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Meditações acerca da inteligência

Meditações acerca da inteligência

Ninguém diria com maior autoridade que o próprio Kardec que o Espiritismo é
doutrina essencialmente evolutiva, o que significa dizer que não nos foi trazida
inteira acebada, cristalizada e dogmática. O Espiritismo é um corpo vivo de
pensamento e, como tal, suscetível de desdobramentos cujos limites não temos
condições de alcançar ou prever. É preciso observar bem, no entanto, onde e
quando, como e porque devemos e podemos trabalhar as suas inúmeras sínteses a
fim de que, movidos pela intenção de desenvolver certos aspectos doutrinários,
não cometamos o desacerto de deformá-los irreparavelmente. E isto é fácil de
ilustrar, quando nos lembramos de que toda a complexa teologia moderna cita
cristã não é mais do que o “desdobramento” dos simples e luminoso conceitos
evangélicos formulados pelo Cristo. Como foi possível partir de afirmativas como
“… não busco minha vontade e sim a vontade daquele que me enviou”, para
chegar-se, por exemplo, à formulação da divindade de Jesus? Por onde entrou,
nessa teologia, o dogma do pecado original? Como nasceu a doutrina das penas
eternas? Ou o conceito de uma só existência para o ser humano, com um julgamento
final e irrecorrível?

Enfim, os exemplos poderiam ser multiplicados, se a finalidade aqui não fosse
apenas a de ilustrar uma idéia, ou seja, a diretiva de que os comentaristas da
Doutrina Espírita precisam manter um elevado padrão de lucidez e de humildade
intelectual para não contaminarem o Espiritismo com os seus preconceitos e não o
retransmitirem sob uma ótica que, em lugar de ampliar determinados aspectos, o
deformem grotescamente, a ponto de torná-lo irreconhecível. A Doutrina não é um
cadáver sobre o qual poderemos, à vontade, realizar nossas experimentações
mutiladoras, nem um aparelho, ao qual possamos substituir peças e adaptar a
outras finalidades. Repitamos: é um organismo vivo e dever ser tratado como tal,
ou seja, com todos os cuidados necessários e com o máximo respeito que toda
manifestação de vida deve merecer-nos.

Não obstante, o Espiritismo não rejeita aqueles que se aproximam dele com o
respeito a que acima nos referimos, dispostos a desdobrar aspectos que ainda lá
estão em síntese, à espera dos trabalhadores qualificados que, por certo, andam
por aí e ainda virão. É o caso da mediunidade, por exemplo, para citar apenas um
entre muitos aspectos. Os estudos sobre essa faculdade começaram ainda com o
próprio Kardec, em “O Livro dos Médiuns”, continuaram nas notáveis obras de
Gabriel Delanne. Aksakof, Lombroso e tantos outros e, ainda em nossos dias,
prosseguem em novos desdobramentos, com André Luiz. E estamos longe de veros
limites do território e explorar, pois os seus contornos escapam à nossa
percepção. Mas, que em todos esses cometimentos não percamos de vista os
parâmetros de eferição e os marcos implantados nas obras básicas, a fim de que
não percamos pelos domínios da fantasia ou do personalismo doutrinário, que
fraccionaria o Espiritismo em ramos e seitas que muito teríamos a no futuro. Em
suma: na frase felicíssima do confrade Jorge Andréa: é preciso dinamizar Kardec,
não dinamitar Kardec.

Ainda há pouco, aqui mesmo em “Obreiros do Bem” (artigo sob o título
“Centenário de uma Frase”, junho de 1976) propunhamos a formulação de modelos
espíritas para a sociedade futura, em vez de nos demorarmos indefinidamente
pelos caminhos, a tentar convencer da realidade do Espírito aqueles que não
desejam ainda ser convencidos. Dizíamos, então, que não vemos muito sentido
nesse esforço gigantesco de acumular provas que, de certa forma, não servem nem
a nós, os que não mais precisamos elas, nem àqueles que não as desejam aceitar,
porque se obstinam em defender suas fortalezas de opereta de ceticismo estéril.

Tentemos, porém, ser mais específicos quando mencionamos os tais modelos ou
matrizes, pois é necessário, desde logo, relembrar um princípio inarredável em
qualquer dessas inúmeras possibilidades de ampliação e aplicação dos conceitos
doutrinários: O Espiritismo não é um movimento arregimentador de massas, nem se
presta a servir de base para militâncias políticas de qualquer colaboração ou
tendência. Sua filosofia de ação é aquela que se dirige ao homem, ou melhor, ao
Espírito imortal reencarnado, pois entende que, como soma dos indivíduos, a
sociedade não poderá, jamais ser melhor do que os seus componentes. Os
cemitérios da História estão cheios de doutrinas que alimentaram a ilusão de
arrumar a sociedade de baixo para cima, ou seja, cuidando do ser coletivo,
quando o trabalho precisa ser feito no indivíduo, por meio do despertamento para
a sua realidade espiritual interior. Somos Espíritos e não unidades de produção,
votos, consumidores, massa de manobra, enfim.

Sejamos ainda mais específicos, na descida cautelosa aos pormenores, ao
particular.

O capítulo quarto do “O Livro dos Espíritos”, ao referir-se à questão do
princípio vital, cuida dos aspectos subsidiários dos conceitos de inteligência e
instinto. (Questões 71 a 75, páginas 78 e 79 da 34ª edição da FEB). O que Kardec
considerou prudente perguntar e o que os Espíritos decidiram suficiente ensinar
na época está, pois resumido em apenas 5 questões. É óbvio que isto não esgota a
temática suscitada, nem era esse o objetivo dos elaboradores da Doutrina.
Quantas sugestões preciosas, no entanto, partem daqueles discretos comentários!
A que amplos desdobramentos não se prestam as sínteses propostas pelos Espíritos
e as observações adicionais de Kardec!

Desejava o Codificador saber se inteligência a matéria são independentes,
“porquanto um corpo pode viver sem a inteligência. Mas, a inteligência só por
meio dos órgãos materiais pode manifestar-se. Necessário é que o Espírito se una
à matéria animalizada para intelectualizá-la”. (1) A fonte da inteligência é a
inteligência universal, sendo, no entanto, “faculdade própria de cada ser, e
constitui sua individualidade moral”. Advertiram, porém, neste ponto, que havia
limites por aí, além dos quais o homem não poderia seguir, por enquanto.

Será que o instinto dependeria da inteligência? – desejou saber Kardec.

– “Precisamente, não, – respondem os Espíritos – por isso que o instinto é
uma espécie de inteligência. É uma inteligência sem raciocínio. Por ele é que
todos os seres provêem às suas necessidades”.

Instinto e inteligência acham-se tão intimamente ligados que muitas vezes se
confundem. A força diretora do instinto é tão preciosa que os Espíritos
acrescentaram que também ele “pode conduzir ao bem”. E mais ainda:

– “Ele quase sempre nos guia e algumas vezes com mais segurança do que a
razão. Nunca se transvia”. (Os destaques são meus, evidentemente).

Ante o inusitado do ensinamento, Kardec desejou saber por que nem sempre a
razão é guia infalível.

– “Seria infalível – respondem seus amigos invisíveis – se não fosse falseada
pela má educação, pelo orgulho e pelo egoísmo. O instinto não raciocina; a razão
permite a escolha e dá ao homem o livre-arbítrio.

Aí está, pois, em apenas duas páginas, um mundo fascinante de sugestões para
futura especulação.

Que interessante definição, por exemplo, essa de que o instinto é uma
inteligência sem raciocínio, que funciona como instrumento através do qual os
seres vivos atendem às suas necessidades. Podemos lembrar aqui as recentes e
curiosas experiências do Prof. Bakster com as plantas, que confirmam com notável
precisão os ensinamentos transmitidos pelos Espíritos há mais de um século. O
instinto, que ele foi descobrir nas plantas, por meio de seus sensíveis
aparelhos, é exatamente isso: uma inteligência sem raciocínio a serviço da
integridade da planta. Que necessidade seria mais essencial do que a da
conservação? As plantas reagem nitidamente tento às vibrações de afeto com as de
ódio; àquele que cuida delas ou que procura destruí-las, informa da sua alegria
ao serem confortadas, com um pouco de água ou da sua apreensão ao sentirem-se em
terreno ressecado. Dentro do seu limitado círculo de recursos instintivos, a
planta age realmente com inteligência, ainda que desprovida de razão, pois que,
se a tivesse, disporia também de livre-arbítrio, como também ensinaram os
Espíritos. A razão começa junto com a consciência de si mesmo, o que nem plantas
nem animais possuem.

A reflexão nos levará a inferir que o instinto é a pré-história da
inteligência racional e, por isso, tem que ser mais seguro na sua direção do que
a fase subseqüente. Ainda sem dispor de razão, o ser vivo não pode errar, porque
não teria como corrigir o erro. Por isso os Espíritos disseram que o instinto
nunca se transvia. Nunca é uma expressão de tremenda força. A possibilidade de
transviamento começa, pois, quando surge a razão que nos proporciona o livre
arbítrio, ou seja, a capacidade de decidir entre duas ou mais alternativas. Por
outro lado, novo aspecto digno de profundas meditações é o de que a razão seria
orientadora infalível dos nossos atos, se não fosse falseada pela má educação,
pelo orgulho e pelo egoísmo”.

E, assim, com esta razão falseada que as inteligências transviadas montam
complexas estruturas filosóficas, aparentemente muito racionais, mas totalmente
falsas, porque a razão que lhes serviu de modelo estava contaminada pela má
educação, pelo orgulho e pelo egoísmo.

Lembremos aqui à razão absoluta, purificada, é que se referia Kardec ao
recomendar que a fé teria que, também ela, submeter-se, e isto é tão verdadeiro
que vemos variedades espúrias de fé. Paixão e razão que se misturam. A razão é
fria porque neutra, embora não insensível.

Mas, nestas reflexões, por mais atraentes que sejam, nos afastamos um pouco
do nosso tema. Ou não?

Retomemos o conceito de inteligência e experimentemos projetá-lo um pouco
mais longe. Após os ensinamentos trazidos pelos Espíritos a Kardec, como se
desenvolveu no meio científico a especulação em torno da inteligência? Que é
inteligência em termos de ciência?

Uma pesquisa histórica revela que a palavra em ai foi utilizada pela primeira
vez por Cícero, ao transpor a expressão dia-noesis, criada por Aristóteles,
sendo útil aqui lembrar que noesis é entendimento, compreendido.

A incipiente psicologia escolástica medieval, derivada, em grande parte, dos
conceitos aristotélicos, acabou cristalizando a “definição”, se assim podemos
chamá-la, de que inteligência era a qualidade abstrata comum e característica
dos processos intelectuais. Isso, como se vê, corresponde a declarar que a água
é molhada, mas, enfim, tal era a escolástica…

Com a decadência dessa corrente filosófica, o termo entrou em desuso e só foi
retomado por Herbert Spencer, já no século 19, que, no entanto, deu-lhe uma
interpretação meramente biológica, ou seja, materialista e que praticamente
perdura até hoje. Sem poder explicá-la em termos precisos, e desapoiado de
qualquer suporte espiritualista, Spencer achava que a inteligência explicava-se
pela presença dos pais na formação do ser, o que vale dizer que ele apenas
transferia o problema para a geração anterior e o desta para a imediatamente
anterior e assim por diante, sem chegar às raízes da questão.

Seja como for , as especulações de Spencer permitiram conceituar
psicologicamente a inteligência como capacidade de resolver, com êxito,
situações novas, entendimento aceitável que, ao que eu saiba, prevalece até
hoje.

Inegavelmente, porém, as pesquisas em torno da inteligência ainda não se
libertaram das amarras e das vendas materialistas, e ao campo da ciência
ortodoxa não chegou ainda a iluminação que se irradia a partir das informações
colhidas no mundo espiritual, nem das eu decorrem de todo o acervo de fatos
documentados pelos investigadores da fenomenologia espírita.

Ainda se pensa que inteligência é uma questão basicamente genética colorida
por influências mesológicas, ou seja, hereditária e desenvolvida sob forte
pressão do meio ambiente. Para sermos justos, é preciso reconhecer que alguma
influência realmente exercem a hereditariedade e o meio, mas não tanto quanto
julgam os cientistas acadêmicos, e não propriamente sobre a inteligência em si,
mas sobre suas manifestações.

Vamos tentar compreender melhor isso. Um casal de criaturas marcadas pela
debilidade mental pode gerar uma criança também prejudicada mentalmente mas isso
não significa que este novo ser seja espiritualmente um débil mental. Na
verdade, pode ser um gênio que apenas não conseguiu criar no corpo físico, em
gestação sob condições tão adversas, um instrumento adequado de manifestação de
seu potencial. Não são raros, porém, os casos de filhos altamente inteligentes
nascidos de pais deficientes. A recíproca também é válida: pais inteligentes
gerando filhos retardados.

Por outro lado, o ambiente em que se desenvolve a criança exerce sobre sua
inteligência uma influência que não pode ser desprezada, mas não deve ser
exagerada, porque sob as condições mais hostis podem desenvolver-se
inteligências brilhantes.

Isso tudo tem demonstrado à saciedade que a inteligência não é um fator
basicamente genético ou mesológico, mas uma faculdade do Espírito preexistente,
que traz para a sua nova existência os recursos intelectuais que já tenha
conseguido desenvolver no passado, dentro, porém, das condicionantes criadas
pelo seu comportamento moral, ou seja, pelo bom ou mau uso que deu à sua
inteligência.

Voltemos, por um instante, ao ensinamento dos Espíritos.

– … “a inteligência – dizem eles, em resposta à pergunta 72 – é uma
faculdade própria de cada ser e constitui a sua individualidade moral”.

Não é exatamente isso o que provam as observações? Ou seja, que cada ser se
encontra no estágio que lhe é próprio de desenvolvimento intelectual e que o uso
da inteligência tem nítidas e inelutáveis implicações morais? Confere, portanto,
mais este aspecto.

Enquanto isso, no entanto, os cientistas desligados das correntes
espiritualistas continuam a pesquisar as razões das dessemelhanças intelectuais
entre gêmeos, partindo do pressuposto de que, gerados simultaneamente, teriam de
ser pelo menos semelhantes em inteligência, senão idênticos, o que está longe de
ser verdadeira pois cada um deles é um Espírito diferente, em diferente estágio
evolutivo.

Vejamos, porém, um pouco mais além, já que falamos em estágio evolutivo.

Ao que indica a observação apoiada no conhecimento espiritual, a inteligência
é a resultante do conhecimento acumulado ao longo dos milênios e das inúmeras
encarnações. (2) Não somos inteligentes por causa de uma combinação genética
particularmente feliz, ou porque nos desenvolvemos em ambiente adequado, mas
porque, no passado, já nos habituamos a manipulação e apropriação do
conhecimento, através do estudo e do aprendizado. As noções que adquirimos, as
experiências porque passamos, as coisas que descobrimos incorporam-se à nossa
memória, cujos registros básicos se encontram no perispírito, e, embora
armazenadas na zona crespuscular do chamado inconsciente, estão ali, à nossa
disposição. Quanto mais conhecimento tenhamos adquirido no passado, mais fácil
se torna “resolver com êxito situações novas”, porque temos um banco de dados
mais vasto, contra o qual confrontamos analogicamente os fatos novos, as novas
proposições, os novos aprendizados. É sempre mais fácil construir em cima do
alicerce já consolidado.

Seria interessante, por exemplo, desdobrar ainda mais este aspecto para
examinar o papel que desempenha nisso tudo a memória, ou, ainda, a intuição, mas
seria ir muito longe num artiguete como este, que pretende apenas levantar
questões para estudo, sem a tola pretensão de resolvê-la.

Há, também, por aqui, analogias notáveis com a cibernética, pois os
computadores modernos não passam de cérebros artificiais, ainda muito primitivos
e limitados em comparação com o cérebro humano. São meros bancos de dados que
decidem entre duas opções, segundo um programa preestabelecido e de acordo com o
acervo de informações que têm armazenado em suas memórias. É claro que não
desejamos dizer que o computador seja inteligente, nem que tenha instinto, mas é
certo que se utiliza de um dos dispositivos da inteligência humana, isto é, a
memória.

Fiquemos aqui mesmo, para concluir.

Creio ter conseguido evidenciar, com estas reflexões, o que se costuma ter em
mente ao se dizer que inúmeros conceitos formulados pelos Espíritos dentro da
Codificação estão à espera de desdobramento e aplicação, sem, no entanto,
mutilar a Doutrina. Esse desdobramento, no correr do tempo, há de deslocar,
rearrumar e tornar obsoletos muitos dos mais caros conceitos da ciência moderna,
não apenas na Psicologia, mas em todos os ramos do conhecimento, naquilo que
concerne ao ser humano, como unidade social. É justo admitir, no entanto, que
muitas das noções catalogadas pela ciência, serão aproveitadas e iluminadas sob
um novo ângulo, com uma nova luz e acabarão por oferecer uma visão nítida do
homem e do mundo que o cerca, objetivo multimilenar da especulação humana.

Que estamos esperando? Onde estão os pensadores espíritas? Os psicólogos,
sociólogos, biólogos, médicos, enfim, os artífices espiritualizados e
evangelizados da sociedade futura? Os temas aí estão, e a Ciência aguarda
aqueles que irão conciliar conhecimento e moral, razão e fé, o homem e Deus.

(2) Relembremos o sentido da expressão noesis escolhida por Aristóteles e que
quer dizer conhecimento.

(Obreiros do Bem – Agosto de 1976)