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O Espiritismo, a Heresia e o Evangelho

O Espiritismo, a Heresia e o Evangelho

 

“Estás de volta, meu amigo, e não perdeste teu tempo
(…) Chegou a hora de a Igreja prestar contas do depósito que lhe foi confiado,
da maneira como praticou os ensinamentos do Cristo, do uso que fez da sua autoridade,
enfim do estado de incredulidade a que conduziu os espíritos”.

Mensagem do Espírito d’E para Allan Kardec ( 30/09/1863) – Obras Póstumas

O Espiritismo é, entre outras tantas coisas, um código moral em cuja referência
ética estão contidos os princípios universais de conduta encontrados em todas sociedades
históricas. Sua essência fenomenal e de conceitos é milenar, mas sua fundação como
síntese doutrinária e sistematizada, bem como sua organização científica experimental,
somente foi possível no século XIX, num contexto geohistórico no qual os conhecimentos
e valores humanos e sociais estavam sofrendo profundas transformações e questionamentos.
A principal referência ética ocidental, na qual a sociedade européia e francesa
estava inserida, ainda era a moral judaico-cristã, então sob o domínio sócio-institucional
do clero romano e protestante. Mesmo com o advento do racionalismo cartesiano e
do iluminismo no século anterior, o mundo ocidental ainda estava preso aos costumes
feudo-clericais, desenvolvidos durante os séculos medievais, e que na Era Moderna
se cristalizaram em forma de um sistema conhecido como Antigo Regime, no qual o
catolicismo tinha um papel de destaque. A mentalidade européia já havia conhecido
a força revolucionária iniciada nos Estados Unidos e cujo apogeu se daria na França.
Mas, quando tudo parecia ter mudado com a queda dos regimes absolutistas, com a
extinção dos estamentos sociais privilegiados e da escravidão, surge na Europa uma
onda contra-revolucionária e conservadora reivindicando a antiga ordem na qual uma
aristocracia deveria fazer valer seus interesses sobre a maioria. Todas as conquistas
que pareciam ter elevado a Humanidade a um nível mais avançado foram sendo esquecidas
para dar lugar às tradições que consagravam a lei do mais forte e a desigualdade.
Na base dessa grande reação estava o instituto da religião católica. Foi dela e
de suas doutrinas dogmáticas que brotaram as forças ideológicas e superestruturais
reacionárias que rejeitaram as mudanças que dariam um novo rumo na história humana;
foi ela uma das principais forças de sedução e poder que desviaram Napoleão Bonaparte
do seu antigo ideal libertário, para servir de suporte de repressão e garantir os
novos interesses do “cristianismo capitalista”. Nada melhor do que uma religião
organizada e a coerção social do clero para colocar freio nos impulsos transformadores.
Nada melhor do que a dupla ameaça ideológica, de crime político e heresia religiosa,
para aqueles que contestam as tradições. Se havia um novo establishment,
a Igreja respondia pelo principal elemento ideológico do sistema, agora adaptado
aos tempos modernos. Apesar de todas as circunstâncias inovadoras no pensamento,
a superstição e o medo ainda continuaram sendo amplamente explorados pela classe
política e clerical. Métodos como a delação, a confissão e a excomunhão voltaram
a ter a mesma força dos tempos antigos. Essa era a situação moral da sociedade européia
na qual nasceu o futuro Professor Rivail. O menino que iria se tornar Allan Kardec,
filho de pai maçom e de família burguesa, teve que ir estudar na Suíça para fugir
da rígida educação jesuítica imposta pela nova ordem napoleônica.

Mas, por que Kardec interessou-se pelos temas religiosos ou transcendentais,
no caso os temas bíblicos, quando poderia ter permanecido nas especulações filosóficas
ou no prazeroso campo experimental da mediunidade? Por que o Evangelho, porque o
Céu e o Inferno e a Gênese, quando tudo está muito bem colocado e definido no Livro
dos Espíritos? Kardec queria agradar a gregos e troianos, a religiosos e não religiosos?
Duvidamos muito dessa hipótese, já que suas idéias eram tão independentes e demolidoras
quanto as de Darwin, Spencer, Nietzsche e Marx. O Evangelho Segundo o Espiritismo
e seus outros livros dão uma nova visão sobre a temática bíblica, sendo a síntese
da heresia que sempre despertou no clero a fúria e a violência contra todos os que
desafiam os seus dogmas. Então, por que esse esforço de comparação do Espiritismo
com a cultura religiosa do Antigo e Novo Testamentos? Se Kardec tivesse nascido
na China ou na Índia, provavelmente teria comparado o Espiritismo com as idéias
de outros filósofos daquelas regiões do Oriente, como fez com as de Moisés e Jesus?
Cremos que não, porque tal comparação não foi apenas uma obra do acaso e sim parte
de um contexto histórico respaldado por uma missão de grande significado espiritual,
cuja função tinha muitas semelhanças e ligações históricas com a missão de Moisés
e de Jesus. O Espírito de Verdade não é mera coincidência, muito menos uma expressão
insignificante no trabalho de Kardec; sua identidade não é uma simples questão de
ponto de vista ou de interpretação de suas mensagens, mas a própria essência filosófica
do cristianismo puro e autêntico, perdido nos séculos de decadência moral da civilização
motora da Humanidade contemporânea.

O Evangelho não uma religião no sentido vulgar e institucional, mas está repleto
de religiosidade e está presente em todas as obras de Kardec, em todas as suas atividades
e em todos os momentos em que a Doutrina Espírita teve que dar provas de sua autoridade
e identidade superior aos sistemas filosóficos comuns. Entendemos que Kardec aproveitou
uma excelente oportunidade para desfazer uma antiga e importante confusão histórica,
“… são chegados os tempos em que todas as coisas devem ser restabelecidas em seu
sentido verdadeiro…”. O cristianismo, que havia sido apropriado criminosamente
pelo clero romano, não podia ser comparado positivamente com o Espiritismo. Era
necessário mostrar o cristianismo verdadeiro, sem dogmas, sem hierarquia sacerdotal;
o cristianismo de Deus e não o de César. Como entender o Espiritismo sem compreender
a essência moral do cristianismo, sem as fantasias biográficas e invencionices históricas
sobre Jesus e dos apóstolos, alimentadas pelo catolicismo? O Evangelho de Kardec
tinha mesmo que ser queimado em praça pública pela Inquisição, como realmente aconteceu
em Barcelona em 1863. Afinal, nele não se encontram brechas literárias e teológicas
para justificar o papado e a sua infalibilidade, muito menos para a idéia absurda
de que “Fora da Igreja não há salvação”. A mensagem do Espírito d’E é bem ilustrativa
nesse ponto: “ Não é de admirar, pois, o encarniçamento com que o clero combate
o Espiritismo; é levado pelo instinto de conservação. Ele, porém, já viu suas armas
embotar-se contra esse poder nascente; seus argumentos não conseguiram vencer a
lógica inflexível; só lhe resta o do demônio, recurso bem fraco para o século XIX
”.
Na concepção política do clero, Kardec representava um grande perigo para o sistema
e para a superestrutura católica; era um novo Martinho Lutero, na verdade um novo
Jan Huss… Para o clero o seu Evangelho era o mais perigoso de todos os textos
apócrifos, inclusive aquele de Tomé que nunca foi encontrado… Nem quando Ernest
Renan publicou sua obra realista sobre Jesus a Igreja se mostrou tão incomodada
como quando Kardec e o Espíritos resolveram comentar as máximas de Jesus. Muitos
desses Espíritos foram sacerdotes católicos e grandes nomes da escolástica e da
patrística, aumentando mais ainda o ódio contra aquele desconhecido e humilde professor
de Paris. Realmente, Kardec não estava preocupado em agradar ninguém, a não ser
a sua consciência.

O desenvolvimento da moral judaico-cristã no Ocidente ocorreu
em meio aos conflitos dos dogmas de fé da tradição teológica oriental, representando
a ortodoxia, versus os dogmas racionalistas das escolas gregas, representando a
heterodoxia. Enquanto o dogma de fé serviu historicamente como objeto de fetiche,
culto sacralizado e sustentáculo da estrutura político-clerical, o dogma filosófico
serviu como instrumento de reflexão e mecanismo de defesa do pensamento autônomo,
da heresia e da contestação. No seio do cristianismo encontramos essas duas correntes
do pensamento herético em todas as épocas e algumas delas progrediram tanto no terreno
institucional que foram perdendo sua marca contestatória, como o catolicismo e o
protestantismo. Essa é uma tendência conservadora que ronda o movimento espírita,
sobretudo naqueles núcleos onde o mediunismo e o comportamento dogmático superam
o conhecimento doutrinário. Em alguns grupos esse comportamento chega mesmo a assumir
o aspecto de seita. O Espiritismo liga-se ao Cristianismo exatamente pelos dogmas
filosóficos e têm suas origens históricas nas chamadas heresias cristãs, movimentos
sociais onde se cultivava o sentido puro e original da ética cristã. A idéia de
heresia tinha para os gregos um significado de autonomia de pensamento e conduta.
O herege é aquele que pensa e age livremente sem nenhum obstáculo ideológico. O
chamado cristianismo espírita ou “espiritismo cristão” é, ou deveria ser, no mínimo,
essencialmente herético, à esquerda da religião dogmática sem, no entanto, perder
suas raízes religiosas, relacionadas ao comportamento natural da lei de adoração.

Se o pensamento filosófico evolui, o pensamento ou a experiência
místico-religiosa também acompanha essa transformação, tanto no psiquismo como na
sua expressão exterior e social. Quando Jesus ensinava que o verdadeiro templo é
o que está dentro das pessoas, sendo o corpo humano uma espécie de santuário, estava
naturalmente se referindo às manifestações místico-religiosas que deixaram de ter
significado material e exterior, mas que continuam espiritual e interiormente vivas
na consciência. Esse é o progresso e a evolução religiosa que o Espiritismo nos
ensina. Tudo que antes vinha sendo expressado formalmente, de maneira idealizada
e simbólica, em forma de compromissos cerimoniais e rituais, agora pode ser expressado
espontaneamente em forma prática, no comportamento, na transformação de atitudes.

Nas religiões tradicionais geralmente os defeitos humanos não
são da responsabilidade das pessoas, mas de causas que lhes fogem do controle, coisas
tipo do “pecado original”. Como no Espiritismo não há essa possibilidade, pois as
leis naturais são sempre educativas e sem privilégios fictícios de salvação artificial,
se insistirmos em não mudar de atitudes teremos duas opções: rejeitamos a doutrina,
pois sua moral não se coaduna conosco – tornando-se até mesmo causa de irritação
e contrariedade – ou praticamos a auto-dissimulação, mais conhecida como hipocrisia.
Se escolhermos a mudança, ela também deve ser de forma natural, gradual, sem forçamentos,
embora possa ser organizada ou sistematizada como forma de aprendizagem. Os defeitos
precisam ser transformados em virtudes; é uma necessidade evolutiva. O egoísmo e
a agressividade, que foram virtudes nos remotos tempos das cavernas, por questão
de sobrevivência, hoje já não são mais necessários, embora ainda os tenhamos como
impulsos e reações momentâneas nas situações em que nos sentimos ameaçados. Também
nas religiões tradicionais esses conflitos psicológicos sempre foram manipulados
num jogo maniqueísta de controle social e interdição da privacidade. Fomos educados
durante milênios nessa perversão da moral e da religiosidade, onde a culpa e o perdão
se tornaram objetos de exploração política e comercial. Essa tendência já deveria
ter sido banida do mundo através do Espiritismo e da Psicologia, mas o vício sacerdotal
de controle e manipulação de mentalidades ainda é muito forte em nossas culturas.
Somos viciados nessa dependência de sempre ter alguém resolvendo por nós os nossos
problemas e assumindo nossas responsabilidades.

No movimento espírita encontramos, naturalmente com herança histórica, ainda
hoje, as matrizes das mentalidades do pensamento e comportamento filosófico-religioso,
que são os modelos psicológicos encontrados nas seitas judaico-cristãs (fariseus,
saduceus, essênios, escribas, terapeutas, nazarenos, samaritanos, etc.) e que foram
objeto intenso de análise, crítica e analogia comportamental nas parábolas e cenas
vivenciais de Jesus registradas nos evangelhos. Antes de serem judaico-cristãos
esses arquétipos ideológicos são humanos e poderiam ser encontrados em qualquer
cultura humana, exatamente porque eles representam a síntese dos problemas e contradições
da experiência moral humana em processo dialético de transformação (o velho versus
o novo). Assim como encontramos na mitologia grega os tipos psicológicos envolvidos
com eternos conflitos existenciais, na cultura judaico-cristã temos personagens
de comportamento semelhante. Dessa forma, quem ingressa no pensamento e no movimento
espírita não assimila de imediato sua essência doutrinária porque já carrega no
seu psiquismo essas marcas culturais que precisam ser aclimatadas ao novo ambiente
ideológico. Até mesmo Allan Kardec, ao fazer essa relação entre a cultura dos Espíritos
com a cultura humana deixou sua marca pessoal, seu ponto de vista e suas referências
psicológicas na elaboração da doutrina espírita. Os próprios espíritos que emitiram
e opinaram sobre conceitos filosóficos nas obras básicas espíritas são caracterizados
por essas marcas culturais. Mas todos eles, apesar dessas diferenças pessoais de
enfoque, trazem em comum a marca herética nos seus pensamentos e emoções. Querem
demolir o passado e construir um futuro sem os erros que direta ou indiretamente
ajudaram a cometer.

A filosofia espírita é muito abrangente em relação aos problemas humanos e cosmogonias
do universo. Porém, é no terreno moral e comportamental que está a sua razão de
ser, a raiz vital que vai interferir e gerar mudanças no terreno social. Saber quem
somos, de onde viemos e para onde vamos não implica nenhuma repercussão no meio
exterior se não houver repercussões significativas no conjunto de elementos morais
que formam o nosso mundo íntimo e que nos serve de bússola existencial. É aí que
entram em cena os códigos morais que surgem em todas as civilizações. O Evangelho
de Jesus é um deles e expõe perfeitamente todos os princípios que identificam as
leis universais e as propostas de transformação evolutiva do ser humano que encontramos
em todos os demais códigos. Não existe nele nada de superior ou inferior aos outros.
Ele é apenas o código mais adequado para necessidades que nele se identificam. Todos
os exageros que nele encontramos geralmente são erros de interpretação elaborados
tendenciosamente com alguma intenção menos digna de bloquear o progresso e a liberdade
humana, como o controle, o exibicionismo, a ameaça e a exploração ideológica.

Enquanto os espíritas permanecerem ligados intelectual e emocionalmente aos autênticos
conceitos dessa doutrina, sua ligação com o Evangelho será sempre histórica e pura
e este será um código moral harmônico, representando a constância, o equilíbrio,
a sensatez, a consciência, a autenticidade e a espontaneidade humanas. Do contrário,
sem essa relação de fidelidade, ele será sempre incompreensível, impraticável, conflituoso,
passional, hipócrita, artificial, formal, etc. Por isso, todo rótulo que se dá ao
Espiritismo é superficial e insignificante em relação à sua grandeza doutrinária.
O Espiritismo não é apenas uma religião, porque não é pequeno e limitado como as
religiões têm sido praticadas; não é apenas uma filosofia porque antecede e ultrapassa
as premissas filosóficas humanas, dessas que se viciam na ginástica intelectual
prolixa e inútil; não é também apenas uma ciência porque não se restringe, como
a maioria delas, ao jogo interesseiro, repetitivo e espetacular de fenômenos. É,
ao mesmo tempo, tudo isso, no sentido de que possui religiosidade própria, tem uma
mística sadia e inconfundivelmente cósmica, possui uma filosofia tão nobre e inteligente
quanto a grega e contextualizada e pragmática como a romana; possui uma ciência
objetiva e cujas intenções são as mais verdadeiras e humanas, como a prova da imortalidade
e o exercício da cura. Por acaso não encontramos tudo isso relatado na experiência
vivencial de Jesus? Não é essa a essência das parábolas, das bem-aventuranças, reconhecidas
em nosso tempo pela sabedoria do Mahatma Gandhi com o verdadeiro espírito da Lei
Universal? Não é esse o sentido verdadeiro dessas palavras do Espírito de Verdade:
“….dissipar as trevas, confundir os orgulhosos e glorificar os justos” ?

(Conferência realizada no Instituto Cultural Kardecista de Santos- ICKS, em
14 de fevereiro de 2003)

Dalmo Duque dos Santos é mestre em Comunicação,
bacharel em História e pedagogo. Publicou pela DPL os ensaios “A Inteligência Espiritual”
e “ Você em Busca de Você Mesmo”. Pela mesma editora está lançando uma história
do Espiritismo com o título “O Demolidor de Dogmas – Allan Kardec e a Reconstrução
da Fé no Ocidente”.