Esse título vem de uma lembrança muito grata da minha infância. Minha mãe, entre outras coisas era também uma pessoa muito medrosa. Diria que, paradoxalmente, seus medos eram tão grandes quanto a sua fé e a força de suas orações. Como protestante que sempre foi, jamais poderia invocar Santa Bárbara durante uma tempestade com trovões e relâmpagos.Todavia, se não podia fazer tal invocação, podia sim, durante uma tempestade, nos levar para o quarto, a mim e aos meus irmãos, trancar a porta e lá, segundo ela em segurança, nos ensinar a fazer orações e ficar quietinhos até que a tempestade passasse por completo e também os trovões e os clarões dos relâmpagos. Em algumas ocasiões também aproveitava para nos fazer cantar corinhos aprendidos na igreja e na Escola Dominical. Também vem dessa época outra lembrança muito agradável. Era muito comum faltar energia elétrica em casa, e quando isso acontecia à noite, nós nos reuníamos em volta da vela que minha mãe acendia e juntamente com ela e meus irmãos ficávamos ali conversando, dando boas risadas e contando histórias.
Intimamente, eu ficava torcendo para que a luz levasse muito tempo a voltar, pois enquanto isso desfrutávamos daquele momento mágico e aconchegante. A sensação era de estarmos ilhados no universo – como se houvesse apenas o clarão da vela – nessa clareira podíamos nos alegrar doce e ingenuamente reunidos em segurança amorosa protegidos pela luz daquela vela que nos iluminava.
Lembro-me das sombras projetadas nas paredes e no telhado de telhas aparentes, pois a minha casa naquele tempo não possuía, além do telhado propriamente dito, nenhuma forração quer fosse de madeira ou outra qualquer. Mais de uma vez, quase vimos a vela acabar completamente. Cada milímetro daquela parafina esbranquiçada que se derretia aos poucos, recriava em mim um estado de espírito de alegria infantil intensa que me enchia de pensamentos mágicos.
O mundo naquela hora, tinha apenas o tamanho do halo daquela luz de vela e era como se naquele mundo fôssemos os únicos habitantes. Tanta alegria e tantas sensações carinhosas pelo simples fato de estarmos juntinhos uns dos outros sob a proteção de minha mãe.
Estou evocando essas lembranças pensando nessa sensação de proteção e segurança tão simples vindas daqueles momentos, o que me faz lembrar de toda a insegurança e falta de proteção em que vivemos hoje.
O mundo parece ter se transformado num lugar totalmente inseguro para se viver. As nossas cidades e as nossas casas deixaram de representar abrigo de todos os males. Andar pelas ruas é risco constante e torna-se difícil resistir à tentação de repetir o chavão que diz “que saímos de casa pela manhã sem saber se voltaremos à tarde”.
O trânsito, os assaltos e as violências de toda espécie, as enchentes repentinas, as balas perdidas, e, por fim, os desabamentos. Tantos acontecimentos que não podem ser dissimulados ou camuflados por nenhuma luz de vela reunindo irmãos com sua mãe.
Os comportamentos dos filhos com relação aos seus pais, também se tornaram acontecimentos inexplicáveis tanto para especialistas sociais, ou do comportamento humano, como das religiões e nenhuma loucura pública pode justificar aberrações comportamentais de filhos e netos cometendo atos de violência explícita contra seus entes, até então, queridos.
O que aconteceu com aquele mundo seguro e tranqüilo, alegre e amoroso, aconchegante e carinhoso que existia iluminado pela luz de uma vela? Para onde foi a nossa segurança que não precisava de grades e nem de cadeados e chaves especiais? O mundo atual nos faz mergulhar direto nos nossos medos mais profundos. Nos insere no inferno dos nossos temores e no tormento das ameaças às quais ficamos dia a dia mais expostos. Se histórica e filosoficamente o ser humano se reconhece medroso e temeroso diante da morte, mais ainda nos reconhecemos frágeis e vulneráveis nos dias atuais.
Acontecimentos no mundo inteiro nos são aproximados pelos meios de comunicação. Sempre há um cinegrafista amador para produzir imagens exclusivas de todo e qualquer infausto acontecimento. Atualmente telefones celulares e micro câmeras espreitam a intimidade dos nossos atos revelando tanto coisas curiosas como obscenidades que as pessoas podem cometer.
Não conseguimos mais ficar imunes às imagens da fome em paises distantes uma vez que a existente em nosso país, de tão próxima de nós, parece ter saído do foco dos nossos sentidos. Também não podemos nos esquivar das imagens de pessoas mortas por um ataque suicida em Bagdá ou qualquer outra região do mundo.
Podemos ver ao vivo as imagens das enchentes na China ou do salvamento de pessoas isoladas numa avalanche de neve em alguma montanha de esqui em regiões geladas. O fraco e limitado halo da luz produzida pela vela que queima lentamente não tem mais luminosidade suficiente, sequer para produzir sombras à luz da TV que, acesa e colorida, nos ilumina até mesmo nas primeiras horas do nosso sono, qual abajur prejudicial à nossa saúde.
Desde que o homem “roubou o fogo dos deuses”, não tínhamos sofrido as interferências de tamanha revolução na luz dos nossos dias ou das nossas noites. As trevas do mundo, parecem estar escondidas dentro dos seres humanos em forma de medos, de ansiedades, de desesperos e de taciturnas neuroses e apreensões sobre o dia de amanhã que pode nos tragar. Sofremos aterrorizados na iminência de sucumbirmos como habitantes de uma Atlântida moderna a cada momento. “Se a civilização multiplica as necessidades, também multiplica as fontes de trabalho e os meios de vida; mas é preciso convir que nesse sentido ainda muito lhe resta a fazer. (…) A Natureza não poderia ser responsável pelos vícios da organização social e pelas conseqüências da ambição e do amor próprio. (Comentários acrescentados à resposta à pergunta 707 do LE)”.