Excelentíssimas e Digníssimas Autoridades
Senhores Pais, Senhoras, Senhores e
Caros Colegas,
Em razão do anonimato de nossa carreira universitária ficamos surpreendidos
com o convite, da Primeira Turma de Formandos em Microbiologia e
Imunologia do Brasil, para dizer nesta cerimônia algumas palavras.
Aquele que convida se arrisca duas vezes, porque o convidado pode declinar do
convite ou pode aceitar, deixando inicialmente que a memória realize a viagem
retrospectiva, sem a todos agradar.
Foi aqui, na Praia Vermelha, no antigo prédio do Instituto, que tivemos nosso
primeiro contato com o Professor Paulo de Góes. O professor nasceu na
cidade do Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1913. Diplomou-se em medicina em
1936, pela antiga Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Brasil. Desde
o início de seu curso de graduação orientou sua formação em Microbiologia, pois
no primeiro ano já era Auxiliar Acadêmico. Em 1937 foi assistente e em 1944 fez
Doutoramento e Docência Livre. Em 1954 tornou-se Professor Catedrático e no ano
seguinte, antecipando-se à reforma universitária, reuniu as cátedras de
Microbiologia da Faculdade de Farmácia e da Faculdade de Medicina. Assim fundou
o Instituto de Microbiologia, que hoje recebe seu nome, entidade
pioneira na história da Microbiologia no Brasil.
Quarenta anos depois, em homenagem ao centenário de morte de Louis Pasteur
(27/12/1822 – 28/09/1895), que dá nome à Avenida onde estamos, e à memória do
Professor Paulo de Góes, nossos alunos do Curso de Bacharelado realizaram, de 25
à 28 de setembro de 1995, a Primeira Semana de Microbiologia e Imunologia.
Recordo-me do convite que nos foi feito para discutir a educação e a ética na
ciência. Neste dia certamente nossos laços foram estreitados e hoje retornamos,
mais uma vez honrados. No entanto, são muito difíceis de dizer, nesta hora de
festa, essas coisas de ciência e de sensibilidade.
Professor Paulo de Góes doutorou-se em 1944, eu nasci nesta época, antes da
televisão, antes da penicilina, da vacina Sabin, da fralda descartável, do
xerox, do plástico e das lentes de contato. Nascemos antes de 1945, antes do
radar, dos átomos, do raio laser, das canetas esferográficas, da máquina de
lavar pratos, do ar condicionado e antes do homem andar na lua.
Nós nunca tínhamos ouvido falar em SPAS, fitas cassete, vídeos, máquinas de
escrever eletrônicas, computadores e danoninho. Talvez, por isso, naquela
Primeira Semana de Microbiologia e Imunologia tenham lembrado um discurso de
Pasteur aos jovens dizendo assim: – “e vocês que estão sentados nesses
bancos, representando a esperança desse país, não venham aqui só pela excitação
da polêmica, mas apenas para aprender…”. E, mais adiante, continua
Pasteur, “Não fiquem maravilhados diante do novo, nem assustados pelo que
ontem vos era desconhecido. Não recuem diante do mistério, mas procurem
enfrentá-lo e desvendá-lo… Não se considerem os únicos donos da verdade e do
conhecimento, pois um diploma não faz o cientista. Somente assim poderão cumprir
sua missão, ser úteis ao próximo… E façam tudo com amor, pois será um dia
esplêndido aquele em que, dos progressos da ciência, participará também o
coração”.
Pasteur falava de Educação, de Humanidade. Nossos esforços nunca deverão
produzir monstros cultos ou psicopatas hábeis.
Muitos desconfiam da educação.
Um sobrevivente de um campo de concentração disse que seus olhos viram o que
nenhuma pessoa deveria presenciar. Crianças envenenadas por cientistas
instruídos e aparelhos de tortura construídos por engenheiros ilustrados. Por
isso Pasteur lembrou que “será um dia esplêndido em que, dos progressos da
ciência, participará também o coração”.
A ciência sem o amor pode conduzir a comportamentos imediatistas, quando a
vida em si perde seu valor.
Mas, foi o mesmo Pasteur quem disse que pouca ciência afasta o homem de Deus
e que os verdadeiros cientistas acabam dele se aproximando.
O grande microbiologista talvez lembrasse que “os céus manifestam a glória de
Deus e o firmamento a obra das suas mãos”.
Se utilizarmos um telescópio de rádio-astronomia veremos na nossa galáxia,
que é subdesenvolvida, 100 bilhões de estrelas. Ficaremos entediados de contar
as estrelas de 10 bilhões de galáxias.
Se utilizarmos um veículo com a pequena velocidade de 360 mil km/s e
partirmos da Terra para alcançar a extremidade da galáxia gastaremos a bagatela
de 50 mil anos luz.
Em uma cabeça de alfinete vamos encontrar 8 sextilhões de átomos, separados
uns dos outros por distâncias maiores do que suas dimensões. Se pudéssemos
contá-los com a velocidade de um milhão a cada segundo, contaríamos o último
2530 séculos depois. Quem duvidar faça a conta!
O cientista deve possuir alto nível de consciência. A consciência adormecida
é preenchida pelo Ter em detrimento do ser. O cientista deve fazer esforço para
apreender e compreender a verdadeira realidade. Muito daquilo que vemos não é
mais do que aparência. A realidade é outra. O sol parece girar em torno de nós e
a Terra parece imóvel, mas a realidade é outra. Deslumbramo-nos com Mozart em
seu harmonioso concerto encantando-nos os ouvidos. O som não existe! Não passa
de uma impressão dos nossos sentidos, vibrações do ar de certa amplitude e
velocidade, silenciosas por si mesmas. Sem o nervo auditivo não haveria sons, só
movimento. O mesmo podemos pensar sobre a luz que põe em vibração o nervo
óptico.
As galáxias, o som, a luz manifestam a glória de Deus e anunciam a obra de
suas mãos.
Podemos encontrar 5 milhões de hemácias em um mililitro de sangue e em alguns
meses nosso corpo é reconstituído de novo. E diante desta cultura, aparentemente
inútil, ficamos a refletir sobre as grandes questões.
Quem – ou o que – decidiu sobre nossa existência, sobre o seu valor ? Por
mais que procuremos se abrem apenas três caminhos – os da religião, da filosofia
e da ciência.
A existência da ordem no seio do caos é outra emergência dessa estranheza
lógica.
O maior problema da filosofia que a ciência positiva não resolve, nem está em
condições de resolver, é o da conduta ou do valor da ação humana. O fato de ser
portador de um diploma e de maior soma de conhecimentos leva o homem a
reconhecer o caminho do seu dever ? A atitude do homem perante o homem e o
mundo, e a projeção dessa atitude como atividade social e histórica é tema da
filosofia.
Como explicar a existência de uma tal ordem no âmago do caos ? Num universo
submetido a entropia, irreversivelmente arrastado para uma desordem crescente,
por que e como aparece a ordem ? O homem comum lembraria de uma Inteligência
Suprema, Causa Primária de todas as coisas e a chamaria – Deus.
Nossas certezas sobre o tempo, o espaço e a matéria não passam de perfeitas
ilusões, sem dúvida mais fáceis de apreender do que a própria realidade. A
realidade em si não existe; depende do modo pelo qual decidimos observá-la. As
entidades elementares que a compõem podem ser uma coisa (uma onda) e ao mesmo
tempo outra (uma partícula). Essa realidade é, num sentido profundo,
indeterminada.
Qual o sentido último do Universo e da existência humana ? Kant, lançando as
bases da moderna Antropologia Filosófica resume estas indagações numa só: “Que é
o homem ?”
Hoje nos recusamos a aceitar que somos apenas impulsos eletroquímicos num
bicomputador que se originou por acaso e acreditamos que chegou o momento de
buscar, para além das aparências mecanicistas da ciência, o traço quase
metafísico de alguma coisa diferente, estranha, poderosa e misteriosa. O Caos
contêm em si uma ordem tão surpreendente quanto profunda. Cientistas e filósofos
concordam que hoje a Física Quântica toca de modo surpreendente a
Transcendência, acreditam que estamos diante do primeiro encontro explícito
entre Deus e a ciência. Por isso, mais do que nunca a educação é vista como o
processo de interferência numa realidade em constante mudança, no sentido de
levar os indivíduos a adotarem, em opção livre e consciente, comportamentos
desejáveis ao seu bem estar, físico, biológico, psíquico, social e também
espiritual. Esta interferência está baseada em valores e conhecimentos que nós,
pais e mestres consideramos válidos científica e filosoficamente. Por isso,
Pasteur falou daquela forma aos jovens e hoje retornamos ao mesmo discurso. Mas,
quem ensina quem?
Além de biocomputadores ou cientistas somos seres sociais dotados de
historicidade. E, assim “aprendi que se depende sempre, de tanta, muita
diferente gente. Toda pessoa sempre é as marcas das lições de tantas outras
pessoas. Que é tão bonito, quando a gente entende que a gente é tanta gente,
onde quer que a gente vá”.
Gonzaguinha falando da ciência da vida parafraseou Pasteur – “é tão bonito
quando a gente vai a vida, nos caminhos onde bate bem mais forte o coração”.
No discurso aos jovens Pasteur recomenda que “façam tudo com amor” e
relembra que um diploma não faz o verdadeiro cientista, ele sabia que aprender
não é apenas um ato de conhecimento da realidade concreta, da situação real
vivida pelo estudante, mas também é ato de modificação de suas próprias
percepções, em relação ao aprendizado do bem, da moral e dos valores supremos.
Pasteur fala de religiosidade, de filosofia e de ciência, deve Ter usado como
referência bibliográfica a Primeira Carta de Paulo aos Coríntios: “se
falássemos as línguas dos homens e as dos anjos, mas não tivéssemos amor,
seríamos um bronze que soa ou um sino que toca. E se tivéssemos o dom da
profecia, tivéssemos a fé, a ponto de transportar montanhas, e conhecêssemos
ainda todos os mistérios e toda a ciência, mas não tivéssemos amor, não seríamos
nada”.
A síntese talvez possa ser feita com algumas palavras: Devotamento, Firmeza,
Raciocínio, Sentimento, Humildade, Dignidade.
Devotamento sem apego, Firmeza sem petulância, Raciocínio sem aspereza,
Sentimento sem pieguice, Humildade sem subserviência e Dignidade sem orgulho.
Parece estranho que numa reunião de festa falemos da responsabilidade social
do cientista, mas ela possui duas dimensões: a individual, que é produzir o bem,
e a sócio-política (ou coletiva) que é a reforma das instituições humanas. O
homem que desenvolveu a razão deverá agora abrir o coração.
Pensamos em terminar com o manifesto do Sermão da Montanha, com o da ciência,
mas finalmente escolhemos o de um simples chefe indígena ao presidente
norte-americano.
“Isto nós sabemos.
Todas as coisas estão ligadas
Como o sangue que une uma família …
Tudo o que afeta a terra
Afeta os filhos e filhas da terra.
O Homem não teceu a teia da vida;
Ele é apenas um fio dela.
Tudo que ele faz à teia
Ele faz a si mesmo”
Que aquele que teceu a teia da vida os ajudem, na ciência, a produzir o bem!
UFRJ, 1997
Revista Espírita Fraternidade (Lisboa), 422: 227-229, 1998; Boletim da
Sociedade Brasileira de Microbiologia (SBM-Notícias), 22 (outubro): 3-4, 1998;
Folha Espírita, São Paulo, março, 2000.
Sobre o autor, biografia disponível no site do GEAE (http://www.geae.org)