Enéas Canhadas
Se você está mesmo decidido a não ver o filme, está perdendo um grande filme. Se você já foi ou ainda irá ver, então vale à pena a gente conversar um pouco a respeito.
O filme possui algumas virtudes. Foi feito para que todos possam assistí-lo e ainda admirar a vida de um homem e sua obra, acima de tudo seu amor pelos seres humanos, despojado, humilde e verdadeiro. Quando digo todos estou querendo dizer que independe de credo religioso, de convicções pessoais e morais ou mesmo para um adepto desta ou daquela filosofia.
O filme não fala de uma religião, mas sim do Espiritismo enquanto filosofia possível de vida e ainda buscada por muitos, atingida por poucos desde que os filósofos pré socráticos falavam para as gerações futuras sobre o que é uma vida honrada e o que se pode entender por respeito ao ser humano. É claro, tudo isso é possível quando se concebe uma relação com a divindade. Certo, você vai dizer. Não se trata de certo e errado, é bom lembrar que Dante, na sua Divina Comédia colocou no céu um ateu. Indagado a respeito ele disse que embora o homem fosse ateu era um dos mais honrados que ele havia conhecido. Não se trata de um filme feito para apregoar uma religião, o filme não tem caráter prosélito até mesmo porque foi dirigido por um não Espírita, mas nos faz entender que o Espiritismo fala de uma ligação permanente com o mundo espiritual, mesmo quando não nos damos conta e que nem todas as religiões concebem ou ensinam.
O filme também foi feito para que se tirasse da vida de compaixão vivida por um homem, a lição de que não cabe beatice de forma nenhuma na vida de um sábio e também não faz sentido que atitudes beatas possam prestar louvores a ele.
O filme foi feito para que pudesse ser mostrado como é verdadeira a compreensão de que os milagres não existem. Os verdadeiros milagres são forjados com trabalho dedicado, obediência à vocação enquanto mandato do espírito, disciplina pessoal e o aprendizado de que a fé é muito diferente dos desejos contidos na nossa vontade pessoal e particular.
O filme foi feito para o aprendizado sobre a força que o ser humano traz dentro de si. Nunca havia visto um personagem tão forte e com tanta humildade. Sempre se evidencia aos jorros da alma e especialmente da verborréia de palestrantes a respeito da humildade de Chico. No entanto o filme retrata um homem extremamente forte, pois do contrário não teria a determinação e tenacidade que demonstrou na sua vida toda. Por outro lado não é muito comum vermos a representação de alguém tão frágil na sua condição humana e dotado de tanta força. Força e fraqueza são os dois pólos de espíritos verdadeiramente grandes. Não convém aqui fazer referência ao Cristo enquanto homem porque vamos fatalmente esbarrar nos corações que só concebem a figura de Jesus como expressão do Divino. Este seria um foro de discussão mais amplo e não para este espaço.
O filme enfoca a sabedoria e a grandeza de alma em meio a enorme simplicidade. Mesmo tecnicamente pudemos ver que se pode fazer um filme simples, com pessoas simples em uma paisagem simples representando grandezas muito contundentes. O filme apresenta em certas cenas a pouca luminosidade dos ambientes pobres e com escassez de recursos o que nos transmite uma mensagem à parte, delicadamente subliminar para chamar a atenção à verdadeira dimensão da vida. As cores são poucas e os contrastes de tons são os essenciais para a paisagem singela e bucólica em certos momentos. Amanhecer e entardecer, céu nublado, árvores comuns, um canto de mundo sem nenhuma beleza cintilante. Não há tristeza representada ou insinuada pelas técnicas de fazer cinema, mas sim uma medida do essencial para mostrar a vida como ela acontece. Não há brilhos excessivos a não ser o fulgor ou a palidez das vidas humanas que fazem moldura a essência exemplar de uma vida humana em especial.
Não há sensacionalismo no filme, há o essencial que dá notícia e identifica o homem que foi Chico Xavier, suas origens, sua trajetória, suas vivências e sua obra. Não há excessos no roteiro que não se perde em detalhes ou preciosismos, não há desperdício de frases de efeito ou de falas do homenageado, há concisão em diálogos simples, curtos e suficientes para transmitir a mensagem a que se propõe. As palavras são preciosas e aprendemos que possuem vibrações próprias e o filme é fiel a esse tesouro da condição humana. Não há a intenção de engrandecer um homem, mas ao homenageá-lo evidenciando-se suas virtudes, apresentá-lo até mesmo aos Espíritas. Que cada uma das pessoas que assistir ao filme, faça antes uma avaliação da sua própria vida frente a tal figura. Por exemplo, se Emmanuel cobra disciplina e pede tal disposição como condição essencial para o trabalho a que Chico era recrutado, imaginemos cada um de nós, o quanto temos de incorporar apenas essa qualidade em nossas vidas, fora as outras. Para que tantos detalhes e comentários se não caberiam mesmo num livro que tivesse milhares de páginas? Trecho da Entrevista Com Daniel Filho ao “O Estado” sobre a estreia do filme: “Daniel Filho diz que não é um homem de fé. Ou melhor, tem fé, mas ela não passa necessariamente pela religião. O personagem Chico o atraiu por sua fé no humano, por sua pregação do amor. O repórter arrisca que o filme poderá conquistar o público pelo consolo que proporciona. Durante todo o tempo, Chico Xavier, nas suas três fases – interpretadas por Mateus Costa, Ângelo Antônio e Nelson Xavier – está sempre elaborando a dor da perda, tentando compensar (e preencher) o vazio, dele mesmo e dos outros. “É um grande personagem”, avalia o diretor. Resumindo a experiência, ele diz que sai deste filme com fé – esperança – renovada no homem, mas permanece como sempre foi: ateu.” Não estava ali a marca de nenhum cineasta que precisasse, pela sua versão ou modo de ver as coisas, a habilidade de aprofundar detalhes de sofrimento ou de sagacidade de um espírito sábio, mas apenas como um fotógrafo fazendo um retrato através de uma fotografia simples, com a iluminação natural dos ambientes e as cores do dia em que a cena se passou. Um registro fidedigno, simples e suficiente.
O uso de um documento histórico como a gravação do Pinga Fogo foi utilizado na medida do necessário sem resvalar em convicções de credo ou de posturas perante a vida, muito menos relembrando algum vestígio de debate, coisa que o próprio Chico, assistido sabiamente por Emmanuel evitou quando da sabatina a qual foi submetido. Nenhuma discussão, nenhum sintoma de argumentação. Poder-se-ia pobremente querer ver no fio que conduz o filme um teor de argumentação em favor de princípios ou premissas de uma filosofia ou determinada religião, mas tal não acontece, pois a menção da palavra Espiritismo várias vezes aparecendo no filme nos parece ter adquirido um significado próprio de uma ciência enquanto diz “tal coisa é o que é” e mesmo assim estejam à vontade para contradizê-la ou suscitar dúvidas mais objetivas a respeito de modo que se possa buscar uma resposta, como nos aconselhou e suscitou Kardec no livro O que é o Espiritismo? A propósito, sobre a palavra Espiritismo, melhor ouvi-la como o próprio Kardec explicou “Espiritismo é uma ciência que acaba de nascer e na qual há, ainda, muito a aprender. (…) O Espiritismo toca em todos os ramos da filosofia, da metafísica, da psicologia e da moral. É um campo imenso que não se pode percorrer em algumas horas. Ora, Ela (a palavra espiritismo) tem a dupla vantagem de evitar as repetições inúteis, e de provar um desejo sério de se instruir. Se depois disso, ainda restarem dúvida ou pontos obscuros, a sua explicação torna-se mais fácil, porque se apóia sobre alguma coisa e não se perde tempo em retornar sobre os princípios mais elementares” (Livro “O que é o Espiritismo, Allan Kardec, Segundo Diálogo, O Céptico).