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Romeu e Julieta

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Enéas Canhadas

Agora há pouco deixei o teclado do computador e fui até a cozinha para comer um pedaço de queijo fresco com goiabada, mais conhecido como romeu e julieta. O problema de se trabalhar em casa é que, não precisamos assaltar a geladeira durante a noite. Nós o fazemos à luz do dia mesmo. Talvez não fique tão emocionante nem tenha o mesmo sabor de coisa proibida, mas pode-se dizer que é quase uma fatalidade.

Acontece que, quando fui pegar uma fatia da goiabada, lá estava ela, uma abelha, praticamente mergulhada, ou quem sabe, literalmente colada ao pedaço de goiabada mal envolto no papel celofane com que veio embrulhada. Não sei se ela seria capaz de sair dali sozinha. Também não sei se ela, movida pelo seu instinto, gostaria de sair dali, uma vez que a sua natureza instigada pela sua abelha-rainha, lhe manda buscar permanente e freneticamente o açúcar com que fabricam os favos de mel que, de qualquer maneira, vão acabar caindo nas mãos dos homens. Quase que, seguindo uma espécie de instinto também, rapidamente tomei a providência de ir até a porta da cozinha e com um gesto certeiro que fazemos com o dedo médio fechando-se em arco com o polegar para, em seguida, distender-se rapidamente catapultando a abelha para longe daquele pedaço de goiabada. Ela foi cair a alguns metros, sobre a cerâmica vermelha que cobre o meu pequeno quintal entre a lavanderia e a cozinha. Dentro de segundos, ela se recuperou do golpe, exercitou suas patas que estavam completamente besuntadas pela goiabada, e logo voou, talvez para perder-se em outro pedaço de goiabada ou em qualquer lugar que o seu instinto indicasse haver açúcar ou assemelhados. Quem sabe, desta vez, para sofrer um golpe mais definitivo na sua breve vida, como é comum as pessoas, nessa hora, usarem um jornal velho ou um pano, que poderá acabar com a sua vida, sem que ela tenha direito a levar mais um pouco de açúcar para continuar dando a sua contribuição à colmeia de que faz parte.

Num “flash” me veio à mente as imagens de ontem à noite (escrevo este artigo na tarde do dia 27 de março de 2003, uma Quinta feira) na televisão numa reportagem sobre a guerra. Dois soldados americanos, embrulhando num pano semelhante às fardas que vestiam, o corpo de um menino que havia sido morto por eles mesmos num tiroteio perto dali, em pleno deserto. Ele estava junto com o seu pai que, como outros iraquianos, tentaram e vão tentar por muito tempo, reagir em vão. Não foi difícil cavar um buraco do tamanho que coubesse o corpo daquela criança, enrolado no tecido com a marca do exército invasor. Até que foram cerimoniosos, embora não tivessem podido realizar as orações de acordo com a fé muçulmana para o sepultamento. A cerimônia constitui-se apenas de colocar o corpo envolto no pano, e logo, com as próprias mãos os dois soldados cobriram com areia do deserto o corpo envolto, preenchendo aquela cova rasa e simples. Em seguida caminhariam em frente, pelo deserto, de metralhadoras em mãos, continuando a sua jornada.

Me pus a pensar como pode ser relativamente simples, lutar uma guerra que supõe-se facilmente vencível. Embora tenha sido este o meu primeiro pensamento, logo cheguei à conclusão de que estava enganado no meu juízo. Talvez simples sejam os gestos, porém muito complexas são as emoções que sentimos ao praticá-los. Acredito que aquela cena nunca mais sairá da mente daqueles dois soldados, assim como não vai mais sair da minha. Logo pude concluir que não existem guerras facilmente vencíveis. Fui buscar uma referência num livro, cuja citação já havia marcado, dizendo “antigamente era usual chamarem-se “peritos” àqueles que na guerra venciam os inimigos facilmente vencíveis. Por isso, as vitórias conseguidas por um mestre da guerra não lhe trazem nem reputação de sapiência, nem mérito por bravura” (Arte da Guerra, Sun Tzu, Cap. IV – Disposições – Publicado pela Edit. Martin Claret, São Paulo, 2001).

Além do mais, quando ouço as notícias de que já estão sendo feitas concorrências e já se discute quem e como vai se reconstruir o país devastado pela guerra – queiramos todos nós que seja só um país devastado – misturou-se em minha mente tanto as imagens da abelha que joguei longe com o meu gesto, de força descomunal para o tamanho e a força daquele inseto, expulsando-a facilmente do seu “paraíso doce”, com as cenas que havia visto na televisão na noite anterior. Não sei se americanos e britânicos vão conseguir exterminar os inimigos como alguém é capaz de exterminar uma abelha. Mas, seja como for, com certeza haverão muitas abelhas mortas, tanto no sentido literal da palavra como também mortas porque foram expulsas do seu paraíso.

Não cabe aqui ajuizar sobre as misérias e condições comparáveis ao Brasil do descobrimento, com uma diferença brutal na paisagem. Aqui sempre tivemos mananciais, florestas, rios, mar em abundância e comida caindo das árvores em forma de frutos, desde que os desbravadores de mundo aqui chegaram. Há diferenças enormes ao olhar para um país que, em muitos aspectos, parece estar ainda na era jurássica mas que, seja como for, faz com que aquelas pessoas sintam-se em casa. É ser redundante mas temos que dizer muitas vezes para os nossos próprios ouvidos: É A CASA DELES!!!

É ingênuo pensar que sentem-se oprimidos e infelizes com todos aqueles sorrisos no rosto, e que todos esperam ser libertos de um ditador sanguinário e que lhes tirou há muito tempo a liberdade.

É onipotência pensar que, no ocidente está a terra prometida, ou que os exércitos libertadores estejam levando para lá um pouco de leite e de mel como se prometia aos israelitas ao chegar à Canaã, conduzidos por Moisés.

É contraditório sermos simpáticos a esta ou aquela causa, principalmente por conhecermos uma Doutrina que é capaz de fundamentar e esclarecer as nossas mentes sobre tais diferenças e modos de vida.

É ignorância fazer uso das leis morais ou das Leis Divinas para condenar ou justificar qualquer atitude. Mais importante é saber refletir frente ao que estamos vivendo.

Toda essa tempestade e confusão de sentimentos e sensações, faz-nos rever as questões sobre as guerras do Livro dos Espíritos, entre as quais encontramos: “Qual o objetivo da Providência ao tornar a guerra necessária?” – 1. A resposta exige ainda mais, cuidadosa análise frente à profusão de idéias e opiniões sobre os fatos: “A liberdade e o progresso”.

É bom que fiquemos indignados e estarrecidos frente aos acontecimentos. Isto nos mostra que, de algum modo e intensidade, estamos sensíveis a quanto nos falta mudar no processo da evolução. Somos esclarecidos sobre a avaliação que fazemos da nossa condição. A nossa perplexidade, de alguma maneira, representa um termômetro que nos faz estar vivos, para ficar indignados. É preciso que uma angústia muito maior de já possuir a consciência de que a humanidade está doente, nos mobilize internamente para que o ato de carregar cartazes em passeatas pelas ruas, seja profundo em significados novos de inconformação.

Perceber que um suposto império repete as mesmas intenções de impérios passados, é apenas dar-se conta de uma parte da realidade. Um mundo que sofre sérias conseqüências por sua densidade demográfica, possui problemas de natureza e grandeza diferentes e mais abrangentes do que as questões imperiais. Podemos passar rápido pela obviedade da miséria, da fome, da saúde e das desigualdades. Esta é outra guerra que os humanos travam. O processo de consciência universal está se formando e consolidando, apesar de tudo. Queremos dar a tal processo uma urgência e definição que ainda não é possível. O que podemos fazer, acima de tudo, como dever ético que ama a justiça, é vibrar por uma paz real que não precisa escandalizar-se porque pensamos possuir a lucidez e o discernimento entre o bem e o mau. Esta atitude da vibração ainda necessita ser vivida em profundidade, dentro de nós mesmos. Enquanto nos fascinamos com a curiosidade, deixamos que os fatos exerçam o seu poder sensacional. É quando interrompemos interiormente, as nossas vibrações silenciosas e verdadeiras. Podemos no entanto, voltar a produzi-las no âmago do nosso ser-nós-mesmos, no mais íntimo do nosso eu-sincero motivado por razões próprias de afeições gratuitas pela paz, como quando falamos a sós com Deus, sem nenhum deus coadjuvante. Ainda sabemos muito pouco a respeito.

– Pergunta 744 do Livro dos Espíritos. Seria interessante consultar todas as perguntas e respostas que fazem parte do item Guerras constante da Lei de Destruição. Questões 742 até 745.