moral,
tanto quanto desiguais intelectualmente, etnicamente, psiquicamente. Neste
ponto, exatamente, a noção de igualdade, tão mal situada nas discussões
doutrinárias ou políticas, tem dois sentidos muito naturais: somos iguais pela
natureza e pela origem, porque somos criaturas de Deus e pertencemos à espécie
humana, mas não somos iguais nas aptidões, no caráter, na educação, na cultura,
nas decisões do livre-arbítrio.
Teoricamente, “todos são iguais perante a lei”. Seria, de fato, o ideal de
uma sociedade bem equilibrada. Como seres humanos, todos têm o direito a uma
vida normal, uma vez que todos têm aspirações, compromissos e deveres
compatíveis com as necessidades biológicas e espirituais. Necessidades inerentes
à natureza humana e, por isso mesmo, não se condicionam, pelas categorias
sociais.
No entanto, há muitos casos em que animais de estimação, como cavalos,
cachorros e gatos são mais bem tratados do que as próprias crianças que ficam em
volta desses animais. Que os animais sejam bem cuidados e defendidos, mas que
não se despreze o ser humano. A proteção do reino animal é uma prova de
adiantamento de uma civilização.
É válido indiscutivelmente o conceito de igualdade na acepção de respeito aos
direitos comuns, os direitos intrínsecos da pessoa humana em qualquer nível
social: preservação da integridade física, oportunidades para estudar e
melhorar-se, liberdade de escolha de seus objetivos profissionais, intelectuais
e religiosos. Igualdade, portanto, nos direitos essenciais.
Nosso conceito de igualdade, porém, não vai ao irrealismo de imaginar uma
sociedade em que todos tenham o mesmo “trem de vida”, as mesmas regalias, as
mesmas qualificações sociais. Na luta pela vida, sob a pressão das competições,
sempre se defrontam capacidades diferentes, com interesses conflitantes.
O emprego do livre arbítrio, por sua vez, está sujeito às variações
circunstanciais nos empreendimentos e nos modos de proceder ou de julgar as
coisas. Ao lado, por exemplo, dos que querem vencer e, por isso, estudam,
trabalham, enfrentam todos os reveses, há muitos que não querem sair da
comodidade, não se esforçam para mudar de posição, porque preferem ficar onde
estão, cultivando a displicência como regra de vida.
Ora, o indivíduo operoso e realizador, porque leva a vida a sério não se
confunde com o preguiçoso, que se anula por si mesmo no grupo social.
Figuremos de passagem o caso de dois irmãos, cujo pai tenha dado oportunidade
ou chances, como se diz correntemente, tanto a este como àquele. O primeiro
trabalhou, não esbanjou o tempo, preparou-se para ocupar lugares mais altos,
enquanto o segundo deixou tudo correr à vontade, fazendo suas farras, abusando
das energias da mocidade.
Mais tarde, na “idade madura”, quando as ilusões já estão desfeitas, um irmão
está em boa situação, com estabilidade, mas o outro, completamente despreparado,
desgastado pelas extravagâncias, está de mãos vazias, nulificado na planície
social. De quem a culpa? …
Iguais na origem, no lar de onde saíram, mas visivelmente desiguais na
organização/ temperamental, na vontade, nas inclinações.
A sociedade, em suma, é um somatório das desigualdades individuais. Seria
então irrealizável a igualdade em termos absolutos. A reencarnação não invalida
totalmente o livre-arbítrio. Justamente por isso, se estamos encarando a questão
à luz do pensamento espírita, precisamos ter uma visão mais elástica.
De um lado, há quem afirme, por exemplo, que as desigualdades são problemas
sociais e, portanto, “nada têm a ver com a reencarnação”; do outro lado, com o
mesmo acento categórico, afirma-se que as desigualdades sociais são
“conseqüências de nosso passado”, e, assim, seria inútil qualquer tentativa de
modificação.
Então, a única solução é “deixar como está”. São entendimentos contrários à
verdadeira índole da Doutrina Espírita, de um lado e do outro. Nossa posição
há-de ser a do meio termo, nunca das definições intransigentes diante da
realidade social.
Há, de fato, situações que inferiorizam o indivíduo socialmente, durante uma
reencarnação ou mais, por causa da rede expiatória de envolvimentos que o
acompanham do passado. Se não cabem no vocabulário espírita as palavras “azar”,
“má sorte”, “capricho do destino” e outras, de uso comum, naturalmente há uma
razão para que certos casos perdurem na sociedade, a despeito de todo o empenho
que se faça para afastá-los ou atenuá-los.
Se a razão determinante do sofrimento ou das dificuldades não está nesta
existência, teremos de encontrá-la no passado, sob a ação da lei moral de “causa
e efeito”, não pelo que os pais fizeram, mas pelo que o próprio culpado fez, não
importa se neste ou noutro século.
Daí, porém, não se segue que todas as injustiças da Terra, efeitos da
maldade, do engodo e do orgulho, por exemplo, sejam projeções do passado e, por
isso, irremediáveis. Não. Até certo ponto, as deficiências sociais podem ser
retificadas pelas atitudes reparadoras, pela luta contra o mal e pelas reações
da parte mais sadia da sociedade.
E sempre houve, felizmente, em todos o grupos humanos, os elementos que não
se contaminam, ainda que sejam obrigados a transitar pelas mesmas vielas por
onde passam o ódio, a baixeza, o vício e a hipocrisia bem enroupada.
Os desafios são uma contingência desse estado de coisas, mas nem todas as
ocorrências são fatais. A reparação das brechas que se abrem no organismo social
exige a reforma periódica de suas estruturas. É um fenômeno inevitável, sem o
que a sociedade não se adaptaria às mudanças impostas pelas necessidades.
Mas as reformas estruturais não eliminam a relevância da reforma moral, é
ponto em que insistimos. São instâncias concomitantes.
A reforma de uma estrutura política, administrativa, religiosa ou
educacional, por exemplo, pode ser muito inteligente, como boa base de
sustentação, mas o funcionamento vai depender do homem. E se o homem não estiver
preparado para conviver com os novos mecanismos, não apenas do ponto de vista
intelectual ou técnico, mas também do ponto de vista moral, a melhor estrutura
possível corre o risco da poluição, apesar das boas aparências. (…).
Que poderíamos esperar de uma casa muito bem traçada, muito bonita por fora,
mas construída com material de péssima qualidade, sem alicerce seguro?
Então, embora as reformas de estruturas sejam necessárias, o equilíbrio
social não dispensa a reforma moral de alto a baixo. Não se reformam costumes
por leis ou pela força. Por mais bem intencionada e cuidadosa que seja uma lei,
não está isenta de acomodações e distorções quando o homem quer usá-la em
benefício de seus caprichos ou de conveniências ocultas.
A lei por si só não reforma a sociedade, pois os resíduos da imoralidade e
das artimanhas sempre subsistem enquanto o homem, por sua vez, também não se
modifica interiormente. Dentro dessa concepção, que está na ordem geral das
idéias que até aqui explanamos, naturalmente nos defrontamos com o problema da
propriedade.
Como já recordamos, o Espiritismo nos põe diante de uma concepção igualitária
quanto aos direitos essenciais da criatura humana. Mas também estabelece a
distinção entre a propriedade privada e a propriedade destinada ao uso geral.
Não usa terminologia jurídica nem muito menos formulações técnicas, mas
divide, claramente, em termos técnicos, o bem comum, a que todos têm direito, e
a fortuna de uso particular. Reconhecemos, por isso mesmo, a legitimidade da
propriedade privada, obtida à custa do trabalho honesto, sem prejuízo de
ninguém, como ensina a Doutrina.
E porventura não tem o direito de usufruir o resultado de seu esforço todo
aquele que trabalha e sabe perseverar e economizar para conseguir um padrão de
vida melhor? É lógico e humano. Isto não implica aceitar ou defender a
transformação de recursos ou bens de uso geral em propriedade particular, para o
enriquecimento de uns poucos em desfavor de muitos.
É o que significa, sem tirar nem pôr, a monopolização de um patrimônio
coletivo. A propriedade e o capital são, portanto, valores relativos. Se a
Doutrina Espírita não é contra o capital em si, coerentemente não apóia a
designação depreciativa do dinheiro como o “vil metal”.
O homem é o responsável pelos efeitos do capital, pois o dinheiro é apenas um
instrumento que tanto pode servir de peça decisiva de um sistema de corrupção e
violência.
O problema é com o ser humano, não é com o dinheiro, pois já sabemos muito
bem que as melhores coisas deste mundo, quer materialmente, quer
intelectualmente, podem ser usadas para o mal ou para o bem, na medida em que o
livre-arbítrio pende para um lado ou para outro.
É o que aprendemos na Doutrina Espírita:
“Se a riqueza houvesse de constituir obstáculo absoluto à salvação dos que a
possuem, conforme se poderia inferir de certas palavras de Jesus interpretadas
segundo a letra e não segundo o Espírito, Deus, que a concede, teria posto nas
mãos de alguns um instrumento de perdição, sem apelação nenhuma, idéia que
repugna a razão”. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVI).
Coincidentemente – apesar da grande distância no tempo e nas circunstâncias – o
presidente Franklin Roosevelt, dos Estados Unidos, chefe de uma nação
capitalista, dizia isto:
“Os capitalistas vorazes serão devorados pelo fogo que eles atearam… O
capital é essencial; razoáveis compensações ao capital são essenciais; porém o
mau uso dos poderes do capital ou a egoística supervisão de seu emprego precisa
ter fim, ou o sistema capitalista se destruirá pelos seus próprios abusos”.
Roosevelt estava então fomentando a política do New Deal, um plano econômico
realmente revolucionário. Roosevelt defendia até veementemente a propriedade
privada, mas ressalvou logo que a propriedade “não pode ser sujeita à
manipulação desumana dos jogadores profissionais da bolsa ou dos conselhos de
administração”. O sentido humano da propriedade, em suma. São idéias que se
encontram com as idéias espíritas:
“O que por meio do trabalho honesto, o homem junta, constitui legítima
propriedade sua, que ele tem o direito de defender, porque a propriedade que
resulta do trabalho é um direito natural, tão sagrado como o de trabalhar e
viver”. (O Livro dos Espíritos – capítulo XI, parte 3a, nº 882).
Outra coincidência relevante, sobretudo pelo espaço de tempo (90 anos) entre
o pensamento espírita e o pensamento de um economista contemporâneo, o que
demonstra, mais uma vez, as antecipações da Doutrina Espírita em relação a
problemas de nosso tempo:
1947. H. Hansen: “Numa fase de industrialização e urbanização, o indivíduo
não pode ordenar a sua vida isoladamente. Só conseguirá resolver os complexos
problemas hodiernos mediante esforço conjugado e a ação cooperativa dos seus
semelhantes”.
1857. O Livro dos Espíritos: “O homem tem que progredir. Isolado não lhe é
isso possível, por não dispor de todas as faculdades. Falta-lhe o contacto com
os outros homens. No isolamento ele se embrutece e estiola”.
No fundo, o que resulta de suas conceituações de origens tão diferentes é um
apelo de ordem ética, porque contrário ao egoísmo, mas identificado com o
espírito de solidariedade, que continua a ser uma força social das mais
ponderáveis.”Uma sociedade que se baseia na lei e na justiça de Deus – diz a
Doutrina Espírita – deve prover à vida do fraco, sem que haja para ele
humilhação”.
É o caso da esmola, que humilha e não resolve os problemas. Mas o assunto
provoca reflexões no campo sócio-econômico, o que será objeto de próximo
capítulo.
Texto publicado originalmente no livro “O Espiritismo e os Problemas
Humanos”.
Edição USE, 1985. Primeira edição em 1948.