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Estudo sobre a mediunidade

Silvio e Clarice Seno Chibeni

1. Introdução

A mediunidade desempenha papel essencial no estabelecimento da base experimental da ciência espírita e nas atividades dos centros espíritas. Seu estudo sistemático e contínuo possibilita a correta compreensão tanto de sua natureza como de suas finalidades, habilitando-nos a dela obter seguros e produtivos resultados, com vistas ao nosso aperfeiçoamento intelectual e moral.

Esse estudo deve necessariamente estar centralizado no mais completo e profundo tratado que já se escreveu sobre a mediunidade: O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec. Os presentes apontamentos devem ser tidos unicamente como uma exposição incompleta de alguns tópicos importantes, destinada a facilitar posteriores contatos com essa obra fundamental e a vasta literatura subsidiária surgida desde sua publicação, em 1861.

No Vocabulário Espírita que forma o capítulo 32 desse livro Kardec dá como sinônimos os termos mediunidade e medianimidade, definindo-os com “a faculdade dos médiuns“. Quanto à palavra médium, Kardec explicita o seu significado em várias passagens de suas obras, como por exemplo nesse mesmo Vocabulário, onde se encontra esta definição sucinta:

MÉDIUM. (do latim, medium, meio, intermediário). Pessoa que pode servir de intermediário entre os Espíritos e os homens.

Ao analisar os conceitos de médium e de mediunidade, faz notar que a palavra médium comporta duas acepções distintas, expressas com clareza neste trecho da Revue Spirite:

Acepção ampla:

Qualquer pessoa apta a receber ou a transmitir comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, quaisquer que sejam o modo empregado e o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até à produção dos mais insólitos fenômenos.

Acepção restrita:

Em seu uso ordinário, todavia, esse termo tem uma aplicação mais restrita, aplicando-se às pessoas dotadas de um poder mediador suficientemente grande, seja para a produção de efeitos físicos, seja para transmitir o pensamento dos Espíritos pela escrita ou pela palavra.

Quando analisamos um texto ou um discurso onde o termo médium aparece, é importante reconhecer em qual desses sentidos está sendo empregado, a fim de se evitarem mal-entendidos e discussões sem fundamento. Assim, por exemplo, a afirmação feita no parágrafo 159 de O Livro dos Médiuns de que “todos [os homens] são quase médiuns” deverá ser entendida apenas na acepção ampla do termo, pois sabemos, pela questão 459 de O Livro dos Espíritos, que todos somos passíveis de receber a influência dos Espíritos, ainda que sob a forma sutil de intuição. Incorreremos em grave equívoco se concluirmos daí que todos somos mais ou menos médiuns no sentido restrito e usual da palavra, ou seja, se julgarmos que todos podemos produzir manifestações ostensivas, tais como a psicofonia, a psicografia, os efeitos físicos etc.

2. A natureza da mediunidade

Limitando-nos daqui para frente à acepção restrita do termo ‘médium’, que é a mais usual e relevante, estaremos, no que se vai seguir, entendendo a mediunidade como a aptidão especial que certas pessoas possuem para servir de meio de comunicação entre os Espíritos e os homens.

A questão que naturalmente surge neste ponto é a de se determinar qual é a natureza da faculdade mediúnica: quais as suas causas, por que surge somente em determinadas pessoas e em modalidades e graus diversos, se é passível de desenvolvimento forçado mediante alguma técnica etc.

Um aspecto central relativo à natureza da mediunidade acha-se exposto na resposta à questão que Kardec endereçou aos Espíritos no parágrafo 226 de O Livro dos Médiuns:

O desenvolvimento da mediunidade guarda proporção com o desenvolvimento moral dos médiuns?

“Não; a faculdade propriamente dita prende-se ao organismo; independe do moral. O mesmo, porém, não se dá com o seu uso, que pode ser bom ou mau, conforme as qualidades do médium.”

Como observamos pela resposta dos Espíritos, a capacidade de servir de “ponte” entre o mundo espiritual e o mundo material está ligada a fatores de ordem orgânica. Esse ponto encontra-se exarado em vários lugares das obras de Kardec e de outros autores espíritas abalizados, passando, no entanto, despercebido à maioria das pessoas, mesmo espíritas.

Já em 1859 Kardec afirmava, em seu livro Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas que “essa faculdade depende de uma disposição orgânica especial, suscetível de desenvolvimento.” Em O Livro dos Médiuns as referências nesse sentido são numerosas. No parágrafo 94, por exemplo, que trata das manifestações físicas espontâneas, os Espíritos informam que a aptidão de ser médium de efeitos físicos “se acha ligada a uma disposição física.” Bem mais adiante, ao estudar a formação dos médiuns (§ 209), Kardec retorna ao assunto:

Têm-se visto pessoas inteiramentre incrédulas ficarem espantadas de escrever [mediunicamente] a seu mau grado, enquanto que crentes sinceros não o conseguem, o que prova que esta faculdade se prende a uma disposição orgânica.

Notemos que nesta última passagem há referência a mais um princípio importante: a mediunidade não depende das convicções filosóficas ou das crenças religiosas do médium.

Por fim, em resposta à questão 19 do parágrafo 223 desse mesmo livro os Espíritos esclarecem que “a mediunidade propriamente dita independe da inteligência bem como das qualidades morais” do médium. Portanto a mediunidade independe também do desenvolvimento intelectual do médium.

Resumindo o que vimos até aqui:

A mediunidade é a faculdade especial que certas pessoas possuem para servir de intermediárias entre os Espíritos e os homens. Ela tem origem orgânica, e independe:

  • da condição moral do médium;
  • de suas crenças;
  • de seu desenvolvimento intelectual.

No parágrafo 200 de O Livro dos Médiuns, Allan Kardec deixa claro que “não há senão um único meio de constatar [a existência da faculdade mediúnica em alguém]: a experimentação.” Ou seja, só poderemos saber que uma pessoa é médium observando que efetivamente é capaz de servir de intermediário aos Espíritos desencarnados.

Isso naturalmente remete à importante questão do desenvolvimento da mediunidade. Por sua importância e pelas confusões e equívocos a que se tem prestado, merece ser abordada numa seção especial.

3. O desenvolvimento da mediunidade

Uma primeira observação a ser feita é que se a presença da faculdade mediúnica em uma pessoa independe de sua condição moral, intelectual e de crença, ninguém poderá tornar-se médium tão-somente pelo fato de moralizar-se, ou de estudar, ou de aderir às convicções espíritas. É evidente que essas atitudes serão de imenso proveito para a criatura, pois a colocarão em condições de compreender e utilizar bem a faculdade mediúnica que porventura possua.

É significativo, a esse respeito, que Kardec tenha alertado já no terceiro parágrafo da Introdução de O Livro dos Médiuns que muito se enganaria aquele que “supusesse encontrar nesta obra uma receita universal e infalível para formar médiuns.” Lança mão, a seguir, de uma comparação muito clara e objetiva, que esclarece o assunto à saciedade (os destaques são nossos):

Se bem que cada um traga em si o gérmen das qualidades necessárias para se tornar médium, tais qualidades existem em graus muito diferentes e o seu desenvolvimento depende de causas que a ninguém é dado conseguir se verifiquem à vontade. As regras da poesia, da pintura e da música não fazem que se tornem poetas, pintores, ou músicos os que não têm o gênio de algumas dessas artes. Apenas guiam os que as cultivam no emprego de suas faculdades naturais. O mesmo sucede com o nosso trabalho. Seu objetivo consiste em indicar os meios de desenvolvimento da faculdade mediúnica, tanto quanto o permitam as disposições de cada um, e, sobretudo, dirigir-lhe o emprego de modo útil, quando ela exista.

O caráter espontâneo da faculdade mediúnica é ainda destacado no parágrafo 208 de O Livro dos Médiuns (o destaque é nosso):

Se os rudimentos da faculdade [mediúnica] não existem, nada fará que apareçam […].

No capítulo intitulado “Manifestações dos Espíritos” de Obras Póstumas (parágrafo 6, no 34) encontramos esta densa passagem (destaque nosso):

O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos; depende, portanto, do organismo e pode ser desenvolvida quando exista o princípio; não pode, porém, ser adquirida quando o princípio não exista.

E no parágrafo 198 de O Livro dos Médiuns, que trata da diversidade das faculdades mediúnicas, lemos ainda:

Em erro grave incorre quem queira forçar a todo custo o desenvolvimento de uma faculdade que não possua. Deve a pessoa cultivar todas aquelas de que reconheça possuir o gérmen. Procurar à força ter as outras é, antes de tudo, perder tempo, e, em segundo lugar, perder talvez, enfraquecer com certeza, as de que seja dotado.

Encerrando esse parágrafo, Kardec transcreve comunicação mediúnica de Sócrates sobre o desenvolvimento da mediunidade, que contém grave advertência:

Quando existe o princípio, o gérmen de uma faculdade, esta se manifesta sempre por sinais inequívocos. Limitando-se à sua especialidade, pode o médium tornar-se excelente e obter grandes e belas coisas; ocupando-se de tudo, nada de bom obterá. Notai, de passagem, que o desejo de ampliar indefinidamente o âmbito de suas faculdades é uma pretensão orgulhosa, que os Espíritos nuncam deixam impune. Os bons abandonam o presunçoso, que se torna então joguete dos mentirosos. Infelizmente, não é raro verem-se médiuns que, não contentes com os dons que receberam, aspiram, por amor-próprio ou ambição, a possuir faculdades excepcionais, capazes de os tornarem notados. Essa pretensão lhes tira a qualidade mais preciosa: a de médiuns seguros.

Apenas como exemplo de opinião de um outro autor, corroborativa da de Allan Kardec, vejamos como Emmanuel responde à questão 384 de seu livro O Consolador, questão essa que versa especificamente sobre o tema que estamos focalizando:

Dever-se-á provocar o desenvolvimento da mediunidade?

A mediunidade não deve ser fruto de precipitação nesse ou naquele setor da atividade doutrinária, porquanto, em tal assunto, toda a espontaneidade é indispensável, considerando-se que as tarefas mediúnicas são dirigidas pelos mentores do plano espiritual.

Logo em seguida, em resposta à questão 386, o conceituado Espírito reitera:

Ninguém deverá forçar o desenvolvimento dessa ou daqula faculdade, porque, nesse terreno, toda a espontaneidade é necessária; observando-se contudo, a floração mediúnica espontânea, nas expressões mais simples, deve-se aceitar o evento com as melhores disposições de trabalho e boa-vontade […].

Precisamos portanto estar vigilantes quanto à opinião, infelizmente tão comum no meio espírita, de que as pessoas que aparecem nas casas espíritas devem, cedo ou tarde, ser encaminhadas às chamadas “sessões de desenvolvimento mediúnico”. São dois os motivos mais freqüentemente alegados para esse tipo de recomendação: 1) o empenho e dedicação com que alguém se interesse pelo Espiritismo, sugerindo, segundo julgam, que tem “todas as condições” para exercer a mediunidade; 2) os desequilíbrios variados de saúde ou de comportamento que apresente, notadamente quando venham desafiando a perícia dos médicos.

Ora, no primeiro caso dever-se-ia ponderar que as boas disposições da pessoa deverão ser aproveitadas antes de mais nada em seu aperfeiçoamento intelectual e moral, e, em se tratando de sua colaboração nas atividades do centro espírita, naquele setor ao qual mais se ajuste por sua formação profissional, seus interesses e disponibilidades, quais sejam a condução de estudos, a evangelização infanto-juvenil, a administração, a biblioteca, as visitas fraternas, a costura de enxovais, a faxina, a distribuição de alimentos, a acolhida aos novos freqüentadores etc., ou os trabalhos mediúnicos, se os sinais de mediunidade se apresentarem de forma espontânea.

No segundo caso, que é o mais freqüente, seria preciso compreender que o mero fato de alguém encontrar-se desequilibrado significa que não pode ser inserido no grupo mediúnico, sob o risco de comprometer o seu bom funcionamento. A mediunidade em si é uma faculdade neutra, que não tem qualquer conexão com os desajustes físicos, mentais e espirituais da criatura. Estes surgem por motivos específicos, e requerem o tratamento médico, psicológico ou espírita adequado ao caso. Somente após seu retorno à normalidade é que a pessoa poderá participar, como médium, dos trabalhos mediúnicos, se a faculdade surgir espontaneamente. O exercício da mediunidade não é recomendável na presença de determinadas enfermidades físicas, como por exemplo, nas doenças contagiosas, ou onde o equilíbrio orgânico esteja “por um fio” e a atividade mediúnica envolva situações que emocionem muito o médium. No caso dos desequilíbrios mentais e espirituais, o exercício mediúnico não pode nunca ser iniciado, ou continuado. Um médium nessas condições não poderá contribuir positivamente, além de gerar dificuldades para o grupo, facilitando mesmo a atuação de Espíritos interessados na instalação da desarmonia, dos melindres, das suspeitas, do enregelamento das relações entre os membros.

O desenvolvimento mediúnico a ser promovido nos centros espíritas não deve nunca ser entendido como o aprendizado de técnicas e métodos para fazer surgir a mediunidade, pois que não os há nem pode haver, mas exclusivamente como o aprimoramento e direcionamento útil e equilibrado das faculdades surgidas de forma natural, o que pressupõe o aperfeiçoamento integral do médium, por meio do estudo sério e de seus esforços incessantes para amoldar suas ações às diretrizes evangélicas.

Ressaltemos, outrossim, que os núcleos espíritas não deverão iniciar qualquer trabalho mediúco, quer de desenvolvimento (no sentido correto do termo), quer, menos ainda, de assistência aos Espíritos enfermos, se não estiverem seguros de que dispõem de colaboradores suficientemente preparados, por seus conhecimentos doutrinários, por seu equilíbrio psicológico e por sua conduta cristã, que disponham de tempo para encetar com regularidade tão delicada tarefa.

Resumindo o que foi visto nesta seção:

  • A mediunidade é uma faculdade natural, que surge espontaneamente.
  • Não se deve procurar desenvolvê-la enquanto não aflorar por si só.
  • O desenvolvimento da mediunidade deve ser entendido unicamente como a sua educação, o seu aprimoramento, a sua disciplina, o seu direcionamento útil para o bem.
  • A mediunidade não é a causa primária dos desequilíbrios orgânicos e psicológicos.
  • O exercício da mediunidade não deve ser colocado como a culminação obrigatória das atividades do cooperador da casa espírita.

4. Os mecanismos da mediunidade

Na presente seção procuraremos reunir alguns informes sobre os mecanismos da faculdade mediúnica, ou seja, sobre como se dá o fenômeno mediúnico. A fonte básica continuará sendo Allan Kardec. Iniciemos com este trecho, já parcialmente transcrito, do capítulo “Manifestações dos Espíritos” de Obras Póstumas (§ 6, no 34; o destaque é nosso):

O fluido perispirítico é o agente de todos os fenômenos espíritas, que só se podem produzir pela ação recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito. O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos.

Esmiuçando as informações aqui contidas, notamos:

  1. O perispírito desempenha papel de capital importância no processo mediúnico.
  2. Sendo o perispírito “o agente de todos os fenômenos espíritas”, e estes só podendo produzir-se pela ação recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito, temos como regra sem exceções que, ocorrendo um fenômeno de comunicação com o mundo espiritual, necessariamente haverá a participação de um médium. Em alguns casos, como em certas manifestações de efeitos físicos, não se nota a presença do médium, mas podemos estar certos de que haverá alguém, em algum lugar, servindo de médium, ainda mesmo que este não esteja consciente do papel que desempenha. Também percebemos que serão vãos os esforços de certos pesquisadores que, desprezando a riquíssima contribuição do Espiritismo para o estudo daquilo que (impropriamente) denominam “paranormalidade”, tentam detectar o Espírito unicamente por meio de aparelhos. Se algum instrumento chegar a registrar um espírito, é porque houve a participação oculta de algum médium. Neste caso, seria mais confiável analisar a manifestação diretamente, sem o recurso indireto de instrumentos, que sempre constituem fonte adicional de incertezas.
  3. A presença da faculdade mediúnica em alguém liga-se à possibilidade de seu perispírito “expandir-se”. Veremos logo mais que essa “expansão” do corpo espiritual pode ser entendida como a sua parcial desvinculação do corpo físico.
  4. A efetivação da comunicação exige, além da “expansão” do perispírito do médium, a assimilação deste com o perispírito do Espírito comunicante, ou seja, tem de haver sintonia entre ambos. Esse fato importante, de que o médium em geral não é capaz de comunicar-se indiscriminadamente com todos os Espíritos, é exposto em Obras Póstumas imediatamente após o trecho que acabamos de transcrever (§ 6, no 35; os grifos são nossos):

As relações entre os Espíritos e os médiuns se estabelecem por meio dos respectivos perispíritos, dependendo a facilidade dessas relações do grau de afinidade existente entre os dois fluidos. Alguns há que se combinam facilmente, enquanto outros se repelem, donde se segue que não basta ser médium para que uma pessoa se comunique indistintamente com todos os Espíritos. Há médiuns que só com certos Espíritos podem comunicar-se ou com Espíritos de certas categorias, e outros que não o podem a não ser pela transmissão do pensamento, sem qualquer manifestação exterior.

No exame do assunto do item 3, podemos colher subsídios em André Luiz, o autor espiritual que tanto tem contribuído para a extensão de nosso conhecimento científico acerca da mediunidade. Em sua obraEvolução em Dois Mundos, ao analisar a fase evolutiva em que se elaborava a faculdade de desprendimento do veículo perispiritual durante o sono (capítulo 17, item “Mediunidade espontânea”), adianta esta valiosa informação (grifamos):

Consolidadas semelhantes relações com o Plano Espiritual […], começaram na Terra os movimentos de mediunidade espontânea, porquanto os encarnados que demonstrassem capacidades mediúnicas mais evidentes, pela comunhão menos estreita entre as células do corpo físico e do corpo espiritual, em certas regiões do campo somático, passaram das observações durante o sono às da vigília, a princípio fragmentárias, mas acentuáveis com o tempo […].

Vemos, assim, que o respeitado cientista deixa entrever a correlação íntima entre a possibilidade de contato com a realidade espiritual durante a vigília (mediunidade) e um certo “afrouxamento” das ligações entre as células do perispírito e as suas correspondentes do corpo material. Prosseguindo, André Luiz explicita mais essa correlação:

Quanto menos densos os elos de ligação entre os implementos físicos e espirituais, nos órgãos da visão, mais amplas as possibilidades na clarividência, prevalecendo as mesmas normas para a clariaudiência e modalidades outras, no intercâmbio entre as duas esferas […].

Refletindo um pouco sobre as assertivas de André Luiz, verificamos, inicialmente, que não conflitam com a explicação dada por Kardec, em termos da capacidade de expansão do perispírito do médium. Há, pelo contrário, até um reforço, já que a noção de “expansão” é aqui suficientemente abrangente e flexível para permitir ulteriores elaborações e detalhamentos, dentro da natureza eminentemente progressiva do Espiritismo. Podemos compreender, deste modo, a “expansibilidade” do perispírito como a sua faculdade de desvinculação parcial e temporária do corpo físico, passando, nesse estado especial, a partilhar da realidade do mundo espiritual para nela colher impressões diversas, sem no entanto perder a possibilidade de atuação sobre o corpo denso.

É fundamental deixar claro que o que acabamos de expor não corrobora de modo algum a idéia popular de que no processo mediúnico o Espírito do médium “sai” e “dá lugar” ao Espírito comunicante, que passaria então a servir-se diretamente do corpo do médium. Os Instrutores Espirituais já esclareceram a Kardec, no importante capítulo “Do papel do médium nas comunicações espíritas” de O Livro dos Médiuns que essa idéia não corresponde à realidade. A mensagem sempre passa pelo Espírito do médium, mesmo quando ele não guarda disso a consciência ao despertar do transe. Vejamos o que dizem no item sexto do parágrafo 223:

O Espírito que se comunica por um médium transmite diretamente o seu pensamento, ou este tem por intermediário o Espírito do médium?

“É o Espírito do médium que é o intérprete, porque está ligado ao corpo que serve para falar e por ser necessária uma cadeia entre vós e os Espíritos que se comunicam, como é preciso um fio elétrico para comunicar à grande distância uma notícia e, na extremidade do fio, uma pessoa inteligente que a receba e transmita.”

Compreendemos então que, em última instância, o comando do veículo físico só pode ser feito pelo seu próprio “dono”. Poderíamos dizer que o corpo material é feito “sob medida” para cada Espírito, e que não “serve” para nenhum outro. O Espírito estranho não tem como agir diretamente sobre as células materiais formadas sob a influência de outro Espírito e para o seu próprio uso.

É interressante notar que nas questões seguintes à transcrita os Espíritos frisam mesmo enfrentando uma oposição inicial de Kardec que essa é uma regra absoluta, sem exceções, nem mesmo na mediunidade dita “mecânica”, ou ainda nos casos de efeitos físicos onde uma mensagem inteligente é transmitida (tiptologia, escrita por meio de pranchetas etc). Vemos, na questão 10 do referido parágrafo, que os Espíritos expressam indiretamente sua desaprovação a esse modo de denominar a mediunidade na qual o médium não guarda consciência do conteúdo da cominicação: o médium jamais atua como máquina, mecanicamente.

Resumindo o conteúdo desta seção:

  • O perispírito desempenha papel essecial em todos os processos mediúnicos.
  • A faculdade mediúnica liga-se à possibilidade de o perispírito desvincular-se parcialmente do corpo físico durante a vigília.
  • A comunicação não se efetiva sem que haja sintonia entre os perispíritos do médium e do Espírito.
  • A comunicação espiritual, ainda que de efeitos físicos, sempre passa pelo Espírito do médium.

5. As modalidades mediúnicas

Um aspecto importante dos esclarecimentos de André Luiz é que permitem compreender não somente como se dá o fenômeno mediúnico, mas também o porquê da existência de diferentes modalidades de mediunidade. Observamos, pelos trechos citados, que a faculdade mediúnica será deste ou daquele tipo conforme a região do organismo em que as células do perispírito apresentem maiores possibilidades de desvinculação das que lhe correspondem no corpo físico. Desse modo, segundo o exemplo dado, se for nos órgãos da visão que ocorre a maior liberdade das células do perispírito, a mediunidade assumirá a forma de vidência; se nos órgãos da audição, a de audiência; se nos da fala, a de psicofonia, e assim por diante.

Devemos notar, no entanto, que os órgãos a que se refere André Luiz são, conforme se depreende de outras passagens de sua obra, não tanto os órgãos periféricos olhos, ouvidos, mãos etc. , mas fundamentalmente as regiões do cérebro responsáveis por seu comando. De fato, a ciência mostrou que há no cérebro grupos de neurônios (células nervosas) mais ou menos especializados para as diversas faculdades sensoriais e motoras. No caso da visão, por exemplo, tais neurônios recebem, através do nervo óptico, os impulsos elétricos gerados na retina do olho, sinais esses que a alma interpreta como imagens. O mesmo se dá, mutatis mutandis, com os demais sentidos. No caso das funções motoras, ao comando da alma determinados centros cerebrais enviam, através dos diferentes nervos, impulsos elétricos aos músculos, resultando daí os movimentos corporais.

Kardec dividiu os médiuns em duas grandes categorias: os de efeitos físicos e os de efeitos intelectuais. Os primeiros são “aqueles que têm o poder de provocar efeitos materiais, ou manifestações ostensivas”; os segundos, “os que são mais especialmente próprios a receber e a transmitir comunicações inteligentes” (O Livro dos Médiuns, parágrafo 187). Para fins didáticos, é conveniente subdividir a categoria de efeitos inteligentes em dois grupos: efeitos sensoriais (percepção da realidade espiritual na forma de uma impressão dos sentidos) e efeitos intelectuais propriamente ditos (transmissão de uma mensagem inteligente pela palavra escrita, oral, por gestos etc.).

Apresentaremos agora um quadro sinótico com os principais tipos de fenômenos mediúnicos, associados às diversas modalidades mediúnicas. Trata-se de uma adaptação do que foi elaborado por Jayme Cerviño em seu livro Além do Inconsciente, reunindo apenas as modalidades mais importantes. Nesse interessante e original livro, o autor infere, a partir de estudos clássicos da psicologia experimental e da neurofisiologia, bem como de investigações sobre os fenômenos espíritas, quais regiões do encéfalo estariam associadas às diferentes categorias de fenômenos espíritas.

 

EFEITOSINTELECTUAIS

(mediunidades de

expressão cortical)

efeitos estritamenteintelectuais

(córtex frontal)

intuiçãopsicografia

psicofonia

psicopraxia


efeitos sensoriais(córtex extrafrontal)


vidênciaaudiência

sensitividade


telergiasons, movimentos,luzes, curas
EFEITOS FÍSICOS(mediunidades de

expressão subcortical)

teleplastiamaterializações
somatizaçãotransfiguraçãoestigmatização

 

6. O exercício da mediunidade

Na seção 2 deste trabalho vimos que se deve fazer uma distinção clara entre a mediunidade, enquanto faculdade, e o seu uso ou exercício. Se a faculdade em si é neutra, o mesmo não vale para o seu uso, que pode ser bom ou mau, dependendo da condição moral do médium.

Na Introdução de O Livro dos Médiuns Kardec destaca entre os objetivos da obra a orientação para que a mediunidade seja empregada de modo útil. Um requisito essencial para isso é a compreensão de sua natureza e mecanismos, no que o Espiritismo tem contribuído de forma decisiva. Respeitando a liberdade humana, ele não poderia prescrever normas de conduta para os médiuns de maneira cega, impositiva, sem um esclarecimento racional da sua necessidade. Éfacil constatar a justeza da afirmação de Kardec, nessa mesma Introdução, de que “as dificuldades e os desenganos com que muitos topam na prática do Espiritismo se originam na ignorância dos princípios desta ciência”.

A preocupação com a compreensão e o exercício corretos da mediunidade vem sendo partilhada pelos espíritas sérios, que se conscientizaram da necessidade do crescimento espiritual do médium para que sua faculdade seja bem empregada. Muitos dos grandes autores espíritas dos dois planos da vida nos têm legado estudos e lições preciosas sobre a mediunidade e seu objetivo. Procuraremos, no que se vai seguir, compilar alguns desses ensinamentos.

Comecemos, no entanto, com O Livro dos Médiuns, em cujo parágrafo 226 Kardec pergunta aos Espíritos (no 3):

Os médiuns que fazem mau uso de suas faculdades, que não se servem delas para o bem, ou que não as aproveitam para se instruírem, sofrerão as conseqüências dessa falta?

“Se delas fizerem mau uso, serão punidos duplamente, porque têm um meio a mais de se esclarecerem e não o aproveitam. Aquele que vê claro e tropeça é mais censurável do que o cego que cai no fosso.”

A questão da responsabilidade moral do uso da mediunidade é semelhante à das demais faculdades do homem. Aquele que emprega mal a inteligência, a palavra, os dotes artísticos ou a força física arcará com as conseqüências desse emprego, devendo expiar e reparar as faltas cometidas. No caso da mediunidade há um agravante, conforme se salienta na resposta dada, pois ela é poderoso recurso iluminativo.

É por meio da mediunidade que nos certificamos de nossa natureza imortal, fato de suma importância, em torno do qual gira todo o Espiritismo e sua doutrina moral. É ela que nos desvenda a vida futura, possibilitando-nos conhecer de modo abrangente os efeitos de nossas ações. Ajuizaremos então com mais acerto sobre o que nos convém ou não fazer, com vistas à nossa felicidade integral.

Para nós, os encarnados, a mediunidade constitui advertência contra o equívoco de tudo considerarmos do ponto de vista de nossos interesses materiais e imediatos, incentivando-nos a lutar contra o egoísmo, o embrutecimento dos prazeres, a estagnação do conhecimento.

Para os desencarnados sofredores, revoltados ou aturdidos, representa muitas vezes a via preferencial de despertamento, possibilitando-lhes retomar o progresso espiritual. A maioria das instituições espíritas em nosso país hoje em dia centraliza sua atuação mediúnica precisamente nessa tarefa, tão louvável pelos benefícios que espalha, mas também tão delicada em sua condução, exigindo muito preparo da equipe, quer no que concerne ao conhecimento doutrinário e à disciplina, quer quanto ao espírito fraterno e à devoção incondicional ao bem do próximo.

A esse respeito adverte Emmanuel no capítulo “Examinando a mediunidade” do livro Encontro Marcado:

O exercício da mediunidade nas tarefas espíritas exige larga disciplina mental, moral e física, assim como grande equilíbrio das emoções.

Na obra Educação e Vivência, lição “Mediunidade e problemas”, o Espírito Camilo tece as seguintes considerações, ainda dentro desse tópico:

Tristemente, porém, muitas dessas criaturas que se sabem ou se imaginam médiuns não são bafejadas pelos recursos de amadurecido estudo, a fim de que compreendam o que é que se passa nesse vasto território dos fenômenos psíquicos.

Seria de esperar que os indivíduos que se embrenham pelos bosques das percepções mediúnicas fossem caindo em si, aprendendo que todos terão que dar conta desses talentos formidáveis que lhes são concedidos, nas experiências terrenas, na condição de empréstimo, proporcionando liberdade e ventura íntimas, logrando evadir-se dos tormentosos episódios do pretérito culposo ou negligente.

E em Cintilação das Estrelas (capítulo 32) esse lúcido Espírito prossegue no assunto:

Em mediunidade é importante que o médium se aplique em melhorar-se a si próprio, ampliando as percepções, iluminando-se a cada hora, nas lutas que deve enfrentar, na pauta do cotidiano.

O desenvolvimento da mediunidade marcha ladeando o desenvolvimento do médium. Quanto melhor o indivíduo, maior a sua fulgência mediúnica no bem.

Aprimore-se o homem para que se lhe ampliem as posições de sensibilidade mediúnica.

Têm-se infelizmente observado muitos agrupamentos mediúnicos descuidados quanto às superiores finalidades da mediunidade, bem como quanto às diretrizes doutrinárias que devem guiar sua prática. Não raro desenvolvem suas atividades de forma ritualística, tratando os médiuns como simples máquinas de comunicação. No momento do intercâmbio, os trabalhadores assumem posturas formais, como que denotando concentração e devoção ao bem, mas que nem sempre se fazem acompanhar das atitudes íntimas correspondentes. Manoel Philomeno de Miranda comentou esse tópico no capítulo intitulado “Mediunidade e viciação”, do livro Sementeira da Fraternidade (p. 123):

O médium é filtro por cuja mente transitam as notícias da vida além-da-vida.

Nesse sentido, consideramos a concentração mental de modo diverso dos que a comparam a interruptor de fácil manejo que, acionado, oferece passagem à energia comunicante, sem mais cuidados… A concentração, por isso mesmo, deve ser um estado habitual da mente em Cristo, e não uma situação passageira junto ao Cristo.

Já analisamos na seção 3 a situação na qual o aparecimento da faculdade mediúnica se dá juntamente com desequilíbrios físico-espirituais variados, destacando o erro dos que consideram tais distúrbios como uma conseqüência da mediunidade em si. Em Educação e Vivência (p. 111), Camilo enfoca outro ângulo dessa questão:

A decantada “mediunidade de provas” não passa de episódio no qual alguém em provas e sérias expiações recebeu da Divina Misericórdia as excelênicas da sensibilidade mediúnica, através de cujas portas será chamado ou convocado à assunção de responsabilidades, bem como ao cumprimento dos deveres para com Deus, através do próximo.

Dessa forma a mediunidade, mesmo quando se apresente assinalada por impertinentes padecimentos dos médiuns, representa para eles a mão da Celeste Providência evitando dores maiores e tormentos mais acerbos.

A origem do nosso sofrimento, da nossa aflição, não reside na mediunidade, mas a bagagem de desacertos que ainda trazemos, acumulada nesta e em vidas pregressas. É por isso que nossos recursos mediúnicos, neutros em si memos, amiúde ainda se ligam aos mundos de sombra. Mal empregada, a mediunidade significará o cultivo da ignorância, a disseminação da dúvida e da mentira, o insuflamento do egoísmo e do orgulho, da vaidade e do personalismo, o verbo e o texto degradantes, a manipulação de forças mentais deletérias, a porta aberta às obsessões.

No capítulo 39 do livro Sementeira da Fraternidade, Vianna de Carvalho descreve a mediunidade como “canal cósmico por onde transitam seguras as consolações e esperanças para o atribulado espírito humano” (p. 179), destacando outro aspecto da mediunidade: o consolo que prodigaliza ao homem em sua vida de incertezas e de dores. Que de mais belo existe do que saber que o abismo que se imagina existir entre nós e os entes queridos que já partiram não é intransponível; que os sofrimentos que não conseguimos evitar têm causas justas ligadas ao nosso passado!…

Dádiva com que a misericórdia divina nos favorece, informando-nos de nossa natureza de seres imortais, a mediunidade bem empregada reveste as formas de esclarecimento acerca da vida além-túmulo, de consolo para os que perderam a esperança, de advertência salvadora para os equivocados, de amparo para os que cambaleiam, de recursos terapêuticos para os que enfermaram, de despertamento para os sofredores e os trânsfugas do dever que já cruzaram a aduana da morte. Daí a necessidade de desenvolvermos esse abençoado talento, nos trabalhos da caridade, nos exercícios constantes de benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições dos outros, de perdão das ofensas, conforme a questão 886 de O Livro dos Espíritos.

Reconheçamos, acima de tudo, que mais importante do que sermos bons médiuns, no que toca à faculdade, é sermos médiuns bons, a serviço de Jesus.

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(Artigo publicado em Reformador de agosto de 1987, pp. 240-43 e 253-55.)