Autor Wilson Francisco
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Laura aceitou realizar comigo um processo de reprogramação e resgate. A decisão de realizar esse caminho requer confiança e intensa afetividade por si mesma. Você precisa ter intenso amor por si própria para ir em busca dos pedaços de sua alma, soltos em algum lugar e tempo.
Quando um choque traumático (morte por acidente, estupro, acidente etc.) se dá, é preciso recompor e/ou resgatar partes ou a própria criatura daquele cenário.
Um primeiro passo, em caso de estupro, é o depoimento. A criatura envolvida, ao relatar ou escrever a sua história, inicia a restauração. E foi isso que propus a Laura e ela aceitou. Sua motivação inicial é curar seu corpo e alma. Vai mais além, quer que este depoimento sirva para outras mulheres. É a atitude da compaixão.
Explico sempre que quando você cura algo em seu corpo e alma, você cura as pessoas que tenham histórico semelhante ao seu.
Diz ela que foi difícil relatar. Eu fiquei, mentalmente, à distância monitorando e apoiando. Íamos caminhar juntos.
Um dia, ela se encheu de coragem e numa sentada, sem reler e revisar escreveu tudo, com alma e coração.
“Eu cresci rodeada de amigos e com uma família que sempre demostrou amor e cuidado comigo. Nenhum deles poderia imaginar o que eu iria passar no final da adolescência. E até hoje, poucos deles sabem a respeito desse trauma. Apesar de muito comunicativa, sempre fui uma menina tímida. E por conta disso, demorei a me envolver com o sexo oposto. Tinha uma paixonite aguda aqui e ali, mas só fui dar meu primeiro beijo aos 16 anos, numa balada.
Não foi uma experiência legal. O menino era mais velho, estava bêbado e insistiu que os beijos e abraços fossem mais intensos do que eu gostaria. Depois de uma ou duas tentativas frustradas em que ele tentou levar minha mão para suas partes íntimas, sai de fininho e cada um de nós seguiu seu rumo.
Foi triste. E eu demorei mais de um ano para beijar alguém novamente. Por conta da timidez, eu tinha descoberto que o álcool me ajudava a me soltar, conhecer outras pessoas e liberar os meus desejos. Não foi à toa que durante algum tempo, eu apenas me envolvi rapidamente com meninos/homens em festas ou baladas, sempre com a ajuda de uma cervejinha ou de alguma bebida mais forte que me ajudavam a ser simpática”.
Aqui a gente observa que ela realiza uma escolha errada (bebida) para vencer a timidez. Quem sabe, uma boa amizade, alguém de confiança poderia interagir e interceder incentivando-a a refletir e escolher um outro caminho.
“Coincidentemente ou não, eu apenas atraía homens que queriam curtir a noite e não estavam muito interessados em conversar, conhecer-me melhor ou se envolver num relacionamento mais sério. Conforme o tempo passava, eu só me frustrava mais e mais. Eu transmitia uma imagem de garota independente, segura de si”.
Outra decisão equivocada, aparentar o que não é, ela se desfigura e pode trazer para seu universo pessoas ou ações desfiguradoras.
“Mas no fundo, só queria ser amada e encontrar alguém romântico, que gostasse de mim do jeito que eu era.
Aos 19 anos, entrei na faculdade sem nunca ter namorado sério. Eu ainda era virgem pois, mesmo um pouco cética, estava me guardando para alguém especial. Os meses passaram, a quantidade de festas e de bebidas aumentou. E aos poucos, fui me soltando um pouco mais. Me apaixonei algumas vezes, não deu certo. Mas eu era bem certinha, nunca tinha visto um homem nu ou tocado alguém mais intimamente.
Meu lado sexual estava bloqueado e se soltava um pouco quando eu bebia, mas não a ponto de eu ir para cama com alguém que eu não gostasse de uma forma especial”.
Ela tem sonhos e busca realizá-los. O caminho é perigoso. Mistura bebidas e imagem falsa de si mesma. Atitudes que podem levar a jovem para situações delituosas, trágicas.
“Em agosto de 2003, eu decido ir numa festa da Faculdade de Medicina da USP, chamada Carecas no Bosque. É uma festa à fantasia, conhecida por deixar as pessoas malucas. Quando fui com uma amiga comprar o ingresso dias antes, senti um arrepio no coração, uma sensação ruim”.
Você indaga: e Deus? Naquele instante sua alma/ Deus sinaliza. Algo perigoso poderia acontecer. O arrepio no coração é um aviso!
“Imaginei que a sensação era por conta da energia do Hospital das Clínicas, que fica ao lado do local da festa.
No dia em questão me vesti para a festa, coloquei duas calças e um casaco comprido porque estava muito frio. Lembro que o único item de fantasia era uma máscara de zorro, que inocentemente me camuflava na multidão. Fomos para a casa de uns amigos que moravam próximo ao local, bebemos e partimos para festa. Eu estava o tempo todo com essa minha amiga do lado. Cheguei na festa levemente bêbada e quando estava lá, alguns conhecidos me ofereceram copos de drinques. Todos estavam bebendo e nunca iria me passar pela cabeça que aquilo tudo me oferecia algum risco. Ledo engano. Tive um blecaute”.
O efeito do álcool entra em ação e inibe sua consciência.
“A partir de então, lembro-me apenas de algumas cenas, flashes de memória que vêm e vão”.
Estes flashes e blecautes são um confronto, entre as atitudes delituosas, a proteção divina e a própria alma preservando-se, através de apagões da mente.
“Primeiro, dei um beijo no cara que a minha amiga estava interessada. Não faço ideia se a iniciativa foi minha ou dele. Minha amiga ficou muito chateada e me deixou sozinha. Outro blecaute. A próxima imagem que vejo sou eu beijando um homem. Não sei como é seu rosto, nem como ele está vestido. Mas sei que estamos no meio de pessoas, numa pista de dança. Ele me abraça forte, segura meu cabelo e leva minha mão até o seu pênis. Eu recuo. Ele insiste e eu me deixo levar. Essa foi a primeira vez que eu coloquei a mão em um pênis por dentro da calça de alguém. É uma sensação forte e boa, é como se eu estivesse liberando uma energia e um desejo represados durante muito tempo. Ele coloca a mão dentro da minha calça. Outra onda de energia forte me inunda”.
O corpo sente prazer, é natural. A alma resiste. Mais tarde a sensação do corpo induz ela a assumir a culpa.
“Blecaute. Acordo deitada no mato com um homem em cima de mim. Ele me penetra e eu grito de dor, pedindo para ele parar. Não me lembro se era o mesmo homem. Ele não pára. Além dele, vejo pelo menos outros dois homens em volta de nós. Eles tiram fotos e dão risada. Blecaute. Um segundo homem me penetra. Eu grito mais forte de dor, peço “por favor, pára”. Foi em vão. Mas dessa vez vejo um rosto, o terceiro homem, o próximo da fila, estava com pena de mim.
Blecaute. Acordo sentada na festa, vestida. Com esse homem (na verdade, um menino) olhando para mim e me perguntando se está tudo bem. Eu balanço a cabeça, ainda meio bêbada, em sinal afirmativo. E ele me deixa sozinha. Me levanto e cambaleando encontro minha amiga. Voltamos juntas para casa.
Acordo no dia seguinte sem me lembrar direito do que aconteceu, mas com muita dor e sangue na calcinha. Sim, eu havia sido violentada. Perdido a virgindade através de um estupro (demorei anos para conseguir associar a palavra ao que havia acontecido comigo). Tomei um banho e, na tentativa de me abrir com alguém, contei para o meu irmão que eu havia transado pela primeira vez. Mas sem dizer como ou com quem. Ele, inocente, me parabenizou. Quando eu disse que estava triste, porque não havia sido com alguém especial, ele me disse: fica tranquila, foi só uma primeira vez. Pedi, então, que ele fosse comigo comprar uma pílula do dia seguinte e enterrei a história por alguns dias.
Por coincidência, na mesma época eu estava fazendo um trabalho terapêutico com uma sensitiva. Me senti confortável para me abrir com ela (Graças a Deus) e fiz alguns trabalhos de limpeza. Ela me ajudou a juntar alguns fragmentos de memória e me disse que esse terceiro homem, que me ajudou, foi como um anjo”.
A intercessão/ajuda de Deus.
“Pois além de ter se recusado a me violentar, ele ameaçou os outros de denunciá-los, caso não deixassem apagar as fotos. Não sei se isso é verdade, mas confesso que naquele momento me tranquilizou e como hoje, tantos anos depois, nada veio à tona, acredito que fui de alguma forma, abençoada. Recebi processos de limpeza energética, reiki etc.. Além de alguns objetos que deveriam me acompanhar até o momento certo. Enterrei novamente a história e tentei seguir adiante. Alguns meses depois me permiti ter uma nova primeira vez com um menino que eu estava saindo há alguns meses. Não foi muito especial, mas pelo menos eu estava por inteira naquele momento, sem álcool ou drogas.
O tempo passou, morei fora do país e descobri com um homem mais velho o que era sentir tesão, relacionar-se sexualmente e até mesmo atingir o orgasmo. Foi como uma libertação. Mas quando voltei para o Brasil, sentia-me deprimida, eu não era correspondida pelo homem que amava e voltar para os mesmos ambientes de antes me abalavam profundamente. Procurei terapia e ela me ajudou a lidar melhor com tudo o que havia acontecido comigo.
Algum tempo depois, num exame de rotina, descobri que tinha um tumor na tireóide. Tudo aquilo que eu não havia falado, que reprimi durante todos aqueles meses, resolveu se manifestar. A biópsia deu resultado inconclusivo, eu precisava passar pela cirurgia sem saber se estava com um câncer maligno ou não. Mas, o mais importante, é que eu resolvi falar”.
A revelação do fato, para a família cura. Expressar com fidelidade seus sentimentos é uma atitude que permite equilíbrio e pleno funcionamento da glândula tireóide.
“Contei para meus pais e para o meu irmão minha história. Eles se abalaram, mas me abraçaram e demonstraram todo o seu amor e apoio por mim. Eu tinha muito medo da reação deles e vergonha também”.
O estado de culpa é uma sensação enigmática que envolve a vítima.
“De alguma forma, eu me sentia culpada por ter sido violentada. Como eu tinha bebido, era como se eu estivesse pedindo por aquilo, como se eu merecesse. A reação da minha família foi fundamental para que eu me sentisse amparada. Também contei para alguns amigos e novamente me senti mais leve e amada. Fiz a cirurgia e o câncer era benigno. Acredito que ter contado para as pessoas e tirar parte desse peso das minhas costas foi fundamental para que a minha doença não fosse mais grave. Continuei na terapia até ter alta. Mas até meus 29 anos, 10 anos depois, eu ainda não havia tido um relacionamento sério. Mesmo quando era correspondida, minhas relações não ultrapassavam 3 meses”.
O encontro com o amor. Novos caminhos. A energia do amor supre, ajusta e estimula a saúde e a coragem.
“Até que eu conheci o Pedro. Ele me ensinou a amar e ser amada. Com ele, aprendi a me entregar e ser mulher por completo. Apenas três meses depois que estávamos juntos, eu comecei a ter crises de choro no momento em que estávamos tendo relações. Não era um choro qualquer, era uma crise de choro convulsivo, com emoções há muito tempo represadas. Acabei me abrindo e contando tudo para ele. Pedro me abraçou e me acalmou mais de uma vez. Sua presença e seu amor são fundamentais para eu decidir finalmente contar minha história para o mundo. Ele me ensinou a me amar pelo que eu sou, a aceitar o que aconteceu comigo como parte da minha história e da minha evolução. Não é fácil. Vira e mexe eu tenho crises, tive uma inflamação no aparelho reprodutor que durou mais de seis meses. Mas estou insistindo nessa limpeza. Eu quero olhar para mim mesma e para o meu passado com tranquilidade”.
Olhar para o futuro. Você transforma sua dor num símbolo que pode sacralizar sua vida.
“Quero olhar para o futuro com esperança e viver feliz, com plenitude. Eu mereço. Este ano houve muitas campanhas sobre a violência contra a mulher e muitas bandeiras foram levantadas contra o estupro. Várias histórias vieram à tona, mas eu não tive coragem de falar. Isso muda agora. Ainda que anonimamente, tenho orgulho de trazer o que aconteceu comigo à tona. Colocar luz. E dessa forma me perdoar. Também estou fazendo um esforço para perdoar aqueles que fizeram isso comigo. Já se passaram dez anos… eu já me desfiz dos objetos que representavam essa lembrança, joguei no mar para que se purificassem. Sinto que de fato tudo foi feito. Me sinto mais leve.
Estivemos no bosque e realizamos um processo de resgate de alma e sacralização do local. Os pássaros planavam irradiando seus cânticos e vários meninos, jogavam bola, com alegria. Com a presença dos Mestres, ela sentiu a Natureza e Deus agasalhar esse sonho! Anunciar sua libertação e transformar o lugar numa fonte de luz, num templo divino. Sua alma se encantava com a certeza de que aquelas crianças foram, nesta cerimônia, imunizadas de violências e invasões, para sempre.
E sonha, agora, que sua voz seja a anunciação de um novo tempo! Agora, a dignidade da mulher está preservada e ungida pelo Amor!