Nestes tempos de modernidade onde tudo se renova e se transforma, hábitos, costumes e conceitos do passado encontram cada vez menos espaço para debates. Há mesmo certa aversão generalizada pelas tradições, práticas e ideias antigas, tome-se como exemplo, a Lei de talião. Tudo tem que ser atual, novo, tecnológico, cabeça aberta para as inovações. Falar de passado é out, in é falar do moderno.
Hoje em dia, de modo geral, não se sabe quem foi este tal de talião. Assim, a primeira informação de interesse para todos nós é que talião não foi uma pessoa, é uma palavra oriunda do latim talionis que significa tal, parelho, de tal tipo, por isso não se escreve com letra capital. Também conhecida por pena de talião, sugere desta forma uma pena ao infrator, semelhante, parelha, tal qual o prejuízo daquele que se sentiu prejudicado.
Relacionava-se às questões do delito e de sua correspondente punição. É vista por muitos como cruel e bárbara, extemporânea, mas existia como um preceito moral com aplicação civil. Embora de caráter divino, podia ser e era empregada pelos homens.
Entretanto, esta antiquíssima lei, de quase quatro milênios, continua sendo usada a todo o momento, para surpresa e espanto de muitos, sempre que necessário, sob certas condições é verdade. Entretanto, agora não deveria mais ser aplicada pelos homens.
Diz a nossa História que esta máxima já constava de um antigo código de leis, elaborado na Mesopotâmia, no reino da Babilônia, chamado Código de Hamurabi (século XVIII a.C.). É também o conhecido princípio do olho por olho, dente por dente de Moisés, um conceito de fato disciplinador. Há uma discussão na História se Moisés teria se inspirado no Código de Hamurabi, ou se propôs esta lei para o povo judeu espontaneamente, talvez inspirado. Essa questão, no momento, é de pouca relevância para a nossa abordagem. O que nos interessa de imediato, é mostrar que esta lei ainda existe, determinar quem tem autoridade para aplicá-la e em que circunstâncias.
A introdução deste princípio nas leis da Humanidade visou estabelecer uma primeira noção de justiça nas relações sociais, visto que, no passado, a cobrança da dívida, seja ela qual fosse, era desmedida, alcançava o devedor de um modo desproporcional ao prejuízo causado, extrapolava o direito de ressarcimento da possível perda. Os fortes se sobrepunham aos fracos. Então, em tempos bárbaros, a proposta de uma lei que acene com visão mais equânime da justiça foi uma dádiva para as sociedades da época, um verdadeiro avanço moral. Tentou equacionar as questões jurídicas, de modo a não incentivar a vingança, impedindo que o castigo fosse maior do que o próprio delito, ou seja, devia-se pagar, mas na mesma moeda.
Os tempos escoaram, e chega à Terra o Espírito puro por excelência: Jesus o Cristo. O que faz Jesus em relação a esta lei? Derroga-a? Dita o seu fim? Decreta a sua nulidade como lei de Deus? Não, muito pelo contrário, ratifica o princípio, ao dizer: “Quem com a espada fere com a espada será ferido”, naquele inesquecível momento em que, traído, estava para ser aprisionado, quando Pedro, para defendê-lo, desembainha a espada e, com um golpe certeiro, fere Malco, o servo do sumo sacerdote que lá estava para dar cumprimento ao fato que já havia sido predito por Ele mesmo. (Mateus, 26:52.)
É certíssimo que Jesus apresentou uma nova e surpreendente proposta quando disse: “Ouvistes que foi dito: olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo e tirar-te a vestimenta, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas” (Mateus, 5:38 a 41.)
Propôs deste modo, uma atitude revolucionária para a época, a qual ainda nos desafia, sugerindo que o ofendido abrisse mão de qualquer represália ou vingança, não pagando o mal com o mal, mas apenas com o bem. Realmente, outro avanço moral para aqueles Espíritos pouco acostumados ao perdão. Contudo, com a imagem da espada ferindo aquele que com ela fere, não descartou a existência do olho por olho.
Mais uma vez os tempos correm, e chega o momento de uma nova revelação para a Humanidade: o advento da Doutrina dos Espíritos. Visitando apenas as páginas das obras básicas encontramos várias citações, entre outras, sobre a existência da Lei de talião: O livro dos espíritos, questão 764; O evangelho segundo o espiritismo, cap. VIII, itens 16 e 21; A gênese, cap. XI, item 34; O céu e o inferno, segunda parte, cap. VIII. Exceto O livro dos médiuns, todas as outras obras citam diretamente a lei, indicando que ela deve estar viva, presente pelo menos até o século XIX, época em foi consolidada a Doutrina Espírita. Entretanto, como a Doutrina veio para ficar conosco, a lei em princípio também deve permanecer.
Seria surpresa encontrar esta lei consagrada nos textos espíritas? De modo algum, visto que é o próprio Allan Kardec que, em A gênese, capítulo I, item 56, afirma em mais um momento de extrema lucidez espiritual: “A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela razão de que não há outra melhor”. Ora, se Jesus não suprimiu a Lei de talião, o Espiritismo também não poderia tê-lo feito.
Fechou-se o ciclo de revelações: Moisés, Jesus e o Espiritismo, e em todas as três o mesmo conceito confirmado, a mesma proposta de uma justiça mais “justa”.
Poderia ser diferente? Respondemos que não! Leis de Deus, como esta, não são de curta duração. Devem viger enquanto a homem não aprende e não entende como se portar dentro do organismo social em que vive. Tais leis devem existir enquanto o Espírito, ainda tímido em seus avanços morais, não aceita os princípios de outra lei divina: a do Amor, princípios estes que existem para serem exercitados continuamente, sob pena de, não os cumprindo, ser surpreendido pelo olho por olho. A lei vigora até que nos conscientizemos de que não se pode ferir com a espada impunemente, sem consequências graves para si e para a sua jornada evolutiva.
Conclui-se que a lei existe, mesmo nos dias atuais, e existirá por muito tempo. Contudo, quem teria o direito moral de aplicá-la? Seríamos nós, Espíritos ainda em evolução? Seriam os Espíritos puros que já fazem a vontade do Pai? Não, nem uns nem outros. Quem aplica a Lei de talião é o próprio Deus, através da reencarnação, por exemplo, pois afinal foi Ele que a formulou. Não é lei humana. Mas, em que condições aplicá-la?
Registrada na literatura universal, particularmente no Novo Testamento, há outra lei de Deus que diz: “Mas, sobretudo, tende ardente caridade uns para com os outros, porque a caridade cobrirá a multidão de pecados” (I Pedro, 4:8). Fechou-se outro ciclo. Deus permitiu que fosse apresentada no passado a sua Lei de talião, permitiu também que os homens a aplicassem, mas no transcorrer do tempo apresentou outra lei informando que todo aquele que amar poderá se forrar da aplicação da primeira. Quanta beleza na criação! Advertência e equanimidade na primeira lei, misericórdia e salvação na segunda.
Assim, Pedro, o mesmo que foi advertido de que se ferisse com a espada com a espada seria ferido, registrou em sua epístola este tesouro de ensinamento que foi deixado por Jesus em Lucas (7:47).
E aí estão as condições em que sempre se aplicou a Lei de talião. Toda vez que pecamos, e é oportuno definirmos o pecado na visão espírita como toda e qualquer transgressão às leis de Deus, e não reparamos pelo exercício do Amor os prejuízos causados ao próximo pelos nossos atos inconsequentes, ainda nos satisfazendo em continuar ferindo com a espada, Deus, em sua infinita bondade e sabedoria, nos faz passar pela espada, não para nos punir, mas para nos educar e inibir futuros delitos. Mostra que todos somos irmãos e que um irmão não deve ofender outro irmão sem que lhe sejam pedidas contas de seus atos. Pela segunda lei, a do Amor, estas contas podem ser plenamente sanadas, sem que precisemos passar pelo fio da espada. Cabe lembrar que muitos de nós, agora mais conscientes, sinceramente arrependidos, solicitamos a pena do olho por olho antes de reencarnar, promovendo desta forma simultaneamente, a quitação rápida da falta e a aceleração do nosso progresso.
Sim, o século XXI chegou com novas esperanças de um mundo melhor e de uma sociedade mais justa. E, se desejamos este mundo novo de regeneração, lembremos sempre de Pedro e guardemos igualmente em nossos corações a superior proposta de Jesus, que recomenda retribuir o mal com o bem, perdoando e nada mais, deixando que as sábias e educativas Leis de Deus ajam de acordo com o olho por olho onde e quando se fizer necessário e enquanto perdurar a dureza dos nossos corações.
Autor: Rogério Miguez