Enéas Canhadas
Tenho ouvido a pergunta “Por que Deus permitiu isto ou aquilo” inúmeras vezes após realizar palestras. Estas perguntas aparecem relacionadas a qualquer assunto. Por que Deus permite que o consumo de drogas aumente? Por que Deus permite que esses ataques terroristas matem pessoas inocentes? Por que Deus permite que o mau esteja tão amplo em nosso tempo? E assim por diante. Acrescentaria algumas mais. Por quê Deus permitiu que o meu time perdesse no domingo passado? Por que Deus permitiu que o filho do vizinho, moço tão cheio de vida, sofresse aquele acidente horrível que tirou a sua vida?
Estas perguntas não devem encontrar eco dentro de nós, uma vez que temos a consciência de Espíritos encarnados, dotados de razão, e possuidores do livre-arbítrio. O problema talvez esteja no fato de que sabemos isso, racionalmente, mas nos esquecemos freqüentemente de tal verdade. De outra forma, não sentimos essa convicção todos os dias. Ousaria dizer que ainda não somos possuidores de tal convicção. Ainda é mais teórico em nossas mentes, do que propriamente natural.
O mito que nos fascina e conta a história bíblica de Adão e Eva, na verdade um conto da antiga Babilônia (citado no livro O Homem à Procura de Si Mesmo de Rollo May, Edit. Vozes, 1973 – 3ª Edição), reescrito e levado para o Antigo Testamento há cerca de 850 anos antes de Cristo, demonstra como nasceu a autoconsciência no ser humano. Adão e Eva viviam no paraíso, numa terra deliciosa onde ambos não conheciam em o trabalho nem outras necessidades. Mais importante ainda, não conheciam nem ansiedade ou remorsos. Não sabiam sequer que estavam nus. Simbolicamente não tinham consciência, de si mesmos.
Se, por um lado, tomaram consciência de que estavam nus e preocupados sentiram culpa porque comeram o fruto proibido, por outro lado passaram a ser possuidores do livre-arbítrio, do conhecimento do bem e do mal, à imagem e semelhança de Deus.
A partir daí não era mais cabível a pergunta “por que Deus permitiu que comêssemos da árvore da ciência do bem e do mal”, pois estavam nus diante de Deus, isto é, estavam despojados de qualquer proteção para os seus corpos e também para as suas mentes. Uma vez que tiveram a iniciativa e se fizeram livres para comer o fruto proibido, não poderiam perguntar a Deus por quê o Senhor os estava expulsando do paraíso.
Não quero dizer com isso que somos responsáveis pelos ataques terroristas acontecidos nos Estados Unidos ou qualquer outro mal que assola o nosso mundo atualmente. Quero afirmar, porém, que continuamos olhando para os nossos irmãos com os mesmos olhares dos discípulos de Jesus, quando, ao verem um cego de nascença, perguntam ao Mestre: “Quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” Queremos reduzir Deus transformando-o em quase humano, vítima de partidos ou preferências e até mesmo com inclinações políticas ou mais propício a alguma lavoura do que ao morador da região árida. Perguntamos demais as coisas para Deus e não buscamos as respostas dentro de nós mesmos. José Saramago, escreve na Folha de São Paulo, de 19 de Setembro de 2001 “… precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel (…) contudo Deus está inocente. Inocente (…) de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória…”
Em O Livro dos Espíritos, Livro Terceiro, capítulo V – Conhecimento de Si Mesmo, Santo Agostinho nos chama a atenção para um profundo exame de consciência dizendo: “O conhecimento de si mesmo é portanto, a chave do melhoramento individual. (…) Que aquele que tem a verdadeira vontade de se melhorar explore, portanto, a sua consciência… (…) Formulai, portanto, perguntas claras e precisas e não temais multiplicá-las…”
Por que Deus permitiu isto ou aquilo não nos trará respostas. A pergunta é de outra ordem. Por que me permito perguntar tais coisas para Deus?