A Caridade Vem de Dentro
Na óptica espírita, o oposto da caridade é o egoísmo. Ela é generosa, ele é
mesquinho.
Não está em causa o manicaísmo resultante das concepções que se recusam a ver o
ser humano como alguém submetido ao trabalho da sua própria evolução: todo o bem
de um lado, do outro o mal. Herculano Pires já dissertou com mestria sobre a
função do egoísmo nos horizontes evolutivos de onde vimos, via reencarnação, na
sua obra «Curso Dinâmico de Espiritismo». O egoísmo é uma forma de comportamento
que estamos a abandonar e que encontra as suas causas profundas no eterno desejo
de estar bem, embora siga, é claro, pelo caminho errado. Ser não é possuir.
Estar não é ser.
Não justifiquemos por isso o egoísmo, a que estamos a deixar de tender,
quando se percebe que já temos condições de melhorar.
Essa tendência no percurso evolutivo de qualquer pessoa é parecida com a
corrente de um curso de água na busca do oceano. Os rios, a partir da nascente,
são rápidos, de leito abrupto, mas amansam à medida que atingem o mar e que
envelhecem. Na evolução é também assim. E estamos no início, não nos iludamos.
Tão inconsciente é essa tendência de sermos egoístas, como se compreende, que
agimos com ele, vindo de nós próprios, nas suas diversas roupagens sociais – a
veste familiar, o pano comunitário e a farda nacional.
Resultados
Viver por viver não satisfaz. É importante viver bem. Seja neste plano de
vida material, seja no Além. O egoísmo resseca, desalenta, infelicita. O amor
refaz, desanuvia, alegra, e jamais se desgasta, tanto mais quanto mais depurado
é. Isso porque é a meta evolutiva a que tendemos, em estágios mais amadurecidos.
A caridade – nada mais que o amor em movimento – é a grande desconhecida.
Passa na história da Humanidade com personagens memoráveis, e assim sonhamos
tê-la connosco. O grande problema é o de a conquistar: ela não se compra nem se
transfere de uns para outros. Adquire-se, construindo-a no imo. Não é um
objecto.
Também não é obra construída de agora para logo ou de hoje para amanhã, como
um produto acabado. O psiquismo humano é complexo, como se se compusesse de
diversas camadas que se justapõem numa individualidade una e única.
Um mergulho de superfície na caridade não é de desperdiçar. Mas daí a
acreditar-se que o problema de a assimilar é imediato e rápido vai um longo
caminho que desmente essa ilusão: o da experiência.
É compreensível: evoluir, amadurecer espiritualmente, não é seguir regras de
fora para dentro, memorizar, mas sim debater ideias, estudar, aprender, testar,
vivenciar para constituir sabedoria. E esta, património irreversível (quando
muito apenas ocultado temporariamente via reencarnatória ou outra), segundo as
situações concretas, verte atitudes luminosas de dentro para fora, sem esperar
ou desejar aplauso, que não seja o da sua consciência feliz.
Ser e parecer
Caridade não é «caridadezinha». Temos uma amiga cuja prática é admirável.
Integra uma equipa directora de uma associação de protecção à infância. Há algum
tempo houve um jantar beneficente ilustrado com quem dizem ser o herdeiro da
extinta coroa portuguesa. Esgotados os lugares, entre os sócios houve uma
senhora que ficou ofendida por não lhe reservarem bilhetes ao ponto de entre
impropérios dizer que ia deixar de ser sócia.
É um exemplo clássico. A contribuição dessa senhora revoltada feita até à
data não perdeu valor. Ela é que rejeita a alegria de continuar a colaborar na
satisfação das necessidades dessas crianças em séria dificuldade. Essa mistura
do egoísmo e do orgulho com a caridade não é coisa fácil de erradicar. Porquê?
Porque a evolução para ser real, autêntica, tem de ser amadurecida em todas
as camadas do nosso psiquismo, das mais superficiais para as mais profundas, e
só quando atinge, se sedimenta nestas é que se torna mais frequente.
Vejamos a definição elevada, sucinta, clara e completa de «O Livro dos
Espíritos»:
Allan Kardec: – Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como
a entende Jesus?
Resposta: – Benevolência para com todos, indulgência para com as
imperfeições alheias, perdão das ofensas.
Doação imaterial
Caridade é doação afectiva, desinteressada, espontânea. Traz aos
destinatários um bem-estar real, não um gozo periférico. O espírito Emmanuel,
numa mensagem ensina que ficamos apenas com o que damos.
Caridade é a fraternidade que acompanha o gesto, a atitude interior. Não é o
gesto visualizado. Este pode apenas querer parecer, para merecer o aplauso
mundano, conforme descreve o Evangelho.
Pensar nos outros, nas suas dificuldades. Ajudar… sem atrapalhar.
Neste cenário, contudo, quando uma mão se estende para auxiliar, torna-se
necessário, em geral, que haja uma mão que queira receber. Este é um dos maiores
entraves ao processo de aproximação que envolve a caridade. Os espíritos mais
sábios sabem «convencer» o necessitado a aceitar a contribuição fraterna, ao
cativá-lo, sensibilizando-o.
A caridade vai-se sedimentando no nosso comportamento tanto mais quanto mais
o quisermos, sem angústias ou pressas. E começa nas mais pequeninas coisas. Às
vezes ajuda reflectir no lado bom das pessoas mais próximas, em casa, no
trabalho, na rua, ou das circunstâncias. Pensar na caridade sem ser de cima para
baixo, como sendo eu o bom e o outro o desgraçado. Somos seres que caminhamos
lado a lado, todos necessitados do amparo recíproco. Temos momentos melhores
umas vezes, de outras têm os outros.
O que não resulta, por certo, é fazer cobranças a outrem, porque é melhor
convencermo-nos, em benefício próprio, que ninguém – mas mesmo ninguém – tem
qualquer obrigação de ser caridoso connosco, mas, de facto, nós próprios temos a
maior obrigação de ser caridosos com os demais, entendendo-os, perdoando o que
houvesse a perdoar, agradecendo a quota de generosidade com que de uma forma ou
de outra nos beneficiam…
E aí, caridade pode ser o silêncio de alguém que nos tolera algum
desassossego.
Os amigos
Às vezes, irreflectidamente, acreditamos que os nossos amigos são aqueles que
jamais nos apontam os enganos, que nos dizem que somos os maiores do mundo, que
nos batem nas costas, mesmo quando estamos quase a caminho de um colapso de
consciência.
Caridade não é aplaudir, apoiar a asneira. É manter a fraternidade de, na
altura certa, sem violência, dizer o que se pensa, mesmo que não nos seja
perguntado directamente.
Dar mais espaço a alguém em caminhada acelerada para estertorosa queda não é
ser seu amigo. Aparecer como se lhe desse apoio, isso não é ajudá-lo.
A caridade não exclui a disciplina nem uma conduta coerente, mas sem
agressividade.
Caridade social
A nossa tendência a tomar os conteúdos pela forma conduz a confusões como as
de considerar que a prática da caridade para ser autêntica obriga a participar
necessariamente – e em casos extremos até a criar – em obras de assistência
social como orfanatos, hospitais, lares de idosos. Diz-se que o movimento
espírita brasileiro passou a ser respeitado pelas obras dessa índole que foi
criando com muito altruísmo. Até pode ser. Mas o facto é que o que dignifica
mesmo, e passa uma boa impressão para quem não é espírita, é a conduta da pessoa
em causa: o seu equilíbrio, a sua brandura, a sua paz, a sua capacidade de
perdoar, numa palavra o seu timbre de caridade.
Esta virtude não nasce de fora para dentro, a partir de regulamentos: é
manifestação afectiva de dentro para fora. A base da caridade assenta na
sensibilidade, no conhecimento, no discernimento.
Depois, a caridade não tem rótulo. Não existe uma caridade espírita, outra
budista, etc.. O amor em movimento – a caridade – é universalista, ajuda
sem olhar a quem, levantando o ser para a dignificação de si próprio. É louvável
matar a fome e a sede a quem a tem, inquestionavelmente. Mas proporcionar-lhe
educação para prover a si próprio é o mais desejável. A maior caridade não será
a divulgação do espiritismo?