Nossas Almas? Nossas Almas Ficaram Para Trás!
Já escoou muito tempo, desde que lemos em alguma fonte estranho relato de um
desses notáveis cientistas, exploradores de terras desconhecidas, do século
passado e também antropólogo.
Deteve-se ele no estudo da cultura e costumes de determinada tribo de
aborígenes. Para isso, participava atenciosamente de todas as atividades da
pequena comunidade. Acompanhava-os em suas refeições, festas, cultos
fetichistas, rituais de iniciação e de passagem, incluindo a pesca e a caça.
E trouxe até nós um estranho episódio ocorrido durante uma caçada. Numa
extensa campina, os silvícolas corriam velozmente, atrás da possível presa.
Esta, por sua vez, corria desesperadamente para escapar. Mas os caçadores não
desistiam. Corriam e corriam. E tropeçavam. E resfolegavam. Súbito, estacavam,
baixavam as armas, acocoravam-se no chão. Então, a caça escapava-lhes das mãos.
Ato contínuo, os bravos e insistentes caçadores levantavam-se e retornavam a
perseguição implacável. Bem mais adiante, paravam de novo inopinadamente,
acocoravam-se e, logo após, reiniciavam a corrida. Tudo com grande espanto para
o explorador, que a tudo assistia sem compreender.
Não sabemos adiantar se a caçada era bem sucedida ou não, com tão estranha
técnica cinegética.
Retornando à aldeia, caçadores e cientista comentavam entre si as peripécias,
imprevistos e habilidades de cada um daqueles Nemrod selváticos.
O antropólogo, no recolhimento da aldeia, analisando o que assistira,
procurava entender as razões daquelas paradas tão desconcertantes; às vezes, até
quando a presa estava prestes a ser alcançada e flechada. Formulou, em sua
mente, para isso, três hipóteses: 1ª – cansados e já sem fôlego, estacavam para
recobrar as energias; 2ª – a interferência de algum tabu ainda desconhecido para
ele, o estudioso; 3ª – o retardamento voluntário do tempo da caçada, para melhor
fruição de suas atrações e entretenimento mais demorado.
Decidido a resolver a dúvida, apresentou as três hipóteses aos indígenas
reunidos ao redor do fogo em animada discussão, onde não faltavam as gabolices
costumeiras de todos os caçadores, civilizados ou não. E assim entendeu o que
explicavam:
– Não. Não parávamos por cansaço. Também não obedecemos a nenhum tabu
intercorrente. Nem fizemos render o tempo da caçada para melhor nos divertirmos.
– Então, por que paravam, afinal? – redargüiu o antropólogo.
O mais idoso e experiente dos caçadores explicou na sua linguagem primitiva,
mas que, nas nossas expressões, poderia corresponder ao seguinte:
– Ora, parávamos, para esperar nossas almas, que, na nossa corrida, sentíamos
que ficaram para trás… Aguardávamos, parados, que elas chegassem até onde
estavam os nossos corpos e, então, reencetávamos a corrida já com elas, no
encalço da presa… Se continuássemos correndo sem esperar por nossas almas, as
perderíamos para sempre.
O comportamento daqueles nativos faculta-nos um profundo e significativo
ensinamento, segundo uma inteligibilidade filosófica.
Podemos compará-lo com a marcha da civilização: o enorme e indiscutível
progresso intelectual, científico e social da humanidade. Esse avanço, nos
últimos séculos, tem-se processado por velocidades cada vez mais aceleradas. E
os seus resultados se manifestam em conquistas tecnológicas, conforto material,
formas sociais aperfeiçoadas, a erradicação dos regimes totalitários,
urbanização aprimorada, meios de comunicação inimagináveis há um século atrás (a
aldeia total de Mac Luhan), penetração na intimidade do átomo, aeronaves
supersônicas, culminando todo esse progresso intelectual, científico e
tecnológico no aproveitamento da energia nuclear e nas viagens espaciais.
É cada vez mais curto o intervalo de tempo que separa uma descoberta
científica de sua aplicação tecnológica: fotografia (1727-1839), l12 anos; motor
elétrico (1821-1886), 65 anos; telefone (1820-1876), 56 anos; rádio (1867-l902),
35 anos; tubo de raio X (1895-1913), 18 anos; televisão (1922-1934), 12 anos;
reator nuclear (1932-1942), 10 anos; bomba atômica (1939-1945), 6 anos;
transístor (1948-1951), 3 anos; bateria solar (1953-1955), 2 anos.(Dados
colhidos na obra “Aprender a Ser” de Edgar Faure – edição Unesco).
Assim, os progressos que se processavam em um século, hoje se consumam em
poucos anos. O progresso material é tão veloz e acelerado que as pessoas, logo
após a conclusão de sua formação escolar e profissional, sentem-se já defasadas
em relação ao progresso cultural, tecnológico e social. Daí a necessidade da
instauração dos processos da chamada Educação Permanente, que não cessa senão
com a extinção da própria vida de cada um.
E, apesar de todo esse avanço material tão acelerado, a humanidade não se
sente segura, nem em paz, nem feliz.
E por quê ? Resposta: Porque nossa estrutura físico-biológica progrediu
muito. Disparou mesmo, como a daqueles caçadores selvagens: saúde individual e
pública, dilatação da expectativa de vida, conforto material, viagens, turismo,
recreação, lazer, teto, alimento. Tudo para o consumo do corpo. Mas, nossas
almas… Ah! nossas almas: ficaram para trás por inércia – como as daqueles
indígenas cujos corpos correram demais e delas se distanciaram imprudentemente.
Isso significa que houve um grande e acelerado progresso intelectual (sediado
no cérebro): ciências, tecnologia, indústrias, favorecendo principalmente nosso
indumento físico. Mas não lhe correspondeu o mesmo ritmo de moralidade (sediada
na alma). Se houvesse esse equilíbrio intelecto-moral, não se teriam verificado
os horrores do comunismo e do nazismo, nem o pauperismo do Terceiro Mundo, os
genocídios, as agressões à natureza, as guerras mundiais; e ainda, os
fundamentalismos religiosos, o racismo e o terrorismo.
Não estaria a humanidade no mesmo dilema cruel daqueles caçadores?
Ou pára, a fim de aguardar o aperfeiçoamento moral; ou deixará para trás e
esquecida sua essência espiritual, retida, imobilizada, nas esquinas sombrias do
passado já longínquo na visão inteligível.
Estamos materialmente prelibando as condições do nosso futuro corporal; mas,
com nossas almas ainda chumbadas à antigüidade já intelectualmente ultrapassada;
como que espetadas, essas almas infantis, como borboletas secas numa folha de
cartolina desbotada pelo tempo.
Essas considerações trouxeram à colação um paradoxal pensamento de Max
Scheler (1874-1928). Certo ou errado, julgava ele, com fundamentos científicos
da época, que o corpo físico-biológico humano atingira, em sua evolução
específica, estágio tão avançado que nada mais tinha a se desenvolver. Estaria
organicamente acabado; realizadas todas as suas virtualidades essenciais. Visto
por esse ângulo, o animal homem seria de todos os seres orgânicos o que mais
teria se aproximado de seus limites possíveis. “Com efeito, o homem é o ser mais
evoluído e, por isso mesmo, sua ulterior evolução é a mais inverossímil”. Só lhe
resta um filão evolucionário: o do Espírito (in revista “Humanidades” nº 3 –
Edição Un B-1983).
Estaríamos no fim de nossa história biológica humana, e apenas no começo, ou
meio, de nossa história espiritual?
Veio ainda à nossa memória a genial conceituação de “civilização” do
historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945):
“Só podemos vislumbrar a existência de uma civilização autêntica, lá onde se
preencham os três requisitos seguintes: lº) um certo grau de domínio da natureza
física através das boas técnicas científicas e industriais; 2º) um indispensável
equilíbrio entre o progresso técnico e esse domínio do homem sobre a natureza
física, e um correspondente progresso moral e domínio do homem sobre a sua
própria natureza espiritual; 3º) a existência de um ideal comum, como
característica da feição espiritual de uma época ou de um povo, seja esse ideal
o que for: tanto o ideal da terra prometida dos judeus, como o da beleza
artística entre os gregos, como o da conquista universal entre os romanos, como
os ideais de ultratumba dos egípcios, ou o supremo ideal da salvação entre os
cristãos ou, ainda, o da permanente descoberta e conquista de novas terras, ou
novos tesouros, ou novas almas para o homem quinhentista. A civilização de nossa
época, exaustivamente analisada pelas maiores autoridades do século, parece
claramente ressentir de uma hipertrofia marcante do primeiro requisito, com
enorme sacrifício do segundo e anuladora atomização do terceiro” (do Dicionário
Enciclopédico Brasileiro – Álvaro Magalhães – Editora Globo Porto Alegre).
Aí está bem balizado o descompasso entre o acentuado progresso
intelecto-científico-industrial (lº requisito) e o retardatário e vagaroso
desenvolvimento ético-espiritual (2ª requisito) da humanidade.
Aqueles nativos caçadores, ainda que dentro das suas práticas supersticiosas
no simbolismo daquele episódio, tinham, de qualquer modo, o vislumbre confuso
dessa defasagem corpo-alma. E nós?
As nossas almas… Ah! as nossas almas…
(Jornal Mundo Espírita de Agosto de 1998)