Tamanho
do Texto

História do Cristianismo VIII

As Heresias Primitivas
Doutrinas Cristãs Básicas
Os Primeiros Pensadores Cristãos
Ascetismo e Monasticismo
Por que o Cristianismo Triunfou?
ANEXO – Heresias Primitivas

1 – As Heresias Primitivas

Uma heresia constitui-se num movimento de idéias contrárias ao que foi
definido pela Igreja em matéria de fé, ou qualquer ato ou palavra ofensiva à
religião.

As perseguições que afligiram a Igreja Cristã nos primeiros três séculos
começaram no tempo do seu fundador, pois o primeiro dos mártires da nova
religião foi o próprio Jesus. Os judeus que o crucificaram continuaram a atacar
seus seguidores. Tão acerba se tornou a disputa entre judeus e cristãos que os
romanos, muitas vezes, tiveram de intervir para manter a paz. Mas depois do ano
70 d.C., quando os judeus sofreram severamente numa insurreição contra o domínio
romano, não constituíram mais ameaça séria aos cristãos.

Ao mesmo tempo que sofria a pressão externa da perseguição, passava a Igreja
por uma série de crises internas surgidas de incertezas, entre os próprios
cristãos, quanto à exata definição de suas crenças. Os próprios ensinamentos de
Jesus não haviam sido elaborados num sistema completo e estavam sujeitos a
várias interpretações. Nenhum dos Apóstolos, igualmente, procurara expressar a
mensagem da nova religião como um corpo sistemático de idéias. Cada missionário
pregava sua própria versão do Cristianismo e cada congregação determinava suas
próprias crenças. Alguns dos que haviam sido criados como judeus continuavam,
após a conversão, a aderir à Lei Hebraica do Velho Testamento, ao passo que
outros, que haviam sido pagãos, procuravam integrar sua nova religião com os
costumes do culto pagão. Tais diferenças de crença e práticas davam origem a
debates sobre o que era ortodoxo e o que era herético, isto é, sobre o
verdadeiro e o falso em questão de ensinamento cristão.

Debates dessa espécie tornaram-se mais intensos quando o cristianismo entrou
em contato com a filosofia grega, pois os gregos que residiam nas terras do
Oriente helenístico davam tanta importância à compreensão quanto os judeus à
retidão. À medida que se espalhava entre eles o Cristianismo, começaram a fazer
perguntas que a Igreja era obrigada a responder, de modo que a Igreja, que até
então se baseara quase inteiramente na fé, se via agora forçada a estabelecer
explicações racionais para a crença cristã.

As fronteiras ideológicas do Cristianismo tornavam-se frágeis e se diluíam em
tendências heterogêneas. Estas, ao se afirmarem, criaram uma confrontação
inevitável entre as múltiplas interpretações doutrinárias e as várias tradições
cristãs. Como todas as correntes reivindicavam a legitimidade apostólica,
tratava-se de definir o que estaria de acordo ou contra a pregação tradicional
dos Apóstolos. Essa confrontação veio a caracterizar a divisão entre elementos
ortodoxos e heterodoxos no pensamento cristão elaborado. Tornara-se ortodoxia a
tendência numérica e politicamente majoritária dentro do Cristianismo, que se
impôs como a verdadeira Igreja, formuladora das normas de fé, prevalecendo em
detrimento das posições divergentes minoritárias.

As heresias representaram, relativamente ao corpo doutrinário constituído,
tendências heterodoxas, movimentos dissidentes e grupos numericamente
minoritários, quase sempre desligados da Igreja cristã majoritária, graças às
excomunhões conciliares ou mesmo por sua própria iniciativa separatista.

Do ponto de vista histórico, a ortodoxia triunfou como instituição jurídica e
como política moderadora, fundada na primazia da Igreja Romana. Mas, do ponto de
vista doutrinário, seu sucesso deveu-se a uma elaboração teológica mais
consistente do que as numerosas crenças desorganizadas e freqüentemente
incoerentes do desenvolvimento do pensamento cristão. Na verdade, a lógica da
ortodoxia se firmou nos elementos fixos da tradição cristã: a doutrina
fundamental primitiva, a revelação bíblica e a tradição oral, resumidas e
definidas no Credo (encerra os artigos fundamentais da fé cristã). Ao lado
disso, existiram no Cristianismo antigos elementos provenientes do contato com a
cultura helênica, que adicionaram novidades filosóficas ao núcleo doutrinário.
As correntes chamadas heréticas teriam se ressentido mais fortemente das
influências pagãs, acabando por rejeitar doutrinas definidas pela comunidade
eclesiástica majoritária e deteriorando o que se considerava conteúdo específico
e original da fé cristã.

Uma das controvérsias mais básicas referia-se à natureza de Cristo. A posição
que a Igreja aceitava como ortodoxa era a de ser Jesus a um tempo Deus e homem,
idêntico ao Pai Divino sem deixar de compartilhar dos atributos de um ser
humano. Não obstante, certo número de cristãos continuava a manter crenças
heréticas, umas negando que Jesus fosse homem, outras negando que ele fosse
idêntico a Deus. Os docetistas, por exemplo, acreditavam que o corpo
humano de Jesus era apenas um fantasma, e os nestorianos ensinavam que
Deus apenas habitava no corpo de Jesus, como num templo. Os monofisitas,
dos quais descendem os atuais coptas do Egito, os jacobitas da Síria e os
cristãos da Armênia e da Abissínia, insistiam em que a natureza de Jesus
era inteiramente divina. A mais forte da heresias era a liderada por Ário
(aprox. 256-336), ascético e eloqüente sacerdote egípcio. Ensinava que Jesus não
era da mesma natureza de Deus, mas também não era um homem como os demais; sua
natureza, antes, era algo como a de um anjo – menos do que de deus e mais do que
humano.

Ário conquistou tantos adeptos dentro da Igreja que acerba disputa sobre seus
ensinamentos logo ameaçou a paz de todo o Império. No interesse da tranqüilidade
pública, o Imperador Constantino, portanto, tomou medidas para resolver a
questão de qualquer modo. Em conseqüência, convidou os dirigentes da Igreja a se
reunirem em Nicéia, e mais de trezentos bispos assim se reuniram para o primeiro
concílio ecumênico da Igreja. Esse Concílio elaborou uma síntese da crença
cristã, conhecida como o Credo de Nicéia, que definiu a natureza da Santíssima
Trindade e condenou o arianismo como heresia. Apesar, porém, dessa condenação, o
arianismo continuou a mostrar muita força, mas em 380, o governo imperial negou
tolerância aos arianos e, em 381, outro concílio ecumênico, reunido em
Constantinopla, reafirmou e ampliou as doutrinas trinitárias ortodoxas expressas
no Credo de Nicéia. Daí por diante, o arianismo desapareceu em todo o Império.

Outra grande disputa surgiu em torno do problema do bem e do mal. A mais
desafiadora das heresias nascidas desse debate foi o gnosticismo (1),
que apareceu pelos meados do segundo século. Como alguns dos cultos religiosos
orientais, o gnosticismo traçava nítida separação entre a matéria, que é o mal,
e o espírito, que é o bem. De acordo com esse conceito, os gnósticos encaravam o
espírito divino como superior tanto ao deus do Antigo testamento como a Jesus,
os quais se haviam preocupado com o mundo físico. E ensinavam que o caminho da
redenção do homem passava pelo ascetismo e pelo misticismo, por meio dos quais
seu espírito podia ser libertado do mal do mundo material e conduzido à união
com o espírito divino.

A Igreja ortodoxa condenou esses ensinamentos, que colocavam o Deus cristão
abaixo de outro ser ainda mais espiritual, que declaravam não ser o homem
responsável por suas ações uma vez que não podia existir mal moral, e que
consideravam o ascetismo e o misticismo mais importantes do que a conduta dos
homens para com seus semelhantes durante a vida terrena.

2 – Doutrinas Cristãs Básicas

As heresias surgidas em dissensão dos ensinamentos ortodoxos da Igreja
testemunham a dificuldade da tarefa de definir as doutrinas da nova religião.
Contudo, o desaparecimento gradual dessas heresias testemunha também o sucesso
da Igreja na formulação das crenças que deveriam permanecer como o núcleo da
doutrina cristã ortodoxa. Nessas disputas de supremacia e polêmicas teológicas,
a Igreja de Roma exerceu um papel decisivo, na medida em que as posições
doutrinárias da capital tendiam a se qualificar como verdadeiras. O Cristianismo
romano conseguiu impor-se como ortodoxia no conjunto da cristandade, estendendo
sua influência graças à constituição do conceito de sucessão apostólica, ou
seja, à crença de ter o Príncipe dos Apóstolos como fundador de sua comunidade,
à supremacia política enquanto capital e através da ajuda material às demais
igrejas.

Dentre as principais doutrinas cristãs básicas tem-se, primeiro, a crença de
que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são membros iguais da Trindade que é Deus,
sendo, cada um, uma expressão da perfeição; em segundo lugar, que Jesus era
tanto Deus como homem, nascido de uma virgem, que morreu para redimir os outros
homens e depois ressuscitou dos mortos; em terceiro, que todos os cristãos são
membros de uma só Igreja, que está sob guia divina; em quarto, que o clero é o
sucessor dos Apóstolos; e, em quinto, que, por meio da Igreja, os homens podem
libertar-se do inferno e entrar na vida eterna do Céu. Sobre essas crenças, que
constituem o núcleo de sua dogmática, a Igreja iria permanecer firme através de
todos os séculos de sua existência.

3 – Os Primeiros Pensadores Cristãos

O pensamento teológico cristão é tão antigo quanto a primeira formulação da
fé em Jesus, o Cristo. Os escritos do Novo Testamento representam os primeiros
ensaios da reflexão teológica, reunidos na forma de testemunhos originais da fé.
A história da teologia começa e se desenvolve a partir dessas fontes.

A primeira coleção de escritos teológicos surgidos depois do Novo Testamento
é composta de documentos agrupados sob o título de Padres Apostólicos. Foi o
estudioso francês Jean Cotelier quem assim os classificou no séc. XVII.
Inicialmente faziam parte dessa coleção: a Epístola de Barnabé, a Carta de
Clemente Romano, Cartas de Inácio de Antióquia, a Carta de Policarpo, e o Pastor
de Hermas. Em 1765 foram incluídos na lista os fragmentos de Pápias e de
Quadrato, e a Epístola a Diogneto. Mais tarde, em 1873, descobriu-se o
Didaquê
(2), concluindo-se com ele a coleção. São
obras de estilo simples, interessadas em dar testemunho da vida cristã em face
das perseguições a que era submetida a Igreja, com algumas indicações a respeito
da estrutura eclesiástica incipiente.

Os cristãos, logo no início de sua história, foram considerados perigosos
para o império. Ao combatê-los, as autoridades atribuíam-lhes inconsistência
filosófica, moral e religiosa, acusando-os de minar os fundamentos da sociedade
vigente.

Enquanto os Padres Apostólicos se dedicavam à vida interna da Igreja e à
elevação moral e espiritual dos seus membros, os apologistas atuavam na
fronteira com o mundo e com o pensamento pagão. Em muitos casos davam a seus
escritos uma forma legal, solicitando que as autoridades verificassem em que
consistia o Cristianismo. As acusações contra os cristãos se referiam ao seu
ateísmo e anarquismo (Justino, Apologia 5,6; 11,12), pois recusavam-se a
participar dos cultos ao imperador e a servir ao Estado. Também eram acusados de
licenciosidade por celebrarem a eucaristia secretamente à noite. Quadrato (125,
provavelmente de Atenas), o mais antigo dos apologistas, apresentou ao imperador
Adriano uma defesa da fé cristã, da qual se conhece apenas um trecho citado por
Eusébio (Apologia 55).

O movimento apologético do séc. II procurou defender a fé cristã junto às
autoridades. Foram seus principais escritores Justino Mártir (105 – 165), que em
suas Apologias e outras obras expõe a fé cristã, elaborando já certas
doutrinas fundamentais, e Tertuliano (160 – 230), extremamente rígido em suas
idéias, a ponto de terminar a vida na seita dos montanistas (3).
Se há na teologia incipiente de Justino certo descortino universalista e grande
abertura ao diálogo com o mundo da cultura, já em Tertuliano o âmbito da fé se
restringe ao puro domínio da Igreja e se distancia da vida civil.

O movimento gnóstico do séc. II buscava a união com Deus através de práticas
secretas apenas conhecidas de iniciados. Acusava os cristãos de não possuir a
verdade, comunicada por Jesus nos quarenta dias entre a Ressurreição e a
Ascensão. Contra o gnosticismo não só escreveu Justino Mártir, mas
principalmente Ireneu, bispo de Lyon (126 – 200). Sua obra principal chama-se
Adversus Haereses
(Contra os Heréticos) e se divide em cinco livros. É fonte
preciosa para conhecer o pensamento gnóstico e cristão. Ireneu desenvolveu a
doutrina da sucessão apostólica dos bispos, da Bíblia, dos credos e do batismo,
como instrumento de defesa da fé cristã contra os ataques cada vez mais
insistentes das heresias.

Foi em Alexandria, porém, que se desenvolveram os primeiros grandes sistemas
teológicos do cristianismo. Clemente (150 – 215) e Orígenes (185 – 254)
procuraram relacionar a fé com o mundo filosófico e introduzir o pensamento
cristão nos círculos intelectuais da sociedade. Orígenes é principalmente
importante porque estabelece critérios para interpretação das Escrituras,
encontrando no texto sagrado três significados distintos: o somático ou literal,
o psíquico ou moral, e o místico ou espiritual.

Pouco a pouco as discussões teológicas se vão concentrando em torno da pessoa
de Jesus, o Cristo. Justino Mártir e os apologistas haviam empregado o conceito
de lógos para comunicar à mentalidade filosófica grega as idéias
fundamentais da teologia judaico-cristã a respeito de Jesus. A divindade do
Cristo havia sido pressuposta desde o início do testemunho do Novo Testamento.
Tertuliano e Ireneu haviam falado na Trindade. Orígenes dizia que entre as três
pessoas divinas (Pai, Filho e Espírito Santo), havia certa subordinação natural,
muito embora não visse entre as pessoas qualquer diferença de substância. A
noção de uma trindade transcendental parecia a muitos demasiadamente metafísica,
com ressonâncias gnósticas.

A pergunta fundamental da teologia era esta: como entender Jesus, o Cristo, à
luz dessa trindade transcedental? Surgiu, então, o movimento chamado
monarquismo
(do gr. monárkhes, “soberano”), que ressaltava a unidade
soberana de Deus em relação com o Cristo. Havia dois tipos principais de
monarquismo: o dinâmico, que considerava o Cristo apenas homem, adotado
por Deus, sem qualquer relação metafísica com o Pai; e o modalista, que
considerava o Cristo realmente divino, idêntico ao Pai. Por detrás das
preocupações dessas duas escolas estava o problema da salvação: como pode Jesus
salvar se não for Deus? Como considerá-lo Deus se sofreu na cruz? Se Jesus é
Deus, então Deus não é uno. Que lugar ocupa o Cristo na economia da salvação e
da vida divina? Assim, foram inúmeras as doutrinas controversas que surgiram
principalmente em torno da natureza do Cristo.

Melhor se pode compreender quão difícil era a tarefa de distinguir entre a
verdadeira doutrina cristã e a heresia, quando se verifica que os dois maiores
apologistas da Igreja foram mais tarde condenados por haver propagado heresias.
Um deles foi Orígenes (aprox. 185-254), famoso como mestre em Alexandria,
nos princípios do terceiro século. Consciente da importância básica da Bíblia
para o pensamento cristão, escreveu muito, tentando resolver alguns problemas
que surgiam em sua interpretação. Depois de sua morte, todavia, certo número de
seus ensinamentos foi posto em discussão e, 300 anos mais tarde, um concílio da
Igreja decretou que seus escritos continham diversas doutrinas heréticas, que
Orígenes inocentemente desenvolvera ao tentar harmonizar filosofia e teologia.

Falta similar foi encontrada na obra de Tertuliano (aprox. 160-230),
zeloso homem da igreja que vivia em Cartago. Defensor apaixonado da Igreja,
Tertuliano fez uso dos seus conhecimentos da lei e dos clássicos para refutar
várias acusações de crime levantadas contra os cristãos e para demonstrar a
superioridade religiosa e filosófica do cristianismo sobre as crenças pagãs.
Foram, os dele, os primeiros escritos cristãos importantes em língua latina, que
ele estabeleceu como a língua da Igreja nas terras ocidentais. Contudo, apesar
da ardente retórica e da apaixonada convicção com que procurava sustentar a
doutrina ortodoxa, também foi acusado de crenças heréticas.

Crisóstomo (aprox. 344-407) – Criado em Antióquia, seus grandes dotes
de graça e eloqüência como pregador levaram-no a ser chamado a Constantinopla,
onde se tornou patriarca, ou arcebispo. Como os outros Apologistas, ele
harmonizou o ensinamento cristão com a erudição grega, dando novos significados
cristãos a antigos termos filosóficos, como a caridade. Em seus sermões,
defendia uma moralidade que não fizesse qualquer transigência com a conveniência
e a paixão, e uma caridade que conduzisse todos os cristãos a uma vida
apostólica de devoção e de pobreza comunal. Essa piedosa mensagem, entretanto,
tornou-o impopular na corte imperial e mesmo entre alguns membros do clero de
Constantinopla, de modo que acabou sendo banido e morreu no exílio.

Ambrósio (aprox. 330-397) – Como Bispo de Milão, conquistou influência
em razão de sua dominadora personalidade assim como por seus escritos. A ele é
atribuído o sucesso em obrigar o Imperador Teodósio a fazer penitência por seus
pecados e, assim, a admitir que estava sujeito aos mesmos ditames morais que os
demais cristãos. Essa realização dramática de Ambrósio muito fez para
estabelecer a tradição ocidental de que o clero, como servidor da Igreja, tinha
o poder de disciplinar mesmo os mais elevados dirigentes seculares. Ambrósio
também ajudou a cristianizar e latinizar a herança do ensinamento pagão.

Jerônimo (aprox. 347-419) – Seus dotes lingüísticos o predispuseram
para sua obra principal – a tradução da Bíblia em latim literário, dos vários
textos hebraicos e gregos existentes. Sua tradução, conhecida como a Vulgata, ou
Bíblia do Povo, foi amplamente utilizada nos séculos posteriores como compêndio
para o estudo da língua latina, assim como para o estudo das Escrituras.

Apolinário, de Laodicéia – Bispo no séc. IV, colocara-se a serviço da
ortodoxia e se fizera acérrimo defensor das doutrinas rigorosamente ortodoxas de
Atanásio. Em seu zelo pela fé tradicional, Apolinário inverteu o erro de Ário,
ao afirmar que o lógos divino preenche o lugar da alma racional em Jesus. Em
Cristo havia apenas a natureza divina. Sua doutrina foi condenada no Concílio de
Constantinopla, em 381. A atitude divinizante de Apolinário era reflexo da
atmosfera mística da Igreja cristã de Alexandria.

Nestório, bispo de Constantinopla – Os cristãos de Antióquia e de Roma
eram muito mais realistas que os do Oriente. Para os teólogos do Ocidente a
salvação nada significaria, se Jesus não tivesse sido plenamente humano. O
principal representante dessa tendência era Nestório, bispo de Constantinopla a
partir de 428. Para ele a Virgem Maria não deveria ser chamada theotókos (Mãe de
Deus), mas simplesmente theokýmõn ou theophóros, portadora do cristo. Ela havia
concebido apenas um homem, que, mais tarde, pela graça de Deus, se havia tornado
instrumento da divindade. Nestório fazia questão de não misturar a natureza
humana com a divina, muito embora tivesse que ressaltar, para isso, o caráter
inteiramente humano de Jesus.

4 – Ascetismo e Monasticismo

Não podemos esperar compreender o espírito da primitiva Igreja Cristã sem
entender seus ideais de ascetismo e monasticismo.

Por trás do movimento monástico, achava-se o zeloso cristão empenhando-se
fervorosamente para conseguir a união de sua alma com Deus, mesmo enquanto ainda
a viver na terra, bem como de preparar-se para essa união após a morte. A fim de
realizar tal união, fazer com que a alma dominasse o corpo, procedia a uma vida
solitária. Isso significava ascetismo, renúncia completa de todas as tentações
do mundo material, aceitação voluntária de sofrimentos e privações. Para
alcançar esse desapego do mundo, devia ele viver em solidão ou juntar-se com
pequeno número de outros de espírito e temperamento idênticos.

O impulso para o ascetismo e o monasticismo não é peculiar ao cristianismo.
Aparece em outras religiões, tanto antes como depois do tempo de Cristo, e entre
alguns indivíduos que não professam qualquer religião.
No terceiro e quarto séculos, outras influências deram acrescida força ao
impulso para o ascetismo e o monasticismo e levaram esses ideais a uma
realização prática. Uma delas foi a influência das filosofias dualistas do
gnosticismo e do neoplatonismo. Ainda que a Igreja condenasse essas filosofias
como pagãs ou heréticas, cristãos zelosos não podiam deixar de dar ouvidos a
seus ensinamentos – que se pareciam com os da própria Igreja – de que o universo
é a arena de luta entre o bem e o mal, de que o mundo material é o reino do mal
e o mundo espiritual é o reino do bem, e de que os homens, portanto, deveriam
esforçar-se para entrar no mundo do espírito.

Outra influência, contudo, surgiu das novas circunstâncias em que se achou a
própria Igreja, desde que o Cristianismo se tornara uma religião aceita e mesmo
oficial. Não mais, como nos séculos anteriores, podia o cristão demonstrar seu
zelo simplesmente aceitando o risco do martírio ou dedicar-se a propagar a fé
como missionário. Agora, os que desejavam dar prova heróica de seu devotamento
religioso deviam procurar provações maiores do que as que lhes viriam
simplesmente em virtude de serem cristãos e continuarem a tomar parte nos
empreendimentos normais do mundo, ou mesmo em seguir a vocação do sacerdócio.

A Igreja como instituição não estabeleceu o monasticismo. Foi ele um
movimento de entusiasmo e auto-sacrifício, imbuído de um espírito de negação
referente ao mundo cotidiano, movimento de leigos que a Igreja depois abençoou
como integrado em seu próprio espírito.

Esse movimento deu origem à criação dos conventos, uma vez que para levar uma
vida de ascetismo era preferível agrupar-se em comunidades monásticas do que
viver solitários como eremitas. Regras foram estabelecidas exigindo dos monges
votos de pobreza, castidade e obediência a seus superiores, uma rotina de
orações e meditações e a realização de certa espécie de trabalho. As rotinas
prescritas eram rigorosas, mas não permitiam que os monges exagerassem seu
ascetismo, pois mostrava como ideal a autodisciplina, em vez do autocastigo.

5 – Por que o Cristianismo Triunfou?

Qualquer estudo do começo do Cristianismo deve salientar seu triunfo
posterior, dentro apenas de quatro séculos após a morte de Jesus. E isso
inevitavelmente suscita a pergunta: por que obteve ele esse triunfo?

O próprio Cristianismo oferece resposta à indagação: a Igreja considera-se
uma instituição divina, fundada por Deus e sustentada para sempre pelo poder da
Divina Providência. Mas esta resposta somente satisfaz os que compartilham da fé
cristã num poder sobrenatural. Outras respostas, baseadas na razão e na
história, e não na fé religiosa, também podem ser dadas.

Uma dessas razões do sucesso do Cristianismo encontra-se na época do seu
aparecimento. No tempo em que Jesus pregou sua mensagem, os homens de toda parte
do Império sentiam a necessidade de uma nova religião. Perdera-se a confiança
nas antigas crenças religiosas. Nada restava delas, a não ser a crença vaga de
que Deus devia ser um e onipotente, e de que a ética devia basear-se num bem
absoluto.

Outra explicação do sucesso da nova religião é a força da Igreja como
instituição. A Igreja mostrou-se sábia ao preferir abrir a todos os que
quisessem ser admitidos nela o ingresso em sua fraternidade: mulheres e homens,
ricos e pobres, escravos ou livres, sem distinção de raças. Foi sábia, também,
em adaptar-se aos costumes dos tempos, em todas as questões que não
comprometessem suas crenças fundamentais.

O devotamento da Igreja ao princípio da fraternidade dos homens submetidos a
Deus explica mais do que a razão pela qual o Cristianismo substituiu as outras
religiões do antigo mundo mediterrâneo.


(1) Gnosticismo – Doutrina
filosófico-religiosa surgida nos primeiros séculos da nossa era, que visava a
conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio
da gnose (Conhecimento, sabedoria).
(2) Didaquê – Escrito apócrifo, anterior ao ano
150, tratava de instrução moral, da liturgua, da disciplina e dos ofícios
eclesiásticos, além de uma exortação final sobre breve retorno de Jesus e a
ressurreição dos mortos.
(3) Montanistas – Sectários do Montanismo,
heresia de Montano (séc. II), que professava uma encarnação do Espírito Santo e
extremo rigorismo moral.


TEXTOS EXTRAÍDOS DE:

  • DENIS, Léon. Crisitianismo e Espiritismo.
  • Atlas da História Universal.
  • Enciclopédia Barsa.
  • Enciclopédia Britânica.
  • Coletânea de Textos Filosóficos – ACEEF – U.E.C.
  • SAVELLE, Max. História da Civilização Mundial.
  • Diversas Religiões. Abril Cultural.

ANEXO
Heresias Primitivas

PELAGIANISMO – Doutrina que, professada no século IV, por Pelágio e
seus partidários, é a primeira heresia do Ocidente cristão. O pelagianismo
repousa essencialmente na concepção de acordo com a qual o homem pode sempre
escolher igualmente entre o bem e o mal. Para o exercício dessa escolha, pensam,
o homem dispõe livremente do seu corpo e de seus membros. Sua vontade está
sempre pronta a enfrentar a dupla opção e só é plenamente livre enquanto
permanece capaz dessa escolha. Pelágio, que era uma asceta (religiosos que
renunciavam o mundo e praticavam mortificação), não deixa de insistir no valor
do homem e de sua autonomia.

Desenvolve a idéia de que o homem é a obra-prima de Deus, do qual recebeu,
por um privilégio único, a razão, quer dizer, a consciência de seus atos. Assim,
é a razão que permite ao homem dominar as outras criaturas e os seres que lhe
podem ser superiores pela força. É a razão que lhe permite conhecer Deus.

Os pelagianos só admitem o pecado pessoal, negando a existência do pecado
original. A natureza humana, segundo eles, não pecou. Pecou apenas o indivíduo.
Não é possível que alguém peque para com outrem, assim como não é possível que
um redima o outro. O homem, único autor de sua queda, é também único autor de
sua regeneração. A redenção de Cristo não teve por objetivo cancelar um pecado
coletivo e hereditário do gênero humano. A finalidade da redenção seria apenas a
de neutralizar, pelo bom exemplo do segundo Adão, o mau exemplo do primeiro
Adão. Assim como este arrastou o homem para a morte, pela sua desobediência
orgulhosa, assim também Jesus Cristo mostrou, com sua obediência humilde, o
caminho da ascensão espiritual ao Deus que tudo perdoa.

Naturalista e racionalizante, mas sempre profundamente religiosa, a doutrina
pelagiana recusa ferozmente toda concepção do pecado como causa da morte, bem
como a de uma fraqueza moral herdada de uma falta primeira. Concebe dessa forma
a redenção, ensinando que o homem pode, em virtude tão-somente de seu esforço
pessoal, atingir a santidade perfeita.

MANIQUEÍSMO – O maniqueísmo é uma gnose. Como toda gnose, é
essencialmente fundada em um “conhecimento” que traz com ele próprio a salvação,
salva por si mesmo, pelo fato de que, revelando ao homem sua origem, o que era e
onde estava antes de ser “jogado” no mundo, o torna consciente do que é em sua
realidade própria, explica-lhe sua condição presente e o modo de libertar-se
dela, garantindo-lhe o que virá a ser, o que é chamado a tornar-se: conhecimento
que é, antes de mais nada, conhecimento simultâneo de si mesmo e de Deus em si e
que pretende ser um saber absoluto.

Essa gnose se exprime em forma mítica. O mito se desenvolve, pois, em três
fases: um “momento anterior”ou “passado”, no qual havia distinção, dualidade
perfeita de duas substâncias (espírito e matéria, o bem e o mal, a luz e as
trevas); um “momento médio”ou “presente”, no qual a mistura se produziu e
continua a durar; um “momento futuro” ou “final”, em que a divisão primordial
será restabelecida. Aderir ao maniqueísmo, consiste pois, em professar essa
dupla doutrina dos “dois princípios”ou das “duas raízes” e dos “três tempos” ou
dos “três momentos”.

DONATISMO – O donatismo é um cisma que dividiu a Igreja, na África,
durante três séculos e meio, do fim da perseguição de Diocleciano aos cristãos
(a era dos mártires) à invasão árabe. Divergências inconciliáveis
estabeleceram-se entre os cristãos a respeito da atitude a assumir em face dos
crentes e mesmo dos bispos que haviam falhado durante a perseguição.

O bispo Donato organizou o partido dos intransigentes, para os quais a
validade dos sacramentos
dependia da santidade dos ministros. Do lado católico, estavam os partidários de
Roma, liderados por Ceciliano, que formou seu partido, e que disputava com
Donato pela sede de Cartago.

Sobre os sacramentos e a teologia da Igreja, reflexão da qual Santo Agostinho
participou amplamente, estabeleceu que o Cristo é o verdadeiro autor dos
sacramentos, e que o papel dos clérigos era intermediar os ritos (batismo, por
exemplo), pois a santidade dos sacramentos é do Cristo.

ARIANISMO – O arianismo – do nome de Arios, padre de Alexandria, do
começo do século IV, tradicionalmente considerado o pai dessa heresia – é uma
reflexão doutrinária visando a aprofundar o dogma cristão da Trindade e a
esclarecer o problema das relações, no interior do Ser de Deus, das três
pessoas: Pai, Filho e Espírito.

Essa corrente de pensamento, declarada herética a partir do Concílio de
Nicéia (325), surgiu em reação à pretensão da Igreja Romana de absorver a pessoa
do Filho na pessoa do Pai, enquanto os arianos combatiam a unidade e a
consubstancialidade
em três pessoas da Trindade e sustentava que o Verbo,
tirado do nada, era muito inferior a Deus Pai. Consideravam Cristo como
essencialmente perfeito, mas negavam a sua divindade. Esta doutrina, sustentada
por vários imperadores de Constantinopla, como Constâncio Valente,
contrabalançou durante algum tempo o poder do catolicismo. Foi condenada pelo
Concílio de Niceia (325). O Concílio de Constantinopla (381) desferiu-lhe rude
golpe.

(Publicado no Boletim GEAE Número 415 de 17 de abril de 2001)