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Giovanna

Giovanna

Em vão, a noite procurava apagá-los, eles lutavam com ela. Mas seu véu passa
enfim sobre essas frontes soberbas. As últimas luminosidades se extinguiram. A
noite triunfava; só, iria reinar até a aurora.

Nesse momento, um concerto argentino se eleva nos ares. Em todas as aldeias,
os sinos tilintavam. Era o Ângelus, a prece do entardecer, o sinal que evoca
entre todos, os pescadores do lago, os lenhadores da floresta, os pastores da
montanha, o pensamento de Deus. Giovanna e Maurice, sonhadores, recolhidos,
observavam esse majestoso espetáculo; escutavam o som melancólico dos sinos,
seguiam com o olhar as belas estrelas de ouro emergindo das profundezas do céu
para subir lentamente, em legiões cerradas, para o zênite. A poesia dessa noite
preenchia suas almas; suas bocas estavam mudas, mas seus corações se confundiam
num enlevo profundo. Maurice rompeu o silêncio primeiro.

– Giovanna, disse ele, você pensa, às vezes, nessas esferas luminosas que se
movem no espaço? Já se perguntou se são, como nossa terra, mundos de sofrimento,
habitados por seres materiais e atrasados, ou se almas mais perfeitas aí vivem
no amor, na felicidade?

– Bem às vezes, respondeu ela, tenho visitado esses mundos. Protetores,
amigos invisíveis, me levam quase todas as noites para essas regiões celestes.
Com dificuldade tenho visto, que um grupo de espíritos, de longas vestes
flutuantes, de fronte brilhante, me cercam, me chamam. Vejo minha própria alma
que, semelhante à deles, se libera de meu corpo e os segue. Rápido como o
pensamento, atravessamos os espaços imensos, povoados de uma multidão de
espíritos; por toda parte oceanos de vida desdobram suas perspectivas sem
limites. Por toda parte retinem os cantos harmoniosos, de uma suavidade
desconhecida na Terra. Percorremos esses arquipélagos estelares, essas esferas
longínquas, bem diferentes de nosso globo. Em lugar de uma matéria compacta e
pesada, muitos dentre eles são formados de fluidos leves, de brilhantes cores.
Enquanto que os hóspedes da terra se arrastam penosamente na superfície do
planeta, os habitantes desses mundos, de corpos sutis, aéreos, se elevam
facilmente, planam no espaço ambiente. Eles agem sobre esses fluidos leves e
coloridos que compõem o centro de suas esferas; lhes dão mil formas, mil
aspectos diversos.

Assim são os palácios admiráveis, colônias deslumbrantes, com inumeráveis
pórticos, templos com abóbadas gigantescas, ornados de estátuas, de pilastras de
gás, e cujas muralhas transparentes permitem entrever seu interior. De todas as
partes se erguem construções prodigiosas, abrigos da ciência e das artes,
bibliotecas, museus, escolas, exposições, sempre invadidas pelas multidões. O
ensinamento aí é dado sob a forma de quadros luminosos e cambiantes. A linguagem
é uma espécie de música.

Quais são as necessidades corporais dos habitantes desses mundos?

São quase nulas. Não conhecem nem o frio, nem a fome, quase nada da fadiga.
Sua existência é bem simplificada. Empregam-na na instrução, no estudo do
universo, de suas leis físicas e morais. Prestam a Deus um culto magnífico, e
desenvolvem em sua honra os esplendores de uma arte desconhecida aqui. Mas a
prática das virtudes é, sobretudo, seu objetivo. A miséria, as doenças, as
paixões, a guerra, são quase ignoradas sobre esses mundos. São moradas de paz,
de felicidade, dos quais não saberíamos fazer nenhuma idéia em nosso globo de
lutas e de lágrimas.

É então para lá que se transportam os homens virtuosos que deixam a terra?

Há muitos degraus a transpor antes de obter a entrada desses mundos. Esses
são os últimos degraus da vida material, e os seres que os povoam, diáfanos e
leves para nós, são ainda grosseiros e pesados comparados aos puros Espíritos.
Quanto à nossa terra, ela não é senão um mundo inferior. É, após aí haver vivido
um número de existências suficientes para perfazer sua educação e seu
adiantamento moral, que o Espírito a deixa para abordar esferas mais e mais
elevadas, e revestir um corpo menos material, menos sujeito aos males e às
necessidades de toda sorte. Após um número incalculável de vidas, sempre mais
longas ao mesmo tempo em que mais doces, crescendo em ciência e em sabedoria,
esclarecendo-se, progredindo sem cessar, a alma abandona enfim as moradas
corporais e vai perseguir no infinito o curso de sua eterna ascensão. Suas
faculdades se ampliam, uma fonte inesgotável de caridade, de amor flui nela;
compreende as leis superiores, conhece o universo, entrevê Deus. Mas pobre de
mim! Como estão longe de nós suas beatitudes, suas alegrias inefáveis! É preciso
nos elevar para essas alturas sublimes; Deus nos tem dado os meios. Ele tem
querido que sejamos os artesãos de nossa felicidade. A lei do progresso não está
escrita em nossa consciência? Não recuemos então diante das lutas, dos
sacrifícios, de tudo que purifica, eleva, enobrece. Oh! Se os homens quisessem
saber! Se eles se dignassem a procurar o verdadeiro propósito da vida! Que
horizontes se abririam ante eles! Como os bens materiais, esses bens efêmeros,
lhes pareceriam miseráveis, como os rejeitariam para se ligar ao bem moral, à
virtude, que a morte não pode tomar e que, sozinhos, nos abrem o acesso às
regiões bem aventuradas.

Assim se escoavam as horas. Maurice se inebriava das palavras da jovem moça,
porque elas lhe ensinavam coisas que haviam sido sempre ignoradas em seus
livros. Era para ele como uma linguagem seráfica, revelando os mistérios do
além-túmulo e, com efeito, Giovanna, médium inspirada, era, sem o saber, o eco
de uma voz sobre-humana que retinia nas profundezas de seu ser.

Quase todo dia, passeavam assim, conversando através os bosquezinhos
perfumados, reaquecidos pelos raios do sol da Itália, acariciados pelo vento,
sob o azul profundo do céu. Algumas vezes, subiam em um barco com Luisa e se
deixavam deslizar docemente ao sabor das correntes do lago. Pouco a pouco os
barulhos enfraquecidos da margem vinham morrer em torno deles. Bem alto, no ar
límpido, grandes aves de rapina voavam em giros; peixes prateados saltavam na
água transparente. Tudo então os convidava ao devaneio, aos doces desabafos do
coração. Mas, reconduzidos por uma força oculta para os assuntos sérios,
Giovanna falava de preferência da vida futura, das leis divinas, dos progressos
infinitos da alma, de sua depuração pelas provas e sofrimentos.

– A dor, dizia, tão temida, tão mal conhecida aqui em baixo, é, na realidade,
o ensinamento por excelência, a grande escola onde se aprende as verdades
eternas. Ela somente habitua o ser a se desapegar dos bens puerís, das coisas
terrestres, a apreciar o nada. Sem as provas, o orgulho e o egoísmo, esses
flagelos da alma, não teriam nenhum freio. É sua função amolecer os Espíritos
rebeldes, os constranger à paciência, à obediência, à submissão. O sofrimento é
o grande cadinho da purificação. Como os grãos na joeira, sempre daí se sai
melhor. É preciso ter sofrido para compadecer-se com os sofrimentos dos outros.
A aflição nos torna mais sensíveis, nos inspira mais piedade pelos infelizes. Se
os homens fossem esclarecidos, bendiriam a dor como o mais possante agente de
progresso, de crescimento, de elevação. Por ela, a razão se fortifica, o
julgamento se afirma, as enfermidades do coração desaparecem. Mais alto que os
bens terrestres, mais alto que o prazer, mais alto que a glória, ela mostra à
alma aflita, a grande figura do dever se erguendo, imponente, augusto, iluminado
pelas claridades do fogo que não se extingue.

Essas revelações, esta voz encantadora, esses acentos eloqüentes, inspirados,
preenchiam Maurice de espanto e de admiração.

– Giovanna, dizia, fale ainda, fale sempre, querida, o vivo eco de minhas
esperanças, de minha fé, de minha paixão pelo justo e o verdadeiro. Fale! Sou
tão feliz de escutá-la, de contemplá-la. E, todavia, me surpreende por vezes o
receio de que nossa felicidade se esvaneça de repente. Nossa felicidade não tem
nada de humano. Parece-me que o vento áspero da vida vai soprar sobre nosso
sonho de amor ; uma voz secreta me diz que um perigo nos ameaça.

Em vão a jovem moça procurou seguir seus receios. A aproximação de eventos
dolorosos nos preenche de uma apreensão vaga. A alma pressente o porvir? Este é
um problema em suspenso, acima de nossa inteligência e que nós não podemos
resolver.

Assim como Giovanna havia dito, quem pode prever o dia de amanhã aqui em
baixo ?

Alegrias, riquezas, honras, amores insensatos, afeições austeras, tudo passa,
tudo escapa entre as mãos do homem como uma areia sutil. As horas amargas e
desoladas da vida podem tocar de perto as horas de felicidade e de paz; mas é
raro, quando as primeiras se aproximam, que não sejamos atingidos por um sombrio
prognóstico. Assim estava Maurice. Esta conversa sobre a dor, pensava, não seria
como um presságio, uma advertência do alto? Uma pressão penosa lhe apertava o
coração quando se separava de Giovanna.

A noite se escoava longa e sem sono. Mas as primeiras claridades da alvorada
afastaram suas impressões e quando retornou para perto de sua bem-amada, vendo-a
plena de graça, de jovialidade, de vida, embelezada pelo noivado, seus últimos
receios se esvaneceram como um nevoeiro matinal sob os raios do sol de Agosto.

V

Giovanna e Maurice haviam trocado os anéis benzidos pelo padre ; a época de
sua união estava fixada. Os dias passaram para eles rápidos, entregues à sua
felicidade. Eles ignoravam que um espantoso flagelo avançava, que sua devastação
havia despovoado as planícies lombardas e que o ar puro das montanhas seria
impotente para o deter. Que lhes importava com efeito as novidades de fora, os
barulhos do mundo. O mundo para eles se resumia em um só ser, o ser amado ! Seu
pensamento, não visitava mais do que as regiões supraterrestres.

Não sonhavam senão com seu amor, com a vida que se abria diante deles tão
bela, tão rica de promessas. Mas a Vontade Suprema iria reverter todas essas
esperanças. Após haver entrevisto uma felicidade ideal, Maurice devia retomar a
sombria e desesperante realidade.

Um violento tifo se abatia sobre as margens do lago e Gravedona e o vale de
Domaso foram sucessivamente atingidos. Alguns dias tinham penosamente escoado e
já muitas das moradas estavam vazias. A fumaça azulada não se elevava mais acima
dos telhados. O silêncio, esse silêncio cruel da morte ou da perda, substituía o
barulho do trabalho e das canções; grandes cruzes brancas apareciam sobre as
portas das cabanas desertas. A foice da morte ceifava muitas existências entre
essas famílias de pescadores e artesãos, mal vestidos, mal nutridos, de higiene
duvidosa que ofereciam uma presa fácil ao flagelo. Durante quase todo o dia o
sino da igreja tocava o dobre fúnebre e numerosos cortejos se encaminhavam para
o campo-santo.

A epidemia não poupou os Menoni. Marta foi atingida primeiro, depois sua
menina tombou doente por sua vez. Todas as famílias, todas as moradas atingidas
pelo flagelo foram abandonadas. Os médicos eram pouco numerosos. Nenhum cuidado
em atender os parentes, os amigos ; o isolamento, o sofrimento e a morte, eis o
que podiam esperar aqueles que fossem contagiados. As lamúrias que ressoavam de
todas as partes, a desolação geral, arrancaram Giovanna de sua quietude, de sua
felicidade. A voz imperiosa do dever se elevava nela e dominava a voz do amor.
Desdenhando do perigo, surda às súplicas de Maurice, partilhava doravante seu
tempo entre os infelizes abandonados. Seu noivo, não podendo desviá-la do risco,
imita seu exemplo. Giovanna passa um mês inteiro na cabeceira dos moribundos ;
vários expiram sob seus olhos. Marta e sua menina morreram malgrado os seus
cuidados. Até os derradeiros momentos ela os assistiu, suportando com uma calma
aparente o espetáculo de suas convulsões, respirando o sopro envenenado que
exalavam de seus lábios. Tanta fadiga e emoções acabaram com a jovem moça. Uma
tarde em que, extenuada, retornava da vila com Maurice, teria caído no solo,
desmaiada, se seu noivo não a tivesse recolhido em seus braços.

Ela retornou para casa e se acamou, e os assustadores sintomas se
manifestaram em seguida. Um círculo de fogo apertava suas têmporas; zumbidos
insólitos faziam barulhos em seus ouvidos; os calafrios a tomaram, uma cor
arroxeada se estendeu em torno de seus olhos. O mal fazia rápidos progressos; a
vida de Giovanna fundia como uma cera mole sob o sopro do flagelo. A partir do
dia seguinte, a sombra da morte flutuava sobre sua face. Maurice, pálido,
desesperado, permanecia o tempo todo perto dela, apertando suas mãos geladas.
Aproximando seus lábios de sua boca descolorada, pedia à Deus lhe permitisse
aspirar a morte em um beijo.

Giovanna respondia docemente ao seu abraço. Seus olhos, já brilhantes das
luzes do lado de lá, se fixavam sobre ele com uma expressão de calma, de doçura
serena. Mesmo nesse momento solene, malgrado o sofrimento que despedaçava seus
membros, um sorriso resignado aclarava sua face. À tarde, a agonia começou.
Giovanna agitava-se convulsivamente, debatia-se sob uma opressão dolorosa,
implorando a Deus aos gritos. A essas crises terríveis sucedia um abatimento
profundo, uma imobilidade semelhante à morte. Somente, os lábios da jovem menina
mexiam. Parecia conversar com seres invisíveis. Por vezes também, se a escutava
murmurar o nome de Maurice. Um ligeiro cerramento da mão, um último
estremecimento, e Giovanna expira. A alma desse anjo retornava para Ele que a
havia criado.

Maurice, esmagado pela dor, estava como um homem ébrio. Suas lágrimas, não
podendo sair, recaiam sobre seu coração e o afogava em ondas de um cruel
desespero. A noite veio, colocou-se velas acesas próximo ao leito ; um crucifixo
repousava sobre a peito da morta cujos cabelos louros esparsos formavam uma
coroa de ouro em torno de sua cabeça pálida. Soluços meio comprimidos se
elevaram dos cantos da sala. A tia, a velha ama de leite de Giovanna, algumas
pobres pessoas a quem a morta havia socorrido, oravam e choravam. Maurice se
aproxima da janela toda aberta. Ironia da natureza! O disco brilhante da lua
aclarava planícies e montes; aromas balsâmicos flutuavam no ar; a torrente,
correndo sobre as pedras, fazia ouvir seu alegre murmúrio ao qual respondia o
rouxinol pousado sobre os altos galhos. No seio da noite tépida e perfumada,
tudo eram luzes e cantos, tudo celebrava a felicidade de viver, e lá, sobre seu
virginal leito, a doce criança dormia já o eterno sono. Assim pensava Maurice ;
mil idéias sombrias, tumultuadas, cresciam no seu cérebro como um vento de
tempestade.

Qual é então o Deus cruel que brinca assim com nosso coração! Haver-lhe
mostrado a felicidade, haver-lhe feito a tocar para logo a furtar. Esses sonhos
dourados, esses sonhos formados a dois, estariam para sempre desvanecidos! Esse
cadáver que pernoitava ali era tudo o que restava de Giovanna?

Não a veria mais, não ouviria mais sua voz, não veria mais nos seus olhos
aqueles clarões de ternura que o inebriavam, que o reaqueciam deliciosamente.
Mais algumas horas e não teria mais nada dela, nada senão a lembrança, uma
lembrança dilacerada, penetrante como uma espada na alma ulcerada. Não mais as
caminhadas a dois no vale, não mais os passeios sobre o lago, na brilhante
luminosidade do dia, não mais as conversas sobre o terraço na suave claridade
das noites. Ele era triste, deprimido, até que a conheceu; como um raio, seu
olhar havia clareado sua vida, e eis que, subitamente, tudo se extinguia. Estava
acabado agora; sua vida tinha se encerrado; não mais os sonhos alegres, não mais
a esperança, agora o vazio, a solidão terrível, as trevas se formariam ao redor
dele. Como seu coração batia a golpes precipitados no seu peito, como sua cabeça
queimava! Um peso esmagador lhe fazia curvar a fronte, mergulhando-a em seus
joelhos. E chamava a morte, desejava-a ardentemente. – «Vem, dizia, leve-me com
ela, envolva-nos no mesmo sudário, deite-nos na mesma cova; que a mesma pedra
nos cubra ! » Mas não, ela estava morta e ele lhe falava, vivo. Que abismo se
abria sob seus passos! E a revolta esmagava esta alma contra o implacável
destino.

Evocando as lembranças de sua vida, depois seus tristes anos de infância,
Maurice via passar como um turbilhão as ilusões dissipadas, as alegrias tão
curtas, tão vazias, evanescentes, as felicidades efêmeras de sua juventude.
Todas as sombras, todas as preocupações do passado, subiam como uma onda amarga
do fundo de sua memória, submergindo nele as últimas esperanças. Em seu lugar,
uma profunda sensação de isolamento, de abandono, permanecia. Todos aqueles que
tinha amado haviam partido. Sua mãe, morta quando ele era apenas uma criança,
depois seu pai, e agora, aí estava Giovanna. Tudo o que havia alegrado sua
existência, tudo o que havia feito bater seu coração iria se resumir em três,
sepulcros. – « Oh! Murmurava, Ser invisível que se ri de nossas lágrimas, nos
faz então viver apenas para nos torturar? Entretanto não pedi para nascer. Por
que me tirou do nada, lá onde se dorme, onde se repousa, onde não se sofre! » A
alvorada veio aclarar com suas pálidas luzes a triste cena da morte, Giovanna
depositada no caixão, a chegada do padre, a partida para o cemitério. Semelhante
a um autômato, Maurice seguiu o féretro, coberto de ramalhetes de rosas brancas,
levadas pelas jovens meninas de Gravedona. Afundado em sua dor, ele não via nada
do cerimonial fúnebre na igreja, não escutava certamente as salmodias lúgubres.
O barulho surdo da terra caindo sobre as tábuas do caixão o chamou enfim a si.

Os assistentes se foram, a cova fechada, se encontra só, diante da sepultura
de sua noiva. Então seu coração se dilacera; ele se lança sobre o solo,
estendendo seus braços por cima da morta; um soluço se ergue em seu peito e um
regato de lágrimas escorre de seus olhos.

VI

O inverno chega, espessas nuvens demoram no céu; o vento passa mugindo sobre
as colinas despojadas, fazendo turbilhonar os monturos de folhas mortas.
Maurice, sozinho, vestido de luto, está sentado perto de uma lareira que crepita
no seu pequeno aposento dominando o lago. Um livro está aberto diante dele; mas
não o está lendo; sombrios pensamentos o assediam. Sonha com aquela que repousa
sob a terra gelada, ouvindo os gemidos do vento que chora como uma legião de
almas em sofrimento. Por vezes, se levanta e vai observar, por detrás do vidro,
o tapete cinzento das águas, o horizonte cujas cores de chumbo se harmonizam com
o estado de seu espírito; depois apanhando um bauzinho de madeira esculpida,
abre-o e retira flores dessecadas, um laço de fitas, jóias de mulher. Aperta
sobre seus lábios essas relíquias de amor; o passado evocado se revela em sua
memória. E as horas se sucedem às horas. Maurice permanece lá, meio inclinado
sobre esse fogo que queima na atmosfera úmida. Ele sonha com a felicidade
perdida, as esperanças desvanecidas. A falta de coragem reavivou o desgosto da
vida, esse desgosto de amar outra vez, o invadiu novamente; idéias de suicídio
germinam no fundo de seu pensamento.

A noite se faz e o fogo vai se extinguir, mas Maurice se compraz nesta
obscuridade mais e mais espessa. Um roçamento se fez ouvir atrás dele. Volta-se
e não vê nada. É sem dúvida o barulho do vento ou os passos da empregada, no
quarto vizinho. Perto da chaminé está um piano, mudo há muito tempo. De repente
sons se elevam desse móvel hermeticamente fechado. Confundido pala surpresa,
Maurice presta atenção. Essa ária bem conhecida é a canção de Mignon, a canção
preferida de Giovanna, e que ela gostava de tocar à noite, após a refeição. O
coração de Maurice fica apertado ; as lágrimas molham seus olhos. Levanta-se, dá
a volta no piano : ninguém! O banquinho está vazio. Volta para o seu lugar. Será
isso uma ilusão sonora ? Uma sombra branca ocupa a poltrona que acabara de
deixar. Tremendo, se aproxima. Seus olhos, seu olhar límpido, seus cabelos
louros como espigas maduras, essa boca sorridente, esse porte esbelto, alongado,
é a imagem de Giovanna. Oh magia, a tumba devolve então os seus hóspedes! Uma
voz vem acariciar seus ouvidos: – « Amigo, não receie nada, sou bem eu, não
procure me segurar, não sou senão um Espírito. Não se aproxime mais, escute-me.
» Maurice se ajoelha e chora – « Meu anjo, minha noiva, é então você ? »

– Sim, sou sua noiva, noiva de você bem antes desta vida. Escuta, um laço
eterno nos une. Nós nos conhecemos desde séculos, temos vivido lado a lado por
muitas vezes, percorrido juntos muitas existências. A primeira vez que o
encontrei sobre a terra, estava bem fraca, bem tímida, e a vida então era dura.
Você me tomou pela mão, me tem servido de apoio; desde esse momento, não nos
separamos jamais. Sempre nos seguimos nas nossas vidas materiais, andando no
mesmo caminho, nos amando, sustentando um ao outro. Ocupado com os combates, os
empreendimentos guerreiros, você não podia realizar os progressos necessários
para que seu espírito livre, purificado, pudesse deixar este mundo grosseiro.
Deus queria prová-lo; nos separou. Eu poderia subir para outras esferas, mais
felizes, enquanto que você deveria prosseguir, sozinho, sua provação aqui em
baixo. Mas preferi esperá-lo no espaço. Você cumpriu duas existências desde
então, e durante seu curso, testemunha invisível de seus pensamentos, não tenho
cessado de velar sobre você. Cada vez que a morte arrancava sua alma da matéria,
você me encontrava e o desejo de se elevar o fazia tomar com mais ardor o fardo
da encarnação. Desta vez, tendo tanto orado, tendo tanto suplicado ao Senhor,
ele me permitiu voltar sobre a terra, aí tomando um corpo, uma voz, para ensinar
a você o bem e a verdade. Nossos amigos do espaço nos aproximaram, reunidos, mas
por um tempo limitado. Eu não podia mais permanecer por muito tempo sobre a
terra, minha missão já estava completa. Não devia ser sua aqui em baixo.

« É chegada uma hora em que os Espíritos podem, segundo a permissão divina,
se comunicar com os humanos. Por isto venho, para guiá-lo, encorajá-lo,
consolá-lo. Se quiser que esta existência terrestre seja a última para você; se
quiser que, à sua partida, sejamos reunidos para não mais nos separarmos,
consagre sua vida à seus irmãos, ensine-lhes a verdade. Diga-lhes que o objetivo
da existência não é de adquirir bens efêmeros, mas de aclarar sua inteligência,
de purificar seu coração, de se elevar para Deus. Revele as grandes leis do
Universo, a ascensão dos Espíritos para a perfeição. Ensine-lhes a via múltipla
e solidária, os mundos inumeráveis, as humanidades irmãs. Mostre-lhes a harmonia
moral que rege o infinito. Deixe atrás de você as sombras da matéria, as paixões
maldosas; dê a todos o exemplo do sacrifício, do trabalho, da virtude. Tenha
confiança na divina justiça. Olhe adiante, para a luz longínqua que aclara o
objetivo, o objetivo supremo que deve nos reunir no amor, na felicidade. »

« Sem tardar entregue-se à obra; nós o sustentaremos, o inspiraremos. Estarei
próximo a você na luta, envolvê-lo-ei em um fluido benfazejo. Assim, nesta
noite, me tornei visível aos seus olhos, revelei o que ainda ignorava. E um dia,
quando tudo o que tem em você, de terrestre e de baixo, tiver se desvanecido,
unidos, confundidos, nos elevaremos juntos para o Eterno, juntando nossas vozes
ao hino universal que sobe de esfera em esfera até Ele. »

Reencontrei Maurice Ferrand, há alguns anos, numa grande vila, por detrás dos
Alpes. Havia começado sua obra. Pela escrita, pela palavra, trabalhava
disseminando esta doutrina conhecida sob o nome de Espiritismo. Os sarcasmos e
as zombarias choviam sobre ele de todas as partes. Céticos, devotos,
indiferentes, todos se uniam para o importunar. Mas, calmo, resignado, não
parava de seguir em sua missão. « Que me importa, me dizia, o desdém desses
homens. Um dia virá em que, com auxílio da provação, compreenderão que esta vida
não é tudo e pensarão em Deus, em seu porvir sem fim. Então talvez se recordem
daquilo que lhes disse. A semente lançada neles poderá germinar. E, aliás,
acrescentou observando o espaço – e uma lágrima brilhou em seus olhos – o que
faço, é obedecer àqueles que me amam, é para me aproximar deles! »

 

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