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Espiritismo e Proselitismo

Espiritismo e Proselitismo

Ao longo de toda a história humana, o proselitismo sempre foi um importante
fator de difusão das idéias religiosas. Obviamente, não estamos tratando o termo
“proselitismo” em sentido pejorativo; muito ao contrário, entendemos
proselitismo simplesmente como qualquer ação com o intuito de conquistar adeptos
para uma determinada crença. Nesse sentido, as grandes pregações, as viagens
apostólicas, as manifestações públicas de fé e mesmo os martírios foram
poderosos instrumentos de divulgação doutrinária, contribuindo com o
amadurecimento moral da humanidade e com a conquista de adeptos pelas doutrinas
renovadoras. Na atualidade, diversos credos religiosos, dentre os quais o
próprio Espiritismo, ganham espaço nos meios de comunicação de massa: programas
de rádio, de televisão, periódicos, páginas na internet (como esta), todos são
novos veículos de nossas atividades de divulgação.

Dos manuscritos da antigüidade às mensagens eletrônicas de hoje, porém, o
objetivo é um só: facilitar a circulação de preceitos e a divulgação de nossas
crenças, fazendo nossa mensagem chegar a mais e mais adeptos em potencial. Em
uma única expressão, são todas manifestações de legítimo proselitismo. Afinal,
qual de nós, acreditando ter descoberto um corpo doutrinário elevado e, ao menos
em princípio, capaz de contribuir com a nossa paz de espírito, não vai querer
partilhá-lo com aqueles que ama? Nesse sentido, toda atividade de divulgação das
crenças religiosas é um ato de amor, e o próprio Espiritismo não cessa de
afirmar que, muito mais do que pelo martírio da cruz, Jesus manifestou seu amor
pela humanidade terrena descendo até a esfera material e suportando a opressão
da convivência com espíritos muitíssimos menos evoluídos em um verdadeiro ato de
renúncia, ato esse que culminou com seu sacrifício no Calvário. Seu intuito não
foi outro senão o de dar divulgação às verdades eternas Ele próprio, vivendo-as.
Mas é no próprio Evangelho, cujo conteúdo é iluminado pela Revelação Espírita,
que devemos buscar um marco capaz de separar o proselitismo legítimo da
propaganda vazia e da opressão religiosa. Acredito, inclusive, que esta
distinção pode contribuir diretamente para orientar nossa convivência com outros
credos religiosos os quais, por sua vez, também estão envolvidos em diversas
atividades proselitistas.

Na atualidade, é relativo consenso entre os estudiosos do comportamento
humano que vivemos em um ambiente de excesso de informação. Até há cerca de 200
anos atrás, a vida do cidadão comum era terrivelmente mais simples. O progresso
material que obtivemos nesse período, além de restrito a uma parcela
relativamente pequena da população do planeta, impôs um elevado custo em termos
de uma tremenda complexificação da vida cotidiana. Andar pelas ruas das grandes
cidades hoje é ser bombardeado por um fluxo contínuo de informações: sinais de
trânsito, qualidade do ar, horário, propagandas colocadas por toda parte,
jornais afixados nas bancas, cartazes colados nos muros. Necessariamente, esse
volume imenso de informação acaba por encontrar limites na própria capacidade
humana de assimilá-lo e processá-lo. Não é por outro motivo que o proselitismo
moderno tem se deslocado das praças públicas para os meios de comunicação de
massa. E a própria existência de um informativo como o do GEEA, capaz de colocar
em contato pessoas ao redor do mundo com grande rapidez e eficiência, é prova de
que o proselitismo religioso pode aproveitar-se desses meios de comunicação de
forma eficaz.

No entanto, é preciso estar atento para as perdas impostas, não pelos meios
de comunicação de massa em si, mas por aquele excesso de informação a que nos
referimos. Quando se estabelece um meio e comunicação de massa, desde o
“outdoor” até a internet, inicia-se uma verdadeira corrida entre aqueles que
desejam fazer sua mensagem chegar até o público. Se alguém deixa de utilizar-se
desse meio, certamente ficará em desvantagem em relação ao demais. Ao nível das
empresas, por exemplo, se uma inicia uma estratégia mais eficaz de propaganda,
as demais terão que seguí-la ou mesmo superá-la através da adoção dessa
estratégia ou de outra ainda mais eficaz. Porém, as atividades de divulgação
religiosa, assim como todas as outras atividades ligadas à comunicação, acabam
se tornando vítimas de suas próprias tentativas de incrementar sua capacidade de
se fazerem ouvir. Quando as estratégias de comunicação de massa se avolumam, o
excesso de informação acaba fazendo com que as pessoas comecem a se tornar cada
vez menos sensíveis ao conteúdo das mensagens. A partir daí, ainda em uma
tentativa de promover algum tipo de diferenciação, aqueles que desejam manter
estratégias bem sucedidas de comunicação de massa acabam por privilegiar a forma
com o intuito de chamar a atenção das pessoas, muitas vezes tentando
simplesmente chocá-las. Os casos de campanhas publicitárias polêmicas ilustra
esse fato. A discussão que se cria em torno da forma de comunicação acaba
despertando um interesse quase irracional pelo conteúdo dos produtos, objeto das
estratégias de “marketing”. Em um extremo oposto, como poderíamos esquecer de
recente campanha publicitária que se utilizou de crianças vestidas de animais
para vender produtos alimentícios? Claramente, a pedra angular daquela campanha
não foi o conteúdo dos produtos. De todo forma, tal fato demonstra que as
pessoas tornaram-se menos sensíveis aos conteúdos das mensagens recebidas
através dos meios de comunicação de massa. Apenas para sintetizar tal processo
em uma palavra, a crescente perda de importância do conteúdo em favor da forma
resulta na “massificação” da informação. Dito isso, como relacionar tais fatos
ao proselitismo religioso?

Acredito que o ponto a reter aqui é que as atividades de divulgação do
Espiritismo, ainda que possam e mesmo devam utilizar-se dos meios mais avançados
de comunicação, jamais devem se deixar apanhar pela crescente desvalorização do
conteúdo em favor da forma. Dois exemplos (um singelo e outro de grande
significado Doutrinário) poderão ilustrar este ponto.

Certa vez, um colega de serviço perguntou a um nosso companheiro espírita:
“Qual a sua religião?” Ao saber que ele era espírita, o tal colega afirmou: “Eu
sabia…! Você parece mesmo espírita.” Ouvindo esse diálogo, não pude deixar de
perguntar ao primeiro afinal o que o fazia ter tal “desconfiança”. O colega de
serviço respondeu: “Vocês espíritas têm algumas coisas em comum. São pessoas
mais calmas e mais otimistas. Ao mesmo tempo, vocês são muito discretos. Evitam
grandes discussões religiosas com pessoas de outras crenças. Coisas assim”.
Ficou patente para mim, desde então, que a melhor propaganda de nossa Doutrina
era a vivência de nossas crenças, a exemplo do que fez o próprio Jesus. A calma
e o otimismo são verdadeiras virtudes espíritas, as quais devem estar presentes
na vida de quem acredita que o acaso não existe, e que a verdadeira vida se vive
com o espírito.

Naquele momento, também não pude deixar de lembrar da passagem evangélica que
narra o encontro de Jesus com seus discípulos no caminho de Emaús, após o
Calvário. Jesus se apresenta a seus discípulos com seu espírito materializado.
Seu aspecto externo, porém, não é reconhecido pelos discípulos enquanto estão na
estrada. Ao longo do caminho, eles discutem textos sagrados e, ao chegarem a
Emaús, os discípulos o convidam para cear. Só então, com Jesus materializado
sentado à mesa, Ele se faz reconhecer através da forma como parte o pão.
Subitamente, seu espírito se desmaterializa. Os discípulos, ainda atônitos, se
perguntam como não o reconheceram antes mas também dizem que, ao longo do
caminho, enquanto mantinham aquela conversação elevada, seus corações ardiam com
o vigor das palavras do Mestre. Fica a lição. Muito mais do que a mera forma
exterior, é o teor de nossos atos e palavras que nos distinguem. Acredito que o
principal motivo de esta narrativa tão singela ter sobrevivido nos textos
sagrados do cristianismo é a ênfase que se dá através dela à importância da
vivência doutrinária, da exemplificação viva da fé, e do aspecto enganador que o
formalismo pode ter para nós, espíritos ainda tão distantes da perfeição.

Nesta era de excesso de informações e de conteúdos cada vez mais colocados em
segundo plano, os legítimos proselitistas espíritas, dentre os quais eu próprio
me incluo, devem estar atentos. Devemos nos furtar a atividades de difusão de
nossas crenças que, por qualquer motivo, sacrifiquem o conteúdo doutrinário em
favor de uma enganosa maior “eficiência” em termos de divulgação e “conquista de
novos adeptos”. Felizes de nós, espíritas, enquanto pudermos ser reconhecidos
por nossas virtudes, desde a fraternidade (máxima cristã), até o otimismo, a
calma e a discrição (típicas de nossa Doutrina).

Da mesma forma, diante do proselitismo de outros credos, devemos sustentar
uma atitude de respeito. Em primeiro lugar porque, assim como nós próprios, os
legítimos proselitistas de outros credos estão envolvidos em uma atitude que
visa compartilhar com o próximo uma crença que julgam poder contribuir com seu
aprimoramento moral. Além disso, é um preceito elementar na atividade de
comunicação que toda mensagem transmitida precisa ser assimilável por quem
recebe. Não basta que um canal de tv gere o sinal da mais sofisticada
programação se as pessoas só possuírem aparelhos de rádio. Assim, ainda que
outros credos possam estar menos adiantados que nossa Doutrina em diversos
aspectos morais e filosóficos, é possível que estejam prestando sua contribuição
com o aprimoramento daqueles que se encontram ainda mais atrasados no caminho de
sua própria evolução espiritual. Assim, se outros credos estiverem se utilizando
dos meios de comunicação de massa e transmitindo mensagens religiosas de
conteúdo moral e filosófico escasso mas com grande impacto por conta da forma,
isto jamais deverá ser pretexto para que nós, espíritas, adotemos as mesmas
práticas. É possível que o “sucesso” de tal atividade proselitista, em termos da
conquista de novos adeptos, deva-se menos ao uso “eficaz” dos meios de
comunicação de massa e muito mais à incapacidade da maioria de nossos irmãos de
assimilar preceitos filosoficamente mais densos. Aqui, porém, cabe lembrar outro
preceito retirado do Evangelho: quem não é contra nós, é a nosso favor.

Fica, em resumo, minha tese singela de que os espíritas como nós, que buscam
fazer bom uso dos novos meios de comunicação de massa, devem evitar a
massificação doutrinária. A via mais fácil da “conquista” de um grande número de
adeptos, se não estiver respaldada no nível de evolução espiritual de todos,
cedo irá se mostrar um caminho enganoso, como toda “porta larga”.

(Publicado no Boletim GEAE Número 320 de 24 de novembro de 1998)