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Noites Acordadas

Noites Acordadas

Eu tinha 18 anos e cursava o segundo semestre da Faculdade de Enfermagem.

Foi com Mônica, minha monitora, que passei a primeira noite acordada de minha
vida.

Era uma noite fria mas não vestíamos agasalho. O grande hospital de
corredores largos e piso de granilite, era cinzento e solene como as damas
solteiras de longa tradição. Sóbrio, sem nada que não fosse completamente útil.
Durante o dia parecia diferente pois se impregnava de cores, ruídos, vozes e
vida. Os estudantes, os carrinhos, as visitas, os atendentes, os … toda uma
população de gente que falava alto e combinava coisas. Tudo, de dia, disfarçava
a realidade que se apresentava à noite, como no céu sob as vistas dos homens. O
Sol colore tudo mas oculta o que só a noite revela: milhões, milhões de mundos.

O verdadeiro sentido do hospital se encontra de noite. Os doentes ficam à sós
consigo mesmos e entram no mundo dos pensamentos. A gente quase pode
adivinhar…

Na Enfermaria

Ali, a mulher moça de olhos fechados está se recordando de coisas… Do
marido que vem visitar cada vez mais raramente desde que a hemiplegia chegou ao
seu corpo e cada vez menos expansivo. Ultimamente até parece vestir-se com mais
aprumo, solícito nos afazeres, apressado para sair. As pernas imóveis e a
aflição da mente para conduzí-las até onde estão os filhos, a feira, a cozinha,
a casa da mãe, a escola para saber dos progressos deles. (Os menores de catorze
anos não entram no hospital de indigentes nem para ver a mãe!) A mãe! Não podia
fazer mais nada daquilo que os filhos precisam. Nem o carinho, embora os braços
estejam sãos e os lábios possam sorrir e beijar… E aquele aparelho no
corredor: o pulmão de aço! Será que um dia precisará dele? A do leito 62 – D.
Maria não sei de que – esteve lá dentro uns quinze dias mas depois… disseram
que foi para casa (ou morreu?). Como ficara assim tão dependente para tudo? Ela
que fazia o serviço da casa sozinha, lavava, passava, cozinhava, ajudava as
crianças nas lições da escola e ainda costurava para fora. Por que, meu Deus?…

A noite é longa na solidão das suas recordações. É sempre mais ou menos
igual, centenas de noites assim. Sem sorriso. Sem esperança.

O mocinho que vai operar amanhã ….

Amanhã abrirão a minha cabeça. Fazem coisas extraordinárias os cirurgiões.
Alguns vieram da minha terra e voltaram bons. É… quase todos voltaram.

Será que “seu” João me dará o emprego de novo? Como farão para abrir a minha
cabeça? São muitos os que estão costurados ao meu lado. O crânio raspado e
aqueles pontos! Fazem um corte enorme. Eles disseram: conforme a situação do
tumor e a sorte do rapaz… Também eu já não enxergo quase nada. Só vejo com um
esforço sobre-humano. (Eu que tinha a vista tão boa). Para ficar assim ou piorar
como vi aqueles… quase é preferível…

O mocinho também dorme tarde apesar do calmante que lhe foi dado.

Na Pediatria

O menino em anasarca, com dispnéia intensa, cianótico, tem lágrimas dançando
dos olhos. Não fala porque aprendeu a ser forte, sozinho, mas pode-se “ouvir”
com ouvidos femininos seus pensamentos e adivinhar que seus olhos se alongam, de
noite, até o sítio lá em Mato Grosso.

– “Mamãe! Papai! Porque eles não podem estar aqui comigo? Seria mais fácil
respirar se eu segurasse a mão dela. Eu precisava escrever uma carta. Chamar o
pai. Pedir para voltar para casa. A minha cama! Os meus brinquedos! A minha mãe!

Cada noite ele caminhava mais para o centro da vida a que chamamos morte.

Na sala de Hidratação

A mulher vela pela madrugada. Olha sem compreender o braço da criança onde a
agulha foi fixada com esparadrapo depois de muita procura e observa as gotas
vermelhas que caem uma a uma. Lembra-se das horas daquele dia, desde o
amanhecer, correndo de cá para lá em vários hospitais até chegar ali, naquele
pronto socorro. E a voz do jovem plantonista ainda estudante, sem quase
experiência da vida: – “Só agora a senhora traz o seu filho? Por que não veio
mais cedo?”

Gota a gota o sangue de um desconhecido tenta em vão substituir a vitalidade
que se esvai. No meio de uma confusão mental e emotiva, cresce na mulher abatida
aquela certeza: – um pouco mais e a testa do seu filho queridíssimo ficará fria,
e ela o beijará com grande aflição…

No Apartamento especial

O doente do apartamento luxuoso, com médico e atendente especial, com o
parente especial dormindo no quarto do acompanhante, não adormece, embora assim
possa parecer. Pensa nas reticências que se seguiram às palavras dos amigos. A
dúvida vai se tornando em certeza de que tem um câncer inoperável e toda a sua
riqueza não pode comprar sequer a dúvida que ainda na véspera existia. – “Afinal
é melhor a certeza que a dúvida, na qual há maior porcentagem de desespero que
de esperança!”

Amanhã, o dia nascerá diferente. Os parentes continuarão a disfarçar e ele
também, como se todos tivesses vergonha do que aconteceu.

Estranhas Alegrias

Nas noites acordadas do hospital há, também, expressivas alegrias, aqui e ali
– “Amanhã, regressarei ao lar!” E outras, mais modestas. “Amanhã será dia de
visitas!” Ou assim, paradoxal: – “Senti dor nessa perna, enfermeira! Que
felicidade!” – Sim, pois é a sensibilidade que vai retornando.

É nas noites acordadas que a enfermeira percebe o ritmo da vida e a passagem
das situações humanas em contínua caravana. Penetra, no interior dos ruídos
precisamente porque há mais silêncio na terra. Sente Deus como espada da justiça
e recorda o Mestre que falava! “Misericórdia quero e não sacrifício”. Suaviza-se
ou empedreja-se. Para ela também renasce o dia e não a encontra onde estava.
Subiu ou desceu. Sua vida será um reflexo desse movimento.

O médico não conhece as noites acordadas sob esse aspecto. A maioria de seus
plantões noturno não são passados acordados. A enfermeira chama-o na hora em que
ele deve agir. Colhe os frutos, debulha as sementes ou constata o fenecimento –
mas não “sentiu” o minuto a minuto de humanidade se movimentando e de vida
agindo

Ninguém entre nessa intimidade melhor que o enfermeiro. Ninguém. Nem o
parente do doente crônico, em o padre das extremas-unções, nem o vizinho do
leito, conseguem experimentar o gosto de fraternidade que o enfermeiro sente. E,
por estranho e paradoxal que pareça, não mais se esquece esse gosto, como se
nele estivessem os melhores momentos da vida. Quem experimentou, terá saudades
sempre.

O nascimento e a morte

No cestinho da sala de partos já está depositada a criança prematura,
concebida sem querer, por descuido. Tanto que a gente lê nos olhos da mulher
cansada que ficou na maca a angústia e a indiferença ao mesmo tempo numa
estranha reunião. Sabe-se que aquele bebê vai ser dado, ou vendido, ou largado,
mais dia menos dia. Não se atira pedra sobre um vidro quebrado mas sente-se uma
pena infinita de ambos. Da mulher que não poderá jamais retirá-lo do seu
subconsciente. Do bebê que vai ter carência de amor.

No outro extremo do mesmo corredor, o homem começou a se desenlaçar
lentamente dos invólucros… a respiração fez seu último esforço, fraco mas
profundo, e parou. O sangue deixou de circular, exausto.

Mônica ensinava o respeito absoluto pelo desenlace. Por duas horas não se
mexia no corpo. Depois, a cerimônia da discreção, os passo nas pontas dos pés, o
quase ritual do preparo, a suprema solenidade.

O doente de cada aluno era “o seu doente”, o seu parente mais próximo. Os
jovens de banco aprendiam a se colocar na posição do irmão.

A Primeira noite

A primeira noite acordada é a mais especial entre todas. Tudo é
superlativamente importante, os mais insignificantes detalhes como o uso da
lanterna de mão, o acender do gás para preparar a água fervida, o dobrar das
roupas para o armário. E a vigilância nas enfermarias! Faz-se exageradamente,
cinqüenta vezes em cada leito. Lembro-me de um doente que a lanterna mostrou de
olhos semi-abertos, inerte na cama. Corri para o relatório: – “Leito 3 – Nada de
anormal:. Voltei pálida. – Estará morto? Sacudi-o, sacudi-o. Ele despertou
repentinamente, aborrecido: -“O que é, enfermeira?”

Senti-me como a mãe de todos.

Havia também um “filho” de cabelos brancos gemendo e implorando: – “Irmã, faz
o curativo. Irmã pelo amor de Deus…”

O relatório dizia: – “Curativo às seis horas da manhã”. Era preciso esperar.
Aliás, eu não sabia fazer curativos; somente atingira, naquele tempo, os
cuidados de cabeceira elementares e a vigilância. Ele continuava: – “Faz o
curativo, senão eu morro de dor”.

Eu corria de um lado para outro resmungando: – Absurdo. O curativo devia ser
feito agora. Como puseram a mim – aluno de primeiro ano – nessa enfermaria com
um paciente tão grave e tão sofredor se eu ainda não sei nada?

Mônica foi chamada. Conservou calmamente com o sofredor. Colocou a mão na sua
testa. Disse palavras simples, elementares, comuns, Ele sorriu, pouco depois
adormeceu.

Quanto ainda teria a aprender!

Zilma – o lírio

Foi numa noite acordada que conheci Zilma – o lírio. Tinham extraído um de
seus olhos pretos, redondos e lindos. Mas a sarcoma insistente brotara de novo
de dentro para fora daquela órbita enchendo o vazio e crescendo, crescendo dia a
dia. Zilma tinha dezessete anos e irradiava uma beleza que vinha do interior.
Era uma líder nata, um centro de atração. À noite ficava muitas horas acordada
para ajudar os outros – as companheiras de enfermaria. Animava, levava água,
estendia a coberta, consolava. Mal sabia ler e escrever pois era de família
muito pobre, praticamente abandonada pelos seus mas possuía um porte nobre e uma
delicadeza rara. Horas e horas me seguia na vigília e conversávamos. Falávamos
da morte, de outras vidas, da reencarnação e da evolução das coisas. Compreendia
a profundidade. Estava dentro da sabedoria. Não se expandia com outras pessoas
sobre aquelas idéias “para não magoar ou preocupar ninguém”.

Zilma foi operada sete vezes nos dois anos que viveu no hospital. Sete vezes
a terrível raiz dava novos frutos, cada vez com maior vigor. O sarcoma saia da
órbita, assaltava a face, cobria a testa e caminhava para o centro do crânio.
Zilma sorria sempre “para não ser ingrata com tudo o que faziam em seu favor”.
Espalhava líquido de Dakin para desodorificar o seu tremendo tumor e continuava
as rondas noturnas de consolo e ajuda. Na sétima intervenção cirúrgica partiu
para o plano dos lírios. As estudantes se cotizaram e fizeram o enterro de seu
corpo. Naquele dia todos tinham os olhos úmidos mas se continham pois quem vive
no hospital sente que se chorar por um terá que chorar por todos.

Eu ia de madrugada ao terraço do grande prédio cinzento. Olhava o céu tão
vivo e tão vigilante. Respirava profundamente como em exercício. Sentia-me num
jardim. O jardim das redenções.

O espiritismo, fonte perene de água viva, cujo manancial reside nos
Evangelhos do Cristo, dessedenta a sede de conhecimentos de todos aqueles que
humildemente procuram a sua nascente com amor e sinceridade.
(Costa Filho)

(Revista Internacional de Espiritismo – nº 04 – Maio de 1977)