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Um conceito comunicativo de Espiritismo

“O Espiritismo não é obra nem de um único Espírito, nem de um só homem, é
obra dos Espíritos em geral.” –
Allan Kardec (Revista Espírita, 1865, p.
296
)

Até que ponto o Espiritismo “é dos espíritos”? Em outras palavras, que grau
de autonomia tiveram e têm os espíritos desencarnados para determinar o conteúdo
dos ensinamentos insertos no Espiritismo, desde a codificação? A resposta a esta
pergunta costuma ser simplista: o Espiritismo seria, pura e simplesmente, a
mensagem dos espíritos superiores, trazida aos homens. A confiança nesse
postulado é tanta, que se tornou historicamente importante para os espíritas da
atualidade a “defesa da preservação da pureza doutrinária”, que diz respeito à
manutenção em grau puro das idéias fornecidas pelos espíritos.

Num contexto como esse, torna-se fundamental um estudo mais detido da
intersubjetividade da revelação espírita, à luz de alguma teoria do significado.

Houve vários posicionamentos ao longo da história, na busca de se compreender
como as palavras fazem sentido. Os essencialistas, por exemplo, acreditavam que
as palavras possuem um significado fundamental, intrínseco à sua natureza,
independente de quem as fala ou ouve. Próximo destes, há os objetivistas ou os
representacionistas, para quem as palavras são como que reflexos, ou
representações da realidade. Dentro das óticas acima, seria possível, até certo
ponto, afirmar que os espíritos colocaram sentidos exatos nas palavras e, assim,
a doutrina espírita teria sido composta com fidelidade às ideações dos espíritos
que a ditaram, e, por tal razão, contém a verdade, pura e límpida.

Contudo, os estudiosos contemporâneos da linguagem não acreditam mais nisso.
Para eles, parecem mais corretas as posturas pragmatista e sócio-interacionista,
segundo as quais a língua é um fato social, cuja existência funda-se nas
necessidades da comunicação. Isso significa basicamente que, ao falar alguma
coisa, aquele que fala não é simplesmente alguém que está utilizando um código e
expressando realidades. O “falante”, para se comunicar, leva em alta
consideração o contexto no qual fala, primeiro, porque precisa utilizar uma
língua que não foi inventada por ele e sim construída socialmente na história;
segundo, porque antecipa as condições psicológicas da(s) pessoa(s) com quem se
comunica; e, terceiro, porque ele próprio, a pessoa que fala, sofre
condicionamentos sociais que determinam, em grande parte, as suas preocupações e
idéias. Ou seja: nem aquele que fala tira do nada a forma e o conteúdo do que
vai falar, nem o interlocutor é passivo no processo da fala.

Assim, o sentido das palavras emerge por intersubjetividade, o que quer dizer
que o significado de um texto qualquer é constituído por cada um dos sujeitos
que participam do processo de comunicação, ou seja: todo aquele que lê, de algum
modo, é “autor”. Isso porque, o próprio ato de ler deixa de ser considerado uma
simples “decodificação” do que está escrito e passa a ser atribuição de
significado
ao que é lido. Além do escritor ter de escrever dentro da
cultura do lugar e da época em que vive (para ser entendido), a compreensão
pelos outros a respeito daquilo que ele escreveu será diferente conforme a
cultura do lugar e da época do leitor e da leitura.

Um estudo superficial da história da codificação revela com muita clareza que
a comunicação foi uma das principais condições de possibilidade para o
surgimento do Espiritismo no mundo. Allan Kardec estabeleceu com os espíritos um
nível muito alto de interação, no qual a preponderância da fala dos
desencarnados jamais tisnou a responsabilidade do codificador, na aceitação ou
na recusa de postulados e idéias. Isso determinou significativamente que os
encarnados – especialmente Kardec – condicionassem as idéias expressas pelos
desencarnados. Tanto isso é verdade que o conjunto dos pontos doutrinários que
fundamentam o Espiritismo e a própria postura de Allan Kardec diante do
conhecimento são extremamente coerentes com o positivismo, o racionalismo
francês e o Iluminismo, mundividências daquela época na Europa.

Os espíritos desencarnados não são deidades: são seres humanos também (ou,
para ser mais fiel ao paradigma original do Espiritismo, eles são tão espíritos
quanto nós). Suas realidades e preocupações coincidem, em grande parte, com as
que vigem na cultura humana. Talvez haja espíritos que tenham uma apreensão
direta do real, embora essa seja, para nós, uma suposição bastante contestável,
suspeita até. Mesmo que tal condição seja real, a conversão do mundo vivido
deles (a apreensão direta do real elimina a diferença entre ser e saber) teria
de se dar em termos de comunicação, isto é, mesmo que haja espíritos que acessem
a realidade sem mediações simbólicas, a simbolização para a comunicação com os
homens seria uma redução fatalmente necessária.

Para se comunicarem, eles têm que adaptar linguagem e conteúdo aos
destinatários, do contrário a possibilidade de rejeição por nós da mensagem
deles torna-se muito elevada. Assim, o discurso do Espiritismo apenas é possível
dentro dos limites humanos, o que tornam os espíritos “reféns” dos encarnados,
para uma relação de saber.

O Espiritismo resulta, pois, de uma mediação social entre a sociedade
desencarnada e a sociedade encarnada, embora se baseie na preponderância
cognitiva da primeira. Seus postulados surgem e se firmam numa relação
epistemológica dentro da qual o entendimento dos espíritos desencarnados se
estabelecem como corpo filosófico dentro das condições e limites culturais dos
encarnados. Tal é uma visão “comunicativa” do Espiritismo, que nos torna tão
responsáveis quanto os espíritos pelos postulados espíritas, obrigando-nos
destarte a fazer boa filosofia e boa ciência, a fim de ajuizarmos acertadamente
a respeito das idéias deles, criando, inclusive, em nosso transfundo cultural,
as bases para que eles nos venham nos sugerir aperfeiçoamentos, alterações e
aprofundamentos. Sem uma constante atualização de nossa mentalidade ou se nos
mantivermos estagnados em algum tipo de dogmatismo, os sábios do mundo
espiritual não terão como manter conosco diálogos tão proveitosos quanto os que
instauraram com Allan Kardec.

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