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Reencarnação – Peça teatral

SÉRGIO – Segundo a parapsicologia, as explicações possíveis para o
fenômeno são várias: o indivíduo pode ter estado num local, ou vivenciado uma
situação, inconscientemente, ainda no útero da mãe, por exemplo. Ou pode ter
visto imagens do lugar num filme, ou em fotos de revistas; ou ler o inconsciente
de uma outra pessoa; ou, ainda, dizer já ter visto algo quando, na verdade, viu
apenas alguma coisa semelhante.

TIO – E como você explica as crianças prodígio, aqueles gênios que
desde tenra idade se sobressaem nas ciências e nas artes?

SÉRGIO – Esse é um fenômeno puramente físico, explicado pela
constituição genética de tais crianças. O que vocês chamam de “espíritos mais
evoluídos” nada mais são do que indivíduos que se beneficiam de disposições
orgânicas e fisiológicas que tornam seu aprendizado mais fácil, imediato e
intuitivo.

TIO – O que você está dizendo é que Deus privilegia determinados
indivíduos, fazendo com que eles nasçam com essa tal de “melhor disposição
genética”, e depois, na hora da morte, julga a todos como se tivessem tido as
mesmas oportunidades. Ora! Isso é outro absurdo!

SÉRGIO – Tio, Deus é soberanamente livre para criar quem Ele quiser e
como Ele quiser.

TIO – Vocês teólogos fazem de Deus uma imagem muito mesquinha,
atribuindo a Ele todas as nossas falhas, todas as nossas fraquezas e
imperfeições. Se Deus privilegiasse uma única de suas criaturas, Ele não seria
infinitamente justo e, portanto, não seria Deus.

MARTA – Mano, definitivamente a argumentação do tio é mais lógica e
convincente do que a sua.

SÉRGIO – Há pouco o senhor me perguntou se conheço alguém que, mesmo
de longe, pareça ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. A resposta é:
não. Não conheço. Mas a culpa disso é o pecado. O homem se afasta de Deus quando
peca.

TIO – Isso é verdade. Mas não lhe parece estranho que, em toda a
história da humanidade, nunca ninguém sequer se aproximou da imagem e semelhança
de Deus, além de Jesus? Por que será?

JÚLIO – Por quê?

TIO – Vivemos num mundo muito pouco evoluído. A Terra, até aqui, tem
sido um planeta de expiação e de provas, uma espécie de hospital ou escola para
espíritos pouco esclarecidos como nós somos atualmente. Mas no decorrer do
Terceiro Milênio vamos entrar paulatinamente numa nova etapa, num novo estágio
evolutivo. E a Terra passará a ser, não mais um mundo de sofrimento, mas de
regeneração. Nosso planeta começará a abrigar espíritos mais evoluídos, mais
dispostos a aprender e a praticar a caridade pregada por Jesus.

SÉRGIO – Já lhe perguntei e torno a perguntar: de onde o senhor tirou
tudo isso? Onde, na Bíblia, está escrito que existe reencarnação?

TIO – Vou-lhe citar algumas passagens. Você se lembra do encontro de
Jesus com Nicodemos?

SÉRGIO – Claro que sim. “Jesus lhe disse: em verdade, em verdade te
digo que não pode ver o reino de Deus senão aquele que nascer de novo”. Mas é
óbvio que Cristo se referia ao renascimento pelo batismo.

TIO – Não, meu querido. Assim, caímos novamente naquela discussão que
tivemos há pouco sobre a importância do batismo, e que é nenhuma. Se Jesus se
referisse ao batismo, Ele teria dito, simplesmente, que “não pode ver o reino de
Deus senão aquele que for batizado”. Jesus não tinha dificuldade alguma de se
expressar, de se fazer entender. Ele não diria uma coisa querendo, na verdade,
dizer outra.

JÚLIO – Taí! Eu sempre me perguntei: será que Deus vai ficar na
entrada do céu conferindo as almas para verificar quais as batizadas e as não
batizadas, como se fosse o porteiro de um clube verificando quem é sócio de
carteirinha e quem não é?

TIO – Pois é. Essa é uma imagem muito pouco lisonjeira que se faz de
Deus. (para o sobrinho: ) – Ainda no mesmo trecho do Evangelho, Jesus diz
a Nicodemos: “O que nasce da carne, é carne, e o que nasce do Espírito, é
espírito”.

MARTA – Sei. E o que isto significa?

TIO – Exatamente o que Ele disse: que a parte física, a carne do
Homem, nasce da parte física – do espermatozóide e do óvulo. E que a parte
espiritual, o Espírito, nasce não da parte física – da junção do espermatozóide
com o óvulo –, mas vem do plano espiritual, do mundo espiritual.

SÉRGIO – E o que tem a reencarnação a ver com isso?

TIO – Tudo! O espírito, segundo Jesus, não é criado no momento da
concepção, mas vem pronto do mundo espiritual. “O vento sopra onde quer, e tu
ouves o seu ruído, mas não sabes donde ele vem, nem para onde vai; assim é todo
aquele que nasceu do Espírito”, ou seja, quando olhamos para uma pessoa, sabemos
que há ali um espírito que a anima, mas não conhecemos sua história; não sabemos
de onde ele vem e nem para onde vai após abandonar aquele corpo.

MARTA – E por quê Jesus não disse isto com todas as letras,
claramente, para que não houvesse nenhuma dúvida?

TIO – Jesus apresentou um bom argumento para isto. Ele disse: “Se vos
tenho falado das coisas terrenas, e não me acreditais, como me acreditareis se
vos falar das celestes?”

JÚLIO – E o que foi que Nicodemos respondeu?

TIO – Nicodemos, a princípio, parece não ter entendido as implicações
do que Jesus dizia. Ele quis saber como é que um homem, sendo velho, poderia
voltar ao ventre da mãe para nascer de novo. Jesus, então, estranha que
justamente ele, Nicodemos, um mestre em Israel, um estudioso dos textos
sagrados, desconhecesse aquele fato.

MARTA – Nicodemos era um fariseu, não era?

TIO – Sim, era fariseu e poderoso membro do Sinédrio, a alta cúpula do
clero na Palestina. E, como tal, era também um doutor da Lei e profundo
conhecedor dos livros sagrados. Agora me digam: por que Jesus estranhou a
ignorância de Nicodemos?

(Júlio dá de ombros, como quem diz que não faz a mínima idéia)

TIO – Porque Jesus sabia que esses livros – que hoje conhecemos como
Antigo Testamento – estão repletos de citações que comprovam a doutrina da
reencarnação. E Nicodemos, como estudioso da Lei e dos Profetas, deveria
conhecer essas passagens.

SÉRGIO – Essa, para mim, é novidade! Onde é, no Antigo Testamento, que
constam essas citações sobre a reencarnação?

TIO – Em inúmeras passagens. No primeiro mandamento, por exemplo,
Jeová afirma: “Eu sou um Deus zeloso, que visita a iniqüidade do pai no filho,
na terceira e na quarta geração daqueles que me aborrecem”.

MARTA – Eu sempre ouvi esse trecho de forma diferente: “Eu sou um Deus
zeloso, que visita a iniqüidade do pai no filho ´até´ a terceira e a
quarta geração daqueles que me aborrecem”.

TIO – Essa aí é a versão mais difundida, atualmente, mas não é a
versão correta. Foi adulterada nas traduções modernas. O texto original da
Vulgada latina, traduzida por São Jerônimo no século quarto, é “in
tertiam et “in” quartam generationem. “Na” terceira e “na” quarta
geração. Essa tradução que você mencionou, além de deturpada – e, portanto,
desonesta – é uma verdadeira heresia, porque faz de Deus um ser vingativo e
injusto, que castiga num indivíduo os erros de outro. Que sentido teria alguém
sofrer um castigo por causa de um pecado cometido por seu bisavô, que ele nem
chegou a conhecer?

JÚLIO – E na tradução correta isso não ocorre?

TIO – Não! Quando Deus afirma que visita a iniqüidade do pai no filho,
na sua terceira e na quarta geração, está dizendo que é o mesmo pai – o que
pecou – que sofre as conseqüências de seus atos anos mais tarde, numa outra
encarnação.

SÉRGIO – Mesmo que seja esta a interpretação correta, por que é que
essa teoria não fica patente em outros trechos da Bíblia?

TIO – Aí é que você se engana. Em outra passagem, ao profetizar sobre
a nova aliança com Deus, o profeta Jeremias declara: “ Nesses dias já não se
dirá: os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se estragaram. Mas cada
um morrerá por sua própria falta. Todo aquele que tenha comido uvas verdes, esse
mesmo é que terá os dentes estragados.” Com isto, Jeremias deixou bem claro que
a responsabilidade pelos próprios atos é pessoal e intransferível.

JÚLIO – É… Nesse trecho, a explicação fica mais clara. Então o
primeiro mandamento é mesmo como seu tio menciona: é o próprio pecador que
retorna mais tarde para pagar pelos seus erros!

TIO – Tem ainda outra passagem, do Livro de Ezequiel, em que Deus
afirma: “Aquele que pecar, esse morrerá. O filho não sofre o castigo da
iniqüidade do pai, como o pai não sofre o castigo da iniqüidade do filho.” E no
Livro de Jó: “somos de ontem e não sabemos nada”. E, assim, existem outras
citações bíblicas que mencionam a reencarnação, ainda que de forma velada.

SÉRGIO(irônico) – Mas agora, com as luzes do Espiritismo,
tudo fica esclarecido e o véu se rompe, não é? Não lhe parece, tio, um pouco de
pretensão achar que o Espiritismo traz respostas que nem mesmo Jesus podia dar?

TIO – Não há nisto pretensão alguma. O próprio Jesus disse,
textualmente, aos seus discípulos: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas
vós não as podeis compreender agora. Quando vier, porém, o Espírito da Verdade,
Ele vos guiará no caminho da verdade integral, porque não falará de si mesmo,
mas dirá tudo o que tiver ouvido, e anunciar-vos-á as coisas que estão por vir.”
E ainda acrescentou: “Ele vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o
que eu vos tenho dito”.

SÉRGIO – Jesus se referia à vinda do Espírito Santo em Pentecostes.
Quando seus discípulos estavam reunidos no cenáculo, após a ascensão de Jesus, o
Espírito Santo desceu sobre eles e deu a cada um o dom das línguas e o completo
entendimento da missão do Cristo.

TIO – Será? Então, por que Jesus disse que o Espírito da Verdade viria
“para ensinar todas as coisas e recordar tudo” o que Ele, Jesus, havia dito?

SÉRGIO – Os discípulos, tocados pelo Espírito Santo, realmente foram
agraciados com o conhecimento integral de todas as coisas – tanto que saíram a
pregar em todas as línguas!

JÚLIO – Uma vez, numa firma em que trabalhei, um colega meu meio
estranho, um dia, diante de todos, começou a falar uma língua que ninguém – nem
ele próprio, pelo que confessou depois – conhecia. Ele garantiu que foi coisa de
espírito…

SÉRGIO – Não misture as coisas, pai! Com os apóstolos foi o próprio
Espírito Santo, a terceira pessoa da Santíssima Trindade, que se manifestou.

TIO – Pois eu lhe digo que tanto no caso do colega de seu pai quanto
no caso dos apóstolos, o que ocorreu foi um fenômeno mediúnico. Quanto aos
apóstolos, os espíritos se manifestaram nas línguas de todos os que se
encontravam em Jerusalém, um importante centro comercial da época e que reunia
gente de muitos lugares distantes.

MARTA – E por que Jesus falou que esse “Espírito da Verdade” viria
“recordar” o que Ele havia ensinado?

TIO – Porque Ele sabia que suas palavras, ao longo do tempo, seriam
deturpadas e esquecidas, o que realmente acabou ocorrendo. (Para o sobrinho:
)
– Você não acha estranho, Sérgio, que, apenas alguns dias depois de Jesus
dizer aos seus discípulos que eles não poderiam entender o que faltava ser dito,
esses mesmos discípulos, de um momento para outro, já estivessem preparados para
conhecer a “verdade integral” em Pentecostes? O que poderia ter ocorrido para
capacitá-los a esse entendimento em tão curto espaço de tempo?

SÉRGIO – Ora! Esse entendimento instantâneo foi uma graça de Deus!

TIO – Não, meu querido sobrinho. Essa “graça”, como você chama, seria
um privilégio concedido por Deus a apenas algumas pessoas. E isto vai de
encontro a Sua soberana justiça.

SÉRGIO – Se a vinda do Espírito da Verdade não tem nada a ver com
Pentecostes, quando foi, então, que Ele veio? Ou ainda não veio?

TIO – O Espírito da Verdade veio, sim. E o que Ele disse, basicamente,
foi que Deus, na Sua infinita misericórdia, quer a salvação de todas as suas
criaturas, e que essa salvação só depende do esforço pessoal de cada um e só é
possível após um longo caminho de aprendizado, no decorrer de inúmeras
reencarnações.

MARTA – Que Espírito da Verdade é esse? Quando foi que Ele veio? Onde?

TIO – Para responder a estas perguntas, eu teria de me estender um
pouco, mas eu não quero aborrecê-la. Por isso, digo-lhe apenas que no século
dezenove, um francês chamado Hippolyte Léon Denizard Rivail, um grande
magistrado, pedagogo e advogado de muito conceito, intrigado pelo crescente
sucesso em toda a Europa de uma brincadeira de salão na qual se conversavam com
supostos espíritos através de pequenas mesas girantes, quis verificar
pessoalmente se por trás dessa brincadeira havia algo de sério. Rivail, que
tempos depois passou a assinar Allan Kardec, era um pensador positivista e, como
tal, só se convenceu da realidade do fenômeno após exaustivos estudos e
verificações. Mais tarde, utilizando-se da cooperação de muitos médiuns em
diversas partes do mundo, formulou uma grande quantidade de perguntas aos
espíritos. As respostas que lhe chegavam eram confrontadas umas com as outras e,
as que se assemelhavam, que estavam concordes entre si, foram compiladas numa
grande obra denominada “O Livro dos Espíritos”. O Espírito da Verdade mencionado
por Jesus foi um dos que, no mundo espiritual, coordenaram esse trabalho.

JÚLIO – Você mencionou algumas passagens do Antigo Testamento que
podem se referir à reencarnação. No Novo Testamento, além dessa conversa de
Jesus com Nicodemus, tem alguma outra?

TIO – Tem várias. Uma dessas passagens é o que eu chamo de caso
explícito de reencarnação. Foi no episódio da transfiguração, em que Jesus,
acompanhado somente por Pedro, Tiago e João, subiu a um monte e se revestiu de
intensa e maravilhosa luminosidade. Durante essa transfiguração, apareceram a
eles Moisés e Elias, os dois desencarnados há muitos séculos. Os discípulos
ficaram apavorados e, mais tarde, perguntaram a Jesus sobre Elias, ainda hoje um
dos profetas mais estimados pelos judeus e que, segundo a tradição, deveria
retornar à Terra. Jesus respondeu que Elias certamente haveria de voltar para
restabelecer todas as coisas, mas que ele já havia vindo e não fora reconhecido.
“Antes”, disse Jesus, “fizeram dele o que quiseram.” Só então os discípulos
compreenderam que Jesus se referia a João Batista. Ou seja, João Batista havia
sido o próprio Elias reencarnado.

SÉRGIO – Foi apenas uma figura de retórica utilizada por Jesus para
explicar a afinidade entre os dois profetas, João e Elias. Não tem nada a ver
com reencarnação!

TIO – E o que você me diz daquela outra passagem, do Evangelho de
Mateus, em que o mesmo Jesus, referindo-se ainda a João Batista, diz com todas
as letras: “E, se vós o quereis compreender, ele mesmo (João Batista) é o Elias
que há de vir”? Ou seja, primeiro Jesus disse que Elias era João Batista e, em
outra ocasião, num outro contexto, afirmou que João Batista era Elias. E, para
arrematar, ainda acrescentou: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” – que quer
dizer: o que vocês escutaram, foi isso mesmo que eu disse.

MARTA – Uau! Isso significa duas coisas: que João Batista não só era o
profeta Elias reencarnado como esse mesmo Elias ainda deveria voltar novamente,
depois de João Batista!

TIO – Exatamente! Numa outra passagem do Evangelho, Jesus,
referindo-se aos escândalos existentes no mundo, diz o seguinte: “Se a tua mão
ou o teu pé te escandaliza, corta-o e lança-o fora de ti; melhor te é ´entrar na
vida´ com um pé ou mão a menos do que, tendo duas mãos e dois pés, ser lançado
no fogo eterno. E se o teu olho te escandaliza, arranca-o e lança-o fora de ti;
melhor te é ´entrar na vida´ com um só olho do que, tendo os dois, ser lançado
no fogo da geena.”

SÉRGIO – Jesus se referia à vida eterna. É claro que Ele usou apenas
uma metáfora quando aconselhou que cortássemos o pé, a mão, ou arrancássemos o
olho que pudesse ser causa de escândalo e de nossa condenação eterna.

TIO – Se esta tivesse sido a única referência de Jesus à reencarnação,
talvez pudéssemos interpretá-la com esse sentido que você lhe atribui. Mas não!
Quando Jesus disse que era melhor “entrar na vida” sem a parte de nosso corpo
que nos escandaliza, ele se referia ao nascimento físico, mesmo, aqui na Terra!

MARTA – Ué, tio, e como pode ser dar isso? Por acaso o senhor está
insinuando que podemos “escolher” nascer sem um pé, u´a mão, ou sem um olho?

TIO – Perfeitamente! Antes de reencarnarmos, fazemos uma avaliação de
nossa vida anterior, analisamos nossos erros e acertos, planejamos a nova
encarnação e, quando percebemos que nosso corpo físico nos levou a determinados
vícios e erros de conduta, pedimos para nascer com limitações que nos dificultem
a recaída naqueles mesmos erros e vícios. Foi isto o que Jesus quis dizer.

JÚLIO – É, faz sentido! Tem alguma outra passagem do Evangelho que
fale da reencarnação?

TIO – Sim! Por exemplo, quando Jesus perguntou aos seus discípulos
quem os homens achavam que Ele, Jesus, era. Pedro respondeu: “Uns dizem que és
João Batista, outros, Elias, e outros, que ressuscitou um dos antigos profetas”.
Ou seja, a idéia da reencarnação, que os judeus chamavam de ressurreição, embora
não muito bem compreendida por todos, era perfeitamente aceita à época de Jesus.

SÉRGIO – Mas Jesus nunca a confirmou publicamente. Pelo contrário,
chegou mesmo a negá-la no caso da cura do cego de nascença.

TIO – Ôpa! Isso não é verdade! Jesus confirmou, sim, essa crença, como
acabei de demonstrar com exemplos. E no caso da cura do cego de nascença,
mencionado por você, a conclusão que se chega é completamente oposta àquela que
os adversários da doutrina da reencarnação querem tirar.

JÚLIO – Conte-nos essa história direito, mano.

TIO – Prefiro que Sérgio, primeiro, nos narre o texto do Evangelho.

SÉRGIO – Foi mais ou menos assim: Jesus e seus discípulos caminhavam
por uma estrada quando encontraram um cego de nascença. Aí, então, os discípulos
Lhe perguntaram: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?
E Jesus respondeu: (enfatizando a primeira parte da frase: ) – Nem ele,
nem seus pais pecaram, mas foi para se manifestarem nele as obras de Deus.
(em tom vitorioso:
) – Como vêem, Jesus nega a reencarnação!

TIO(com a calma de quem já esperava pela argumentação do outro)
– Receio que você esteja equivocado.

JÚLIO – Por que equivocado? Agora sou obrigado a concordar com meu
filho: a resposta de Jesus é mesmo contra a reencarnação.

MARTA – É, tio… Acho que o senhor tem um problema…

TIO(com bom humor) – Adoro resolver problemas. Vamos lá!
Ignoremos, por um momento, a resposta de Jesus. Vamos, primeiro, analisar a
“pergunta” feita por seus discípulos.

SÉRGIO – Tudo bem! “Os discípulos perguntaram-Lhe: Mestre, quem pecou,
este ou seus pais, para que nascesse cego?”

TIO(fazendo sinal para que Sérgio interrompesse) – Muito
bem! Agora sou eu que questiono: por que é que os discípulos fizeram essa
pergunta a Jesus? (e olha interrogativamente para os outros três).

MARTA – Bem, deve ser por causa daquele outro trecho da Bíblia sobre o
qual falávamos há pouco, o do primeiro mandamento: “visito a iniqüidade do pai
no filho, na terceira e na quarta geração daqueles que me aborrecem”.

TIO – Exato! (comenta, lisonjeiro) – Gostei! Para quem se
considera atéia, você está-se saindo muito bem no quesito “catecismo”.

MARTA(alegre) – Tio, sou atéia mas não sou totalmente
ignorante…

SÉRGIO(impaciente) – Bem, e daí?

JÚLIO – É, e daí?

TIO – E daí que os discípulos, com essa pergunta, deixaram
absolutamente claro que acreditavam na reencarnação. E – o que é mais importante
– Jesus sabia disso. Não só porque convivia diariamente com eles, como também
porque conhecia o íntimo, o pensamento de cada um dos seus discípulos e de todos
os que d´Ele se aproximavam.

JÚLIO(com expressão interrogativa) – E…

TIO – Ora, sabendo que seus discípulos acreditavam na reencarnação,
Jesus poderia, simplesmente, negar essa crença e esclarecer de uma vez por todas
que eles estavam errados. Seria uma oportunidade de ouro para transmitir aos
discípulos e a todos os que se encontravam por perto tão importante ensinamento.
Mas não… Jesus não negou a reencarnação. Ao contrário, esclareceu apenas que
aquele caso era especial, uma exceção à regra geral. Respondeu-lhes que nem o
cego de nascença, nem seus pais haviam pecado, mas que o homem nascera com
aquela deficiência como missão, para que Ele, Jesus, pudesse operar sua cura
fazendo, assim, manifestarem-se as obras de Deus.

JÚLIO – Isto significa que, na sua opinião, aquele homem foi usado por
Deus? Não lhe parece um pouco forte essa afirmação?

TIO – Você é que está sendo duro com essa expressão. Ninguém foi
“usado” por Deus. Aquele homem, muito provavelmente, ofereceu-se como voluntário
para encarnar com deficiência visual, pois sabia que ia servir de instrumento
para a conversão de muitas pessoas – o que, de fato, acabou ocorrendo.

JÚLIO – Quer dizer que ressurreição e reencarnação são a mesma coisa?

SÉRGIO – Para a Igreja, não. O que a Igreja ensina é a ressurreição
dos mortos, ou seja, no dia do Juízo Final, os corpos dos mortos serão
restituídos de seus túmulos, ficarão glorificados e voltarão aos espíritos que
lhes deram vida anteriormente. Já o que tio Pedro defende é a idéia da
reencarnação, isto é, o retorno dos espíritos dos mortos em outros corpos, ainda
nesta vida.

TIO – Só que você se esquece de um detalhe: à época de Jesus o termo
“reencarnação” não existia, mas a “idéia” da reencarnação não só existia como
era aceita por muita gente. E essa idéia era expressa exatamente pela palavra
“ressurreição”, que tanto significava o renascimento do indivíduo em novo corpo,
ainda nesta vida, quanto seu ressurgimento no Dia do Juízo, só que, então, não
mais num corpo físico, corruptível, mas num corpo espiritual, incorruptível,
como bem explicou o apóstolo Paulo.

MARTA – Baseado em quê o senhor afirma isto?

TIO – Baseado nos Evangelhos. E a resposta de Pedro a Jesus – sobre
quem o povo achava que Jesus era – é uma prova do que digo. Notem que Pedro
disse que parte do povo achava que Ele, Jesus, era um antigo profeta que havia
ressuscitado. Ora, se uma pessoa podia ressuscitar antes do Juízo Final, era que
a idéia de ressurreição, naquela época, equivalia a nossa idéia atual de
reencarnação.

SÉRGIO – Não acredito nisso.

TIO – Mas é verdade. O próprio Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios,
escreveu: “Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam?”
Notaram que ele usa a conjugação do verbo ressuscitar no presente? Isto
significa que naqueles dias já havia espíritos ressuscitando – ou seja,
reencarnando.

JÚLIO – E sempre reencarnando como ser humano…

TIO – Claro! É o que eu disse há pouco: o espírito não retroage nunca.
O máximo que pode ocorrer é ele estacionar em seu processo evolutivo. Aliás,
Paulo de Tarso esclareceu também este ponto quando escreveu aos Coríntios: “Nem
toda a carne é a mesma carne, mas uma é certamente a carne dos homens, e outra a
dos animais, uma a das aves e outra a dos peixes.” E Paulo fez questão de deixar
bem clara esta diferença porque, como era grande conhecedor do pensamento grego,
sabia que alguns filósofos daquela época defendiam a metempsicose: a
ressurreição – ou reencarnação – de um espírito humano num animal. Se na opinião
de Paulo a ressurreição ocorresse exatamente com o mesmo corpo que o indivíduo
possuía ao morrer, não haveria a menor necessidade de esclarecer essa questão;
Paulo não precisava explicar que ninguém ressuscita com o corpo de um animal, de
uma ave ou de um peixe…

SÉRGIO – Tio, se fosse tão evidente assim, os doutores da Igreja
teriam aceitado essa interpretação.

TIO – E foi isso mesmo o que ocorreu por mais de cinco séculos.

MARTA(para Sérgio ) – É verdade. A Igreja só rejeitou a
doutrina da reencarnação no ano de 543, com a publicação dos anátemas do
patriarca Menas, de Constantinopla. Antes disso, muitos teólogos dentro da
própria Igreja defendiam abertamente a reencarnação, como Orígenes de
Alexandria, por exemplo.

TIO – Na verdade, Marta, muitos teólogos, inclusive católicos,
sustentam hoje em dia que a doutrina da preexistência da alma e, por
conseguinte, da reencarnação, nunca foi condenada oficialmente pela Igreja.

SÉRGIO – Como não? De onde o senhor tirou esta idéia?

TIO – Tirei dos fatos históricos! Essa “condenação” mencionada por sua
irmã e que teria ocorrido com os éditos de Justiniano, em 543, na verdade dizia
basicamente o seguinte: “se uma pessoa acredita que as almas humanas existiam
antes, como espíritos elevados, mas que um dia ficaram fartos de estar com Deus
no céu, e que em conseqüência disso o amor desses espíritos para com Deus
esfriou neles, e por isso passaram a se chamar almas humanas, e que foram
castigadas de forma a serem mandadas a encarnar em corpos na Terra, seja essa
pessoa que pensa assim excomungada.”

MARTA – Sério, tio? Ora, então a Igreja não condena mesmo a
reencarnação! O que ela condena é a idéia de que as pessoas reencarnam por
estarem cansadas do convívio com Deus.

TIO – Exatamente! Só que essa idéia é realmente absurda! As pessoas
reencarnam para se aperfeiçoarem, para progredirem, nunca porque se cansaram do
céu!

JÚLIO – E por que então a Igreja condenava, até agora, a reencarnação?

TIO – Segundo alguns historiadores e teólogos, por um lamentável
equívoco histórico. Ocorre que Justiniano, o imperador de Constantinopla, era
realmente contra a idéia da preexistência das almas. Então ele convocou um
sínodo ainda em 543, que acabou condenando a preexistência das almas e outras
doutrinas de Orígenes. Só que essas condenações, como haviam sido decididas num
sínodo, só tinham validade local, ao contrário das decisões tomadas num Concílio
Ecumênico, que têm validade para toda a Igreja. Por isso, Justiniano, com sua
influência política, fez com que essas condenações fossem posteriormente
anexadas às resoluções tomadas no V Concílio Ecumênico de Constantinopla II, em
553. E elas nem sequer foram apresentadas ao Papa Virgílio para sua aprovação.
Ou seja, Justiniano conseguiu seu objetivo “no tapetão”, como se diz hoje. E a
Igreja, depois disso, acabou com o tempo assimilando essas “condenações”,
principalmente a que se referia à doutrina da preexistência das almas, apesar de
elas nunca terem sido discutidas num Concílio.

SÉRGIO – Não sei, não, tio. Olha, eu confesso que essa história toda
da encíclica está-me deixando maluco, confuso, com dificuldade para raciocinar.
Mas, em outra circunstância, mais tranqüila, vamos voltar ao assunto, e aí o
senhor verá que posso rebater ponto por ponto tudo o que está afirmando.

TIO – Serginho, me perdoe se o aborreci. Não foi minha intenção. Mas
eu acho que você deveria serenar seu espírito e alegrar-se. Você verá mais tarde
que há muito mais motivos para júbilo do que para tristeza.

JÚLIO – Vamos ligar a televisão para ver se há alguma novidade.

(Liga a TV. Está passando uma matéria sobre o assunto. O locutor lê o texto
enquanto imagens o ilustram)

LOCUTOR – … centenas de jornalistas e equipes de televisão de todo o
mundo não param de chegar ao pequeno Estado do Vaticano. Todos os hotéis de Roma
estão lotados e, agora, só se acha acomodação nas casas de família. Essa equipe
da televisão estatal chinesa decidiu acampar em plena Praça de São Pedro.
(pausa)
– Enquanto a população católica de todo o mundo vive um dia de muita
agitação, o clima na Santa Sé foi de aparente tranqüilidade e rotina. O papa,
como de costume, saiu à sacada da basílica para a bênção aos fiéis. A Praça de
São Pedro estava lotada. (pausa) – E atenção! Neste momento, o
cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Carlos Rocco, dá uma entrevista coletiva na
entrada de sua residência. De lá, fala ao vivo o repórter Pedro de Souza.

REPÓRTER – Não há motivo algum para pânico. Assim pode ser resumida a
fala de Sua Eminência, Dom Carlos Rocco, aos repórteres reunidos à frente de sua
casa, no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Vamos ouvi-lo.

CARDEAL – … e, por isso, Sua Santidade resolveu antecipar a
divulgação do documento. A encíclica Reencarnatio et Salvatio, repito, está
inserida num contexto de “abertura” pastoral da Igreja Católica aos nossos
irmãos de outras crenças, que têm na reencarnação um dos seus postulados
doutrinários.

(Tumulto entre os repórteres, todos perguntando ao mesmo tempo. Uma das
perguntas se sobressai)

REPÓRTER – Eminência, o senhor acha que poderá ser benéfica para a
Igreja essa abertura? Ela atrairá os reencarnacionistas de outras religiões ou
apenas afastará da Igreja aqueles católicos que não acreditam na reencarnação?

CARDEAL – Somente o tempo dirá o que vai ocorrer. Uma coisa, porém, é
certa. O fato de a Igreja admitir, agora oficialmente, por meio do santo padre,
a doutrina da reencarnação, coloca fim a uma antiga discussão existente no seio
da própria Igreja, e jamais tornada pública. Refiro-me à discussão entre os
teólogos tradicionais, mais conservadores, partidários da doutrina da
ressurreição, ou seja, a de que todos nós ressuscitaremos uma única vez no dia
do Juízo Final, e os teólogos mais progressistas, partidários da doutrina da
reencarnação, estes em número cada vez maior.

REPÓRTER – E o que teria levado o papa a optar por essa doutrina, a da
reencarnação, e não pela outra?

CARDEAL – Meu amigo, em 1594, a Igreja cometeu um grave erro, talvez o
maior de toda a sua história, ao condenar Giordano Bruno e levá-lo à fogueira
por ter defendido a idéia de que o sol, e não a Terra, era o centro do nosso
sistema. E a Igreja assim o fez apesar de todas as evidências de que Giordano
estava correto em suas afirmações. Em 1632, foi a vez de Galileu Galilei ser
condenado pela Igreja por defender as mesmas idéias – e que ele acabou abjurando
mais tarde para não ir para a fogueira da Inquisição. Hoje, a situação é mais ou
menos parecida. De um lado, nós temos a doutrina da ressurreição, baseada apenas
em textos bíblicos, alguns dos quais de interpretação bastante dúbia. De outro,
o surgimento, a cada dia, de novas e fortes evidências da realidade da
reencarnação, trazidas ao conhecimento público pela Ciência. A Igreja não
queria, e não podia, cometer mais um equívoco tão grave. Portanto, a decisão do
papa de divulgar essa encíclica foi, no nosso entendimento, absolutamente
correta e oportuna. Obrigado a vocês todos.

REPÓRTER – O cardeal-arcebispo Dom Carlos Rocco afasta-se rapidamente
dos repórteres. Nós continuamos a postos, aguardando novas informações.

LOCUTOR – Com a encíclica Reencarnatio et Salvatio in Providentia Dei,
o papa João Paulo III inicia uma nova etapa da história da civilização
ocidental. A partir de hoje, o Cristinismo e o próprio mundo não serão mais os
mesmos. As implicações da doutrina da reencarnação na vida de 600 milhões de
católicos existentes no mundo, a repercussão na Europa, Ásia, América do Norte e
no Brasil, você verá logo mais na edição nacional.

SÉRGIO(desligando a televisão, pensativo) – Então aconteceu,
realmente.

TIO – Sérgio, meu querido. Você ouviu Dom Carlos falar: o que o papa
fez foi, apenas, oficializar uma opinião já difundida entre grande parcela dos
teólogos da Igreja. Além do mais, existem, como Dom Carlos observou
corretamente, as evidências científicas da reencarnação. E o que hoje são apenas
evidências, amanhã serão provas irrefutáveis, você verá…

CENA 10

(Sem que ninguém percebesse, Ana surge à porta que liga a sala ao hall do
quarto, cambaleante, apoiando-se no batente. Quando a vêem, correm para
ampará-la)

JÚLIO – Querida, o que está fazendo aqui? Você não devia levantar-se.
Vamos já para o quarto.

ANA – Não, eu estou bem. (arfando: ) – Eu ouvi… Ouvi tudo o
que vocês disseram e o que a televisão disse…

SÉRGIO( preocupado) – Calma, mãe! A história ainda está
muito confusa… Não se preocupe com isso, por favor!

ANA(sorrindo, moribunda) – Eu estou calma, meu filho. Bem
mais calma do que você… Aliás, do que “vocês”… (breve pausa)
Reencarnar… A idéia não me desagrada, sabiam? … Na verdade, essa história
sempre me passou pela cabeça… Claro, não era uma idéia persistente… Ela
surgia assim, de repente, depois de alguns anos sem que eu pensasse no
assunto… Engraçado. É como se eu já soubesse… Ou como se alguém que eu não
pudesse ver me assoprasse ao ouvido…

JÚLIO – Querida, você não deve se emocionar…

MARTA – Mãe, vamos deitar, vamos…

ANA(detendo-os, com um gesto) – Ora, não se preocupem, já
disse. Eu estou bem… Creio que nunca estive melhor em toda a minha vida…
(sorri)
– Reencarnar… Então, ninguém vai para o inferno pela eternidade
como, desde menina, eu ouvia minha mãe dizer… Pobre mamãe… Será que ela já
reencarnou? Faz tanto tempo…

MARTA(preocupada) – Mãe, o doutor disse que a senhora
precisa repousar…

ANA(serena, com infinita paciência) – Eu vou repousar daqui
a pouco… Sinto que meus dias estão contados…

MARTA, JÚLIO, SÉRGIO, TIO(ao mesmo tempo)
– Ora! Não diga isso! Bobagem!

ANA – Gozado, creio que esta é a primeira vez na minha vida que eu
penso serenamente na morte.

SÉRGIO(tentando interrompê-la) – Mãe…

ANA(enérgica) – Deixe-me falar… Eu “preciso” falar… E
você e sua irmã precisam me ouvir também… Talvez mais do que os outros. Eu
ouvi a discussão de vocês e os argumentos que vocês utilizaram para criticar a
atitude do papa. Será que vocês não percebem que o que esse papa fez foi dar um
mínimo de sentido para a vida de bilhões de pessoas que sofrem todo tipo de
privação, angústia, necessidade… Pessoas que nascem, crescem, vivem e morrem
sem entender o significado disso tudo… o significado da vida? Pessoas que
nascem, crescem, vivem e morrem sem esperança, sem vislumbrar sequer uma luzinha
no fim do túnel?

(Sérgio e Marta vão dizer algo, a mãe os interrompe. Enquanto ela fala, em
torno deles surgem alguns vultos, tênues, com as mãos impostas sobre o grupo, na
direção de Ana)

ANA – Esperem… Eu preciso falar… Sinto que já não terei muito
tempo… Meus filhos queridos, o que o papa acabou de fazer – e que o Pai Eterno
o abençoe por isto – foi resgatar a idéia de um Deus infinitamente bom e
misericordioso… Um Deus que é só amor, capaz de perdoar a qualquer falta de
qualquer um dos seus filhos… Seu tio está certo, “sempre” esteve certo… Nós
é que, na nossa cegueira, no nosso orgulho, não enxergávamos o óbvio… Parem
para pensar…. Vocês verão que, agora, tudo faz sentido… Ninguém sofre de
graça, sem motivo… O próprio sofrimento adquire um novo significado, muito
mais sublime; não mais uma desgraça ou maldição, mas uma bênção divina; não mais
uma interferência do demônio na nossa vida, mas, ao contrário, um “anjo de Deus”
que vem em nosso auxílio para nos ajudar a corrigir nossas imperfeições,
harmonizar nossos desequilíbrios, tornar-nos melhores, mais espiritualizados…
Meus filhos, agora podemos ter certeza de que ninguém está desamparado pela
misericórdia divina… Ninguém foi esquecido por Deus…

(Tio, pai e filhos escutam, agora sem coragem de interromper)

ANA(olhando um por um) – Meus queridos. Quero que saibam
que, nestes meus últimos instantes de vida…

(Sérgio faz menção de interrompê-la; ela o interrompe antes, enérgica)

ANA – … nestes meus últimos instantes, eu repito, quero que saibam
que estou me sentindo imensamente leve e feliz. Agora, sei que posso morrer
tranqüila. (corrigindo-se: ) – Morrer, não! Desculpe… (olhando para
o tio que parece ser o único sereno, a entender perfeitamente o que se passa)

… desencarnar… Não é assim que vocês dizem? Desencarnar… Ninguém morre…
Ninguém “nunca” morre… Meus filhos, essas lágrimas que vocês vêem em meu rosto
são lágrimas de felicidade, de alívio, de gratidão a Deus…

(Júlio, Sérgio e Marta começam a chorar, baixinho)

ANA – Eu vou partir… Mas não se desesperem! Eu vou partir assim,
serena, como quem vai para uma curta viagem… Um dia eu volto… Agora, estou
certa de que nos veremos novamente, todos nós. Em circunstâncias melhores, num
mundo mais tranqüilo, mais feliz… onde as pessoas não se vejam como
adversárias ou inimigas umas das outras, mas como companheiras, viajantes num
mesmo barco… E viajantes alegres, confiantes no seu capitão… Viajantes que
trazem consigo a certeza de estarem rumando para um porto seguro…

TIO(comovido) – Ana, minha querida cunhada. Quero que saiba
que estou muito feliz com a sua tomada de consciência e muito mais tranqüilo com
relação a você. Sinto nas suas palavras a inspiração do Mais Alto, e vejo mesmo
em seu redor uma auréola de luz. Estaremos sempre juntos entre nós e, todos nós,
juntos do Pai Celestial. Fica tranqüila… Deus, na Sua infinita misericórdia
jamais abandona qualquer um dos seus filhos…

(Ana desencarna)

TIO – Vai com Deus.

(Júlio e os filhos abraçam o corpo inerte, chorando. As entidades espirituais
acercam-se de Ana, como que querendo levantá-la)

CENA 11

(Passou um tempo indeterminado. Ana, bem rejuvenescida, irradiando
felicidade, veste roupas claras e alegres. Está num jardim extremamente bonito,
celestial mesmo, acompanhada de um senhor igualmente jovial – seu mentor, ou
guia espiritual)

GUIA – Feliz com as novidades?

ANA – Muito! Extremamente feliz! Primeiro, porque reencontrei meu
querido papai Zito, que, aliás, está sendo muito bem assistido aqui na Colônia.
Depois, porque não vejo a hora de levarmos o plano adiante.

GUIA – Calma! Antes, nós temos ainda que tomar uma série de
providências. O processo de reencarne não é complicado, mas também não é tão
simples quanto você imagina.

ANA – Ora, não importa. (suspirando) – Vou sentir saudades de
você, dos amigos que fiz aqui e, por que não dizer, desse lugar maravilhoso.

GUIA(sorrindo) – Estaremos todos aqui, aguardando o seu
regresso.

(Ana emociona-se. O guia a abraça, fraternalmente)

GUIA – Não se preocupe. A missão que você escolheu, tenho certeza,
será integralmente cumprida. De qualquer forma, eu e nossos amigos espirituais
estaremos sempre juntos a você, amparando-a, reconfortando-a, inspirando-lhe
ânimo e coragem.

ANA – Tenho certeza que sim. Já na vida anterior eu sentia isso.

GUIA – Então! Além do mais, você encontrará agora um mundo muito
melhor do que aquele que você deixou quando veio para cá. Você tem acompanhado o
desenrolar dos acontecimentos na Terra?

ANA – Tenho, sim. A vida, lá, do ponto de vista da espiritualidade,
está bem melhor. Mas os problemas sociais continuam muito grandes. E o número de
sofredores ainda é enorme…

GUIA – Isso passa, você sabe. Esse período pelo qual atravessa o
planeta é necessário para a sua evolução. Mas nosso divino Mestre Jesus está
atento e tem enviado para a Terra, de acordo com a vontade do Pai Eterno, um
número cada vez maior de fiéis discípulos, dispostos a trabalhar intensamente
para o rápido aprimoramento dos nossos irmãozinhos encarnados.

ANA(sorrindo) – Não vejo a hora de estar novamente com meus
filhos e com o meu querido Júlio.

GUIA – Mas você jamais os abandonou desde que veio para cá!

ANA – Ah, mas é diferente. Eles não me viam quando eu os abraçava, os
afagava… Agora, vamos poder nos tocar, nos beijar, trocar palavras…

GUIA – Não se esqueça que Júlio, que agora será seu avô, muito em
breve virá para cá, deixando-a ainda pequena nos braços de seu filho.

ANA – Sim, eu sei. Mas eu saberei, também, que ele vai estar bem.
Lamento apenas não poder recebê-lo pessoalmente quando de sua vinda.

GUIA – Estou certo de que ele compreenderá a situação, perdoará essa
sua “falta” e a amará ainda mais quando conhecer sua missão.

ANA(algo apreensiva) – Sabe, às vezes sinto um pouquinho –
só um pouquinho – de medo de não cumprir todos os compromissos que estou
assumindo aqui.

GUIA – Não se preocupe. Esse sentimento é perfeitamente natural.
Quando lhe faltar forças, coragem, ânimo, não se esqueça…. Reze. Reze muito.
Como lhe disse, eu e nossos amigos estaremos sempre ao seu lado, ajudando-a .

ANA – Bom, pelo menos meu filho – ou melhor, meu futuro papai (ri)
– pelo menos ele abriu a mente para as verdades eternas. Eu vou crescer num
ambiente muito mais favorável do que aquele em que ele próprio foi criado quando
criança. Pena que Marta ainda esteja tão confusa em relação ao sentido da
vida…

GUIA – Mas, um dia, também ela despertará para a realidade. Veja só
que coisa… E saber que tudo aconteceu graças à encíclica do papa João Paulo…
A propósito, você sabia quea publicação da encíclica levou inúmeros líderes de
outras religiões a abrirem um debate público sobre a reencarnação? E sabia
também que algumas denominações protestantes, por meio de seus pastores, já
defendem abertamente a reencarnação como sendo a maior revelação divina dos
últimos tempos?

ANA – Bem, já não era sem tempo. (O Guia espanta-se com a
observação)
– Desculpe, foi um comentário infeliz…

GUIA(em tom de censura) – Sei que foi. Mas você está
enganada. Nada acontece por acaso, e essa encíclica veio no momento certo, nem
antes, nem depois. João Paulo reencarnou com essa missão, e soube desempenhá-la
como um autêntico missionário de Jesus. E saiba você que ele vem sofrendo
críticas enormes por causa disso. Até mesmo de alguns correligionários seus.

ANA – Coitado! Deus queira que ele não sucumba.

GUIA – João Paulo sucumbir? Você não conhece a fibra daquele homem.
Esse risco o mundo não corre….

ANA – Ótimo! Assim, tudo ficará melhor para todos, não é?

(Ana e o Guia riem, dão-se os braços e caminham pelo jardim)

CENA 12

(Passou um tempo indeterminado. Sérgio, que largou a batina, está acompanhado
de sua mulher numa sala de estar. Ela carrega um bebê que dorme)

ESPOSA – Veja, querido, como ela dorme. Nunca vi criança tão serena,
tão tranqüila.

SÉRGIO(abraçando a esposa e beijando-a, levemente, nos lábios)
– É que ela sabe que é filha de duas pessoas que se amam muito.

ESPOSA – Olhe! Mesmo dormindo, ela sorriu.

SÉRGIO – Meu Deus! Como é linda! Vou te dizer uma coisa que você vai
me achar meio maluco…

ESPOSA – Diga, então. Depois, eu dou meu veredicto.

SÉRGIO – Eu, quando olho para nossa filha, fico impressionado. Ela é
extremamente parecida com minha mãe…

ESPOSA(rindo) – Tá bom! Já ouvi essa história antes…

SÉRGIO – É verdade! Pena você não ter conhecido mamãe. Vocês teriam se
dado muito bem…

ESPOSA – Estou certa que sim, pelo que você e seu pai contam…

SÉRGIO(olhando para a menina) – Não sei… Tem alguma coisa
no rosto dessa menina que me faz lembrar de minha mãe. Os olhos? Talvez… Não,
eu acho que é esse sorrisinho dela quando está dormindo…

ESPOSA – Seu bobo!

(Beijam-se levemente nos lábios e ficam ambos contemplando a criança que
dorme, placidamente)

(CAI O PANO)

Bibliografia:

  • A Bíblia de Jerusalém – Edições Paulinas, 1981
  • A Face Oculta das Religiões – José Reis Chaves, Editora
    Martin Claret, 1ª ed., 2001
  • A Reencarnação na Bíblia – Hermínio C. Miranda, Editora
    Pensamento, 5ª ed., 1992
  • A Reencarnação Segundo a Bíblia e a Ciência – José Reis
    Chaves, Editora Martin Claret, 3ª ed., 1998
  • Novo Testamento – Edições Paulinas, 12ª ed., 1985
  • O Espiritismo e as Igrejas Reformadas – Jayme Andrade,
    Editora Seda, 1ª reedição, 1997
  • O Evangelho Segundo o Espiritismo – Allan Kardec
  • O Livro dos Espíritos – Allan Kardec