Silvio Seno Chibeni
Em 1860, foi publicada a segunda edição de O Livro dos Espíritos, “inteiramente refundida e consideravelmente aumentada”, conforme anuncia sua página de rosto. Contém, como se sabe, de 1019 itens, distribuídos em quatro partes, enquanto que a anterior, de 1857, tinha apenas 501, em três partes.
Kardec escreveu uma nota, ou prefácio, explicando as razões e critérios da nova edição. Incompreensivelmente, esse prefácio não é atualmente reimpresso nas edições brasileiras ou francesas, com a exceção da edição de Le Livre des Esprits publicada em reprodução fotomecânica pela Federação Espírita Brasileira em 1998. (Para uma resenha, ver Mundo Espírita, … de …, pp. … .) Por seu valor histórico e elucidativo da natureza da obra, reproduzimo-lo em seguida, traduzido para o português:
NOTA
Sobre esta nova edição
Anunciamos, na primeira edição desta obra, a publicação futura de uma parte suplementar. Seria composta de todas as questões que não encontraram lugar naquela edição, ou que circunstâncias ulteriores e novos estudos tivessem originado. Como, porém, são todas relativas a uma ou outra das partes nela já tratadas, das quais são o desenvolvimento, sua publicação isolada não teria feito nenhuma seqüência. Preferimos, assim, esperar a reimpressão do livro, para fundir tudo num mesmo conjunto. É o que agora fazemos. Aproveitamos para conferir à distribuição das matérias uma ordem bem mais metódica, ao mesmo tempo que suprimimos tudo o que estava repetido. Esta reimpressão pode, pois, ser considerada uma obra nova, embora os princípios não tenham sofrido nenhuma alteração, com um pequeno número de exceções, que são antes complementos e esclarecimentos do que verdadeiras modificações. A coerência dos princípios expostos, não obstante a diversidade das fontes em que os buscamos, representa fato importante para o estabelecimento da ciência espírita. Nossa correspondência mostra que comunicações idênticas em todos os pontos, ao menos quanto ao fundo, foram obtidas em diferentes localidades, e isso mesmo antes da publicação de nosso livro. Ele veio confirmá-las e dar-lhes corpo regular. A história, por sua vez, prova que a maioria desses princípios foram proferidos pelos mais eminentes homens dos tempos antigos e modernos, trazendo-lhes, assim, a sua sanção.
O ensino relativo às manifestações dos Espíritos, propriamente ditas, bem como aos médiuns, forma uma parte distinta da filosofia espírita, podendo constituir objeto de um estudo especial. Havendo recebido desenvolvimentos bastante expressivos em conseqüência da experiência adquirida, acreditamos ser nosso dever fazer dele um volume separado, contendo as respostas dadas a todas as questões concernentes às manifestações e aos médiuns, além de numerosos comentários sobre o Espiritismo prático. Essa obra será a continuação ou complemento do Livro dos Espíritos. 1
1 No prelo.
Daremos agora algumas informações complementares, tecendo alguns comentários sobre as afirmações de Kardec nesse prefácio, seguindo a ordem em que são feitas.
1. O anúncio de “uma parte suplementar”, a que Kardec se refere, apareceu no final do Epílogo da 1a edição (p. 158). Esse epílogo contém apenas três parágrafos, ocupando uma página. O primeiro, sobre as causas do ceticismo quanto à doutrina espírita, foi aproveitado integralmente na 2a edição, figurando no início da seção 17 da Introdução. O segundo, sobre a natureza da ciência espírita e sobre o objetivo central do livro, teve igual destino, formando o segundo parágrafo daquela seção, porém com o acréscimo de algumas frases e a supressão de outra. O terceiro parágrafo é o seguinte:
O ensino dos espíritos prossegue, atualmente, acerca de diversas partes cuja publicação adiaram, para que tenham tempo de as elaborar e completar. A próxima publicação que dará seqüência aos três livros [partes] desta primeira obra conterá, entre outras coisas, os meios práticos pelos quais o homem pode neutralizar o egoísmo, fonte da maioria dos males que afligem a sociedade. Tal assunto toca todas as questões referentes à sua posição no mundo e ao seu porvir terrestre.
Vem, por fim, uma nota:
Nota. – Essa segunda parte será publicada por encomenda, sendo remetida às pessoas que se houverem inscrito para tal fim, por meio de solicitação escrita (grátis, sem qualquer pagamento antecipado).
Antes de comentarmos o conteúdo desses textos, atentemos num detalhe: a publicação sob encomenda da parte suplementar. Isso não deve causar estranheza, se lembrarmos que a publicação inicial do Livro dos Espíritos correu inteiramente por conta de Kardec, ou seja, os custos de composição, impressão e distribuição foram cobertos por seus limitados recursos financeiros. Não havia, é claro, nenhuma certeza de retorno, dado o caráter incomum da obra e os preconceitos vigentes. Ao estabelecer o esquema de encomenda (ou “assinatura” – souscription) para a publicação suplementar, Kardec deve, com toda probabilidade, ter sido movido pela prudência, evitando lançar-se num empreendimento incerto e talvez demasiadamente pesado para a sua modesta posição. Com as encomendas, poderia estimar com mais segurança a tiragem a ser feita, evitando eventuais desperdícios.
Mas como vemos pela afirmação que abre o prefácio, esse projeto não foi implementado, tendo sido substituído por outro melhor. É, pois, incorreta a interpretação de Canuto Abreu, expressa em nota ao pé das páginas 158 e 159 de sua edição bilíngüe da 1a edição de O Livro dos Espíritos, de que o anunciado suplemento seria o opúsculo Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas (Instruction Pratique sur les Manifestations Spirites, Paris, bureau da Revue Spirite, Rue des Martyrs, 8; Dentu; Ledoyen; 152 pp.), que veio a público em 1858. Além de não ser compatível com o que diz Kardec, essa interpretação não subsiste ao exame do conteúdo do opúsculo: ele não se dirige à questão do controle do egoísmo, nem de sua relação com as posições presente e futura do homem. Trata, sim, como o próprio título indica, da questão das manifestações espíritas. Com a publicação de O Livro dos Médiuns, em 1861, Kardec deixou de imprimir o opúsculo, à época já esgotado, considerando-o superado, quanto à abrangência e organização, pela nova obra.
O que veio, então, a ser do material que teria formado o suplemento? O próprio Kardec esclarece: ele foi incorporado à nova edição do Livro dos Espíritos. De fato, vemos que na 2a edição o assunto do egoísmo recebeu atenção mais ampla e sistemática. Na 1a ele havia ocupado diversos itens no capítulo “Da perfeição moral do homem”. Mas esse capítulo integrava a parte “Das esperanças e consolações” (que era a terceira e última parte do livro), e não a parte “Das leis morais” (que era a segunda parte). Na 2a edição o capítulo foi deslocado para esta parte moral, onde se insere mais naturalmente. Além desse rearranjo, o capítulo ganhou novos e importantes itens específicos sobre o egoísmo, como os de número 917 a 919, com as expressivas contribuições de Fénélon, Santo Agostinho e do próprio Kardec. Note-se, em particular, que as frases do Epílogo que expressam a preocupação de Kardec com os “meios práticos” de combate ao egoísmo refletem-se de forma muito próxima nas questões formuladas nesses itens.
Além disso, o estudo das condições presente e futura do homem, a que também se refere Kardec no anúncio do suplemento, foi claramente ampliado e tornado mais metódico. Mesmo com a exclusão do capítulo sobre a perfeição moral, a parte sobre as esperanças e consolações foi bastante estendida, embora passando a consistir, na 2a edição (onde é a quarta parte), de apenas dois capítulos, “Penas e gozos terrestres” e “Penas e gozos futuros”, que correspondem aos anteriores “Ventura e desventura na Terra” e “Penas e recompensas futuras”.
2. O segundo ponto do prefácio, a incorporação de novos estudos e a melhor distribuição das matérias, fica bem exemplificada pelo que acabamos de apontar. Uma apreciação completa da magnitude e êxito dessas alterações só pode ser alcançada pela análise comparativa detalhada das duas edições, o que não podemos, evidentemente, fazer aqui. Queremos apenas salientar que ao entregar-se a tão delicada e trabalhosa tarefa – qual a de praticamente refazer o livro inteiro – Kardec deu-nos dois importantes exemplos: o da humildade e o do zelo incessante pela qualidade de tudo o que dava a público. A reflexão sobre esses exemplos, e sobretudo a sua imitação, traria benefícios evidentes ao estado atual da produção bibliográfica espírita e do movimento espírita em geral.
3. Quanto à supressão de “tudo o que estava repetido”, evidentemente não se refere a qualquer descuido na redação do texto original. Kardec tinha estilo conciso, e sempre esteve muito atento a esse tipo de falha. Trata-se da eliminação da forma de apresentação dupla, em diálogo, na coluna da esquerda, e em texto corrido, na da direita. Na 1a edição esse formato era adotado apenas na primeira parte da obra. Foi agora abandonado, porque se estendido ao livro todo tornaria suas dimensões impraticáveis.
4. O próximo item do prefácio que merece destaque refere-se à constante atenção de Kardec às investigações situadas fora de sua esfera direta de ação. É bem conhecida a extensão de sua correspondência, que em alguns anos tornou-se humanamente impossível de manter-se em dia (ver Allan Kardec, de Z. Wantuil e F. Thiesen, vol. III, p. 111). É também notório o seu interesse pelas fontes não espíritas, a começar pelas obras clássicas de todas as áreas e épocas, e incluindo o acompanhamento da imprensa leiga em diversos países. Essas fontes constituíram para Kardec motivo de inumeráveis estudos, especialmente na Revue Spirite (veja-se o artigo inicial da Revue, janeiro de 1858). Embora, como veremos em artigo futuro, a correspondência referente ao Espiritismo não tenha desempenhado um papel tão extenso quanto às vezes se supõe na produção inicial de Kardec, ela gradualmente adquiriu maior importância. Aqui Kardec chama a atenção para o fato singular de que nessa correspondência podia-se isolar um núcleo comum de idéias básicas, fato relevante para o estabelecimento da ciência espírita. Nota, por fim, que eminentes pensadores de todas as épocas e áreas do saber esposaram diversos dos princípios dessa ciência, embora – podemos acrescentar – de forma fragmentária e menos rigorosa do que no Espiritismo (cf. itens 145, 581 e 623-628 de O Livro dos Espíritos). A história dá, assim, uma espécie de sanção àqueles princípios.
5. Por fim, o último parágrafo do prefácio indica outra área em que as pesquisas evoluíam com particular rapidez: as manifestações espíritas. Poucos sabem hoje que a 1a edição continha, em sua primeira parte, um capítulo intitulado justamente “Manifestações dos espíritos”. Dada, porém, a extensão do material que se acumulava sobre esse assunto, Kardec percebe a necessidade de uma nova publicação, específica para ele; não seria viável a ampliação ulterior do Livro dos Espíritos. A obra que Kardec anuncia estar no prelo é, pois, O Livro dos Médiuns, cuja primeira edição é de 1861. Analisando o referido capítulo, vemos que pode ser considerado o embrião desse novo livro.
Referências:
- KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 2a ed. francesa, com adendos do Autor. 1a. ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1998.
- ––––. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1a ed. francesa. 1a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.
- ––––. Revue Spirite. Reprodução em imagem digitalizada a partir da coleção da Federação Espírita do Paraná. Também disponível, em texto eletrônico, no site do Centre d’Études Spirites Léon Denishttp://perso.wanadoo.fr/charles.kempf/
- ––––. Instruction pratique sur les manifestations spirites. Paris, La Diffusion Scientifique, 1986.
- ––––. Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas. Trad. Cairbar Schutel. In: Iniciação Espírita, 6a ed., São Paulo, Edicel, 1977. Também: Matão, Casa Editora O Clarim, 1987.
WANTUIL, Z. & THIESEN, F. Allan Kardec, 3 vols. 1a ed., Rio, Federação Espírita Brasileira, 1979/80.
(Texto publicado em Mundo Espírita, junho/2002, pp. 6-7.)