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Tolerância e Crença

Tolerância e Crença

Erigindo-se arauto da tolerância, entoando hosana plenificadora através da
letra edificante, Voltaire, em seu Dicionário
Filosófico,

a proclama “apanágio da humanidade”, convidando-nos ao perdão mútuo, visto que o
equívoco dial sinaliza o estádio de notória inferioridade em que nos demoramos.

Lembra o filósofo iluminista que, nada obstante a religião cristã ser a
representante da mais doce mensagem inspiradora da tolerância, é em suas
fileiras que comumente se encontram os mais cruéis sintomas da falta desse
sentimento.

Quando perseguida, em era primitiva de sua história, a cristandade apelava
aos imperadores para que concedessem liberdade religiosa, invocando os direitos
pertencentes a todo cidadão da antigüidade romana.

Tertuliano, pensador simpático aos propósitos da
Assembléia do Amor Universal, exora a tolerância como nenhum outro.

A partir de 313, ao conceder a todas as religiões do Império liberdade de
ação, no Edito de Milão, Constantino talvez não soubesse
que daria ensejo à gradual repressão ao paganismo, da mesma forma que, dentro do
próprio movimento cristão, abriria espaço para Fírmico Materno, Leão Magno
e outros, incentivarem atos persecutórios em relação aos adeptos das heresias
que afloravam dentro das suas hostes.

Sabendo que a palavra herético vem do grego hairetikis, significando
“o que escolhe”, podemos concluir que a perseguição, infligida e ao mesmo tempo
sofrida pelos cristãos, em última instância punia a utilização individual do
livre arbítrio, divina faculdade de que todo Espírito é portador.

Nesse contexto de intolerância, quando o Medievo é banhado de sangue e
trevas, vemos surgir os “autos-de-fé”, enormes festas populares nas quais
compareciam, além do povo que levava alimentos e quitutes, todos os membros da
corte, infantes, convidados ilustres e o próprio rei. O início dessas
festividades mórbidas era marcado por procissão seguida de missa e, acompanhando
o protocolo, os réus do Santo Oficio ouviam suas sentenças sendo,
posteriormente, queimados vivos diante de sádica multidão que ganhava quarenta
dias de indulgência por comparecer ao local.

Jan Huss, Savonarola e diversas outras almas de
comprovada grandeza, tiveram seus corpos dilacerados pela sanha odienta daqueles
que se arvoravam donos da verdade e, por promoverem horrendos fratricídios,
envolveram-se em sombras perturbadoras.

Dos assassinatos, após injusta inquirição, ao violento massacre na noite de
São Bartolomeu, a intolerância deu azo à podridão jacente em psiquismos
enfermiços, que flauteavam hediondez ao fornecerem patrocínio a perseguições
soezes.

E nesses quadros alavancadores de amaras lembranças, para as almas que
hodiernamente desejam reabilitação, pintaram-se tristes endividamentos pedindo
persolvição urgente.

Como elemento agregador e fomentador da paz e da concórdia, a tolerância
exalta o ser, porquanto é característica eminentemente humanitária. Propalando
ternura intrínseca à atitude indulgente, este nobre sentimento habita o coração
da criatura que adquire consciência de si e do mundo, entendendo-se como ainda
imperfeita e, por este motivo, passível de erro.

No campo da crença, objeto deste breve estudo, a tolerância é entendida como
coexistência pacífica entre várias confissões religiosas. Todavia,
vitimada pela papalvice ou pela pusilanimidade, amiudemente é confundida com
conivência ou com a inoperância, desatendendo aos altos propósitos que o
entendimento do termo normalmente faculta.

Magotes de oportunistas, desejando alargar o número de “seus” fiéis, tentam
promover um amálgama formalista, empanando a essência luminífera da mensagem
religiosa, repletando-a com acessórios de visível incongruência.

Diante do outro e de suas representações de alteridade, há que se respeitar
as diferenças, destituindo os preconceitos e a violência deles advindas;
entretanto, não se sugere abrir mão da identidade e da coerência frente às
crenças ou ideologias que visem cumprir papel de cunhas desarticuladoras em
nossas profissões de fé.

O bom senso, quando utilizado, inibe atitudes equivocadas que, em nome
de conveniências terrenas e de interpretações ingênuas da caridade, intentam
erir princípios doutrinários lucidamente defendidos por Espíritos nobres, em
prol de um sincretismo reles e ininteligível.

Caso estejamos identificados com enobrecida mensagem religiosa, seja ela qual
for, busquemos verdadeiramente abraçá-la, dando-lhe oportunidade para aninhar-se
em nosso íntimo, impedindo, porém, quaisquer tentativas de lhe macular a
essência a partir de sentenças parciais ou por meio de peculiar ecletismo.

A intolerância fere e mata em cólera destruidora.

A conivência desestrutura idéias, tornando-as incoerentes, ineficazes e
mantenedoras de ignorância estagnadora.

A tolerância une e fortalece as criaturas, pois as estimula seguir o
nobilitante preceito cristão, a regra de ouro universal, que recomenda
dispensarmos a outrem tratamento igual ao que desejarmos receber.

Respeitando a fé alheia, é de se esperar que tenhamos a nossa respeitada.

(Jornal Mundo Espírita de Outubro de 2001)