Conta-se que um beneditino, um dominicano, um franciscano e um jesuíta estavam rezando salmos, quando de repente a luz apagou. O beneditino quis continuar as orações, que sabia de cor. O dominicano propôs um debate sobre “Luz e Trevas na Bíblia”. O franciscano prostrou-se no chão e sugeriu que todos agradecessem a Deus a luz, cuja falta agora tanto sentiam. Nesse momento, a luz voltou: o jesuíta tinha ido trocar o fusível.
Todos os argumentos empregados neste tópico são de ordem doutrinária e espiritual. O ser humano é um ser sagrado porque traz em si o fogo da vida. A vida tem origem divina e é uma semente dividida em duas partes: metade está com o homem e metade com a mulher. Quando essas duas partes se juntam, a vida floresce no ventre materno. A mulher é mais sagrada que o homem porque, além de contribuir com metade da semente da vida, é ela que a torna viável. Nessa câmara de materialização chamada útero, essa semente levará nove meses para se transformar em homem.
A vida do nascituro também é sagrada. O surgimento do embrião humano é um compromisso entre o pai, a mãe e Deus, mas, acima de tudo, é um compromisso entre a mulher e Deus (e se a mulher for agnóstica ou ateia, entre a mulher e sua consciência). Se dependesse só de Deus, o embrião se tornaria homem. Mas Deus é apenas um parceiro nesse contrato sublime. Ele também depende da concordância da mulher que, em última instância, é quem decide se o embrião vingará ou não. E Deus respeita a decisão da mulher.
Se a mulher levar a gestação a bom termo, dará à luz um filho e será feliz. Se interromper a gravidez sem razões legítimas – e uma delas seria o caso, hoje raro, de o feto pôr em risco a vida materna –, extinguirá uma promessa de vida e será infeliz. E será infeliz porque contraiu perante a Lei divina (sabendo ou não), mas concretamente perante sua consciência, uma dívida que terá de resgatar nesta ou em outra existência, devolvendo a vida ao ente repelido ou a outro em condições idênticas.
Obrigar a mulher a gestar um filho é violar outro princípio sagrado do ser humano, o direito à liberdade de decisão ou livre-arbítrio. A sociedade, a legislação e o Estado podem criminalizar o aborto, mas não lograrão, com isso, evitar que a mulher o pratique na clandestinidade, perdendo o embrião e pondo sua própria vida em risco. Ou até mesmo, se a pressão se tornar insuportável, suicidando-se e eliminando duas vidas.
Segundo afirmação da revista Veja (constante do livro O que dizem os espíritos sobre o aborto, publicado pela FEB), são feitos no Brasil, por ano, um milhão de abortos clandestinos, 300.000 mulheres são internadas com complicações decorrentes dessas intervenções e 10.000 perdem a vida por abortos malfeitos (geralmente as pobres, que não podem recorrer a uma intervenção adequada e são atiradas na clandestinidade pela criminalização). Isto significa a perda de 20.000 vidas: 10.000 formadas e 10.000 em formação. Suponhamos, como argumentam os que são a favor do aborto, que esses números estejam inflacionados, para atender a certos interesses. Cortemos então um zero (100.000, 30.000 e 1.000), e ainda aí estaremos no meio de uma carnificina. Cortemos mais um zero (10.000, 3.000 e 100), e a hecatombe continua. Não é a quantidade que está em causa; é o princípio.
Se essas futuras mães tivessem sido atendidas em clínicas oficiais ou autorizadas, pelo menos 10.000 mil vidas teriam sido salvas. De acordo com informações médicas, o risco para a mãe é quase zero quando a interrupção é feita com assistência adequada e até a 10ª semana de gravidez. E mais: ela, em geral, não sofre sequelas e pode engravidar de novo, começando, assim, ainda nesta mesma existência – segundo o ponto de vista espiritual e reencarnacionista – a remição, perante a Lei, do equívoco cometido quando do primeiro abortamento.
Estamos diante de um fato social concreto que vem se repetindo, ano a ano, sem mudanças significativas, porque há um cabo de guerra acontecendo na sociedade, entre os que são favor e os que são contra o aborto, enquanto a vida de mulheres e embriões, perdidos no meio dessa turra, vai sendo ceifada aos milhares de maneira inconsequente.
Se o leitor soubesse que, no próximo ano, 10.000 mulheres e 10.000 embriões seriam mortos em clínicas clandestinas, mas que existe a possibilidade de se perder “apenas” os embriões e salvar as mulheres, que partido tomaria? As religiões, em geral, brandindo a Bíblia e outros códigos, já decidiram: ambos devem morrer. As comunidades laicas da sociedade, ao contrário das religiosas, optam em geral por salvar pelo menos as mulheres.
Ninguém em sã consciência, ou que conheça a Lei divina, pode ser favorável ao aborto. Mas, se lhe fizer oposição, deve fazê-la com razoabilidade e bom senso. As religiões estão certas em lutar pela preservação da vida, mas equivocadas em defendê-la da forma radical como o fazem, e com uma falta de sensibilidade que assombra. Sua estratégia equivocada visa a uma vitória total desde a primeira batalha, o que é inviável. Agindo assim, acabam por fortalecer os inimigos da própria vida que elas defendem. Eu proponho uma vitória segmentada, conquistada através de pacientes etapas. A mulher é um ser delicado e hipersensível, principalmente após o engravidamento, devendo ser tratada com as sutilezas que só o amor possui, e não com recriminações e intimidações de códigos fumegantes. O homem, que já conquistou a terra, o céu e o mar, deve aprender, também nesse quesito, a cativar a irmã que Deus lhe deu por companheira.
Um bom início seria a criação de comissões de apoio, constituídas por profissionais altamente qualificados – como psicoterapeutas, médicos, psicólogos, agentes sociais, religiosos e outros mais –, para buscarem PERSUADIR (aconselhar, recomendar, propor, predispor, despertar, comover, convencer, cativar, conquistar, motivar, recrutar, influir, induzir, insinuar, inspirar, inculcar, instilar, seduzir) as mães a levarem a bom termo a gestação que não querem manter. Essa persuasão seria embasada nos mais elevados argumentos morais que o amor à vida possa sugerir, fundados na ética, no respeito humano e na fraternidade.
Todos os recursos médicos e financeiros seriam postos à disposição da gestante pelos poderes públicos, inclusive a certeza de que será proporcionada à criança uma adoção adequada, caso a mãe decida não ficar com ela. Poderia ser concedida também à futura mamãe uma jornada de reflexão de alguns dias ou semanas, para que possa pensar maduramente sobre o assunto e evitar arrependimentos posteriores. Mas a decisão final caberá sempre a ela, que é senhora do seu destino e responsável (perante Deus e sua consciência) pelo destino do embrião, e, qualquer que seja essa decisão, deve ser respeitada e a mulher tratada com o mesmo carinho que é devido a uma irmã nossa, muito querida.
A vida é uma grande guerra, constituída de muitas batalhas. Às vezes é preciso perder algumas batalhas para não perder a guerra. Se num primeiro round conseguirmos salvar todas as mulheres que queiram abortar, proporcionando-lhes uma assistência médica qualificada, teremos ganhado uma batalha, embora tenhamos perdido outra, ou seja, as sementes de vida que abrolhavam em seu seio. Mas isso nos dará tempo para trabalhar as mentes e corações da sociedade, dos pais e futuras mães, sensibilizando-os para a sacralidade do ser humano.
Talvez no ano seguinte consigamos salvar novamente todas as mães e, quem sabe, um terço dos nascituros. Nos anos posteriores, salvaremos metade dos embriões; depois, três-quartos; e, finalmente, após talvez uma década de trabalho persuasivo e fraterno, a sua totalidade. Por essa projeção, realista e factível, se houver uma forte polarização nacional em torno do tema, em uma década o Brasil poderá apagar de sua consciência o estigma do aborto.
Estamos hoje, portanto, diante de dois caminhos:
– primeiro, perder a cada ano 10.000 mulheres e 10.000 nascituros, sabendo que essas filhas de Deus, irmãs que o sentimento cristão nos manda amar, serão “operadas” em locais imundos e terão o santuário de seus úteros – o sagrado ninho da vida – espetados e escarafunchados com facas, tesouras, agulhas de tricô e outros instrumentos pontiagudos, além da perfuração dos órgãos adjacentes; ou
– segundo, optar por perder, num primeiro round, 10.000 embriões (mas salvar 10.000 mulheres), sabendo que nos anos seguintes essa perda pode ir diminuindo, à proporção que forem chegando a mais corações e mentes, nos lares do Brasil, a brisa benfazeja e salvadora da mudança cultural, da educação moral e do esclarecimento espiritual, assoprada pelos defensores da vida, integrantes dos âmbitos leigos, religiosos e estatais.
Além disso, outras estratégias podem ser reforçadas, como ampliar o acesso à educação sexual; garantir métodos contraceptivos de longa duração, como DIU e implantes hormonais; disponibilizar a pílula anticoncepcional e a pílula do dia seguinte (que provoca uma espécie de aborto químico, porque impede o ovo de fixar-se no útero). Eu não posso falar por Deus, mas tenho certeza de que, se Ele pudesse manifestar-se como homem, escolheria a opção que salvasse mais vidas.
Quanto ao carma do Brasil aumentar com a decisão do STF, penso que nossa Corte Suprema, antecipando-se ao futuro, optou de forma legal e também leigal pelo mal menor. E ao fazer essa opção, sobrepôs-se à controvérsia social sobre o tema e agiu como o jesuíta: trocou o fusível.
- Mário Frigéri