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Heresia e Ortodoxia

Heresia e Ortodoxia

Todos os movimentos religiosos foram heresias em sua origem. Da mesma forma podemos
chamar de hereges todos os pioneiros de religiões, filosofias e ciências. A resistência
a algo novo é sempre causada pelo apego e inércia a sistemas que, na época, eram
considerados como sendo a verdade final. A ortodoxia de hoje foi a heresia de ontem
e a heresia de agora se tornará a ortodoxia de amanhã.

Um espírito que tenta buscar a verdade pode chegar a um ponto em que transcende
a ortodoxia e a heresia, procurando conciliar os opostos, sem se contentar com as
convenções passadas e presentes. Compreende que as contradições são apenas aparentes
e que as incompatibilidades não passam de mera demonstração descuidada de hostilidade
que no máximo tentam esconder a própria ignorância de aspectos do assunto.

Abaixo temos um trecho extraído dos textos de um escritor e filósofo do Séc.
XIX, S. Mead, que exemplifica a divergência que costuma ocorrer entre um ortodoxo
e alguém que já se libertou da barreira dos opostos:

“Muitos de meus leitores devem conhecer bem a tirania de uma Igreja cuja resposta
estereotipada a toda contestação da sua autoridade é: – ‘Isto é orgulho intelectual,
meu filho; o mais sutil de todos os pecados. O que está lhe faltando é a virtude
da humildade, a maior de todas as virtudes. Sua afirmação de humildade é vã, já
que é justamente esse orgulho intelectual que o está levando agora, neste momento,
a se recusar a se submeter à autoridade da Igreja’ “.

” O que esse tipo de mente nunca pode entender é que há um uso correto e um
uso errôneo do orgulho, bem como um uso correto e um uso errôneo da humildade. O
orgulho da humildade é orgulho como qualquer outra forma desta paixão. O uso humilde
do divino dom da razão constitui mais autêntica adoração de Deus do que a degradação
pessoal ante a tirania do interesse egocêntrico, que se arroga o domínio da alma
do Homem”.

“Foi o ciúme desse espírito de monopólio das coisas divinas que deu origem
a todos os horrores da perseguição religiosa. Os homens não se envergonham de orar
ao seu Deus pedindo que os livre dos infiéis e hereges, como num anátema. E inúmeras
vezes cuidaram que sua oração se tornasse realidade por meio do fogo, da espada
e da tortura. E a ironia disso tudo é que os seus mais chegados companheiros de
fé são invariavelmente encarados como os mais condenáveis. É realmente notável o
fato de que, ao surgirem diferenças entre aqueles que antes haviam estado unidos
em fé e aspiração religiosas, a hostilidade seja mais amarga e cruel. Isto pode
ser observado em toda parte. Qual é o motivo dessa amargura?”

“Não será que, em algum grau, aqueles que estiveram tão intimamente associados
em assuntos religiosos, que tão intensa e cegamente acreditaram que a sua crença
era a única, que o seu meio de salvação era válido para todos os homens, que estão
convictos de que só deve haver uma Igreja, e que essa Igreja deve ser a sua, fiquem
extremamente enraivecidos com a desvinculação de seus companheiros, que consideram
como únicos responsáveis pelo ultraje que então sofrem, ao invés de reconhecerem
que estiveram todo o tempo vivendo num paraíso hipotético, de modo que seus ex-companheiros
merecem sua mais profunda gratidão por lhes terem aberto os olhos?”

No fundo o ortodoxo teme que sua crença seja alterada pela introdução de conceitos
novos, mas não seria tolice temer pela Verdade que no final prevalecerá por si mesma?
E no fundo o herege vê erros nas crenças, porque se esquece que todas terão pontos
de incertezas enquanto a humanidade ainda não tiver evoluído o suficiente para tudo
compreender e que, quando isso acontecer, todos os opostos serão conciliados e ver-se-á
então que todas as crenças contém uma parcela da verdade. Para um espírita não deve
haver temor, mas apenas a fé na infinita bondade e sabedoria divinas e a certeza
de que todo questionamento só pode terminar em um maior entendimento da Verdade.
Afinal, que valor teria para ele a heresia e a ortodoxia a partir do instante em
que compreendesse sua pequenez perante a infinita sabedoria divina?

Mantenhamo-nos vigilantes para não cairmos na tendência tão limitante e personalista
de achar que a nossa compreensão atual é a palavra final e que o futuro não traria
novas revelações que pudessem nos aproximar cada vez mais da Verdade, acompanhando
a lenta evolução da humanidade. Portanto, que nossa ortodoxia seja a de nos atermos
primeiro ao que foi transmitido pelos espíritos nas obras básicas e que a nossa
heresia seja a de procurarmos abordar as novas questões da atualidade utilizando
as comunicações modernas de espíritos de escol; com isso estaríamos contribuindo
para reduzir em nosso meio toda forma de personalismo e exercitando o tão aconselhado
esquecimento de nós mesmos1. Não seria demais reafirmar que os princípios
contidos nessas mensagens, só deveriam ser considerados como parte acessória da
Doutrina, quando transmitidos através de médiuns reconhecidos, ou após terem passado
pelo Controle dos Espíritos2 ou pelo Controle da Mediunidade3;
as demais deveriam ser vistas como contribuições de boa vontade, mas ainda sujeitos
a confirmação futura.

Lembremo-nos sempre destas sábias palavras de nosso mentor
Bezerra de Menezes4 :

“… que a base kardequiana permaneça em tudo e todos,
para que não venhamos a perder o equilíbrio sobre os alicerces em que se nos levanta
a organização”.

1 – O Evangelho Segundo o Espiritismo – Allan Kardec – Cap. X Item
14 – FEB.
2 – O Evangelho Segundo o Espiritismo – Allan Kardec – Introdução
– FEB.
3 – Artigo
Controle da Mediunidade de Jean
Bazerque
4 – Ontem e Hoje – Bezerra de Menezes – 1ª
Ed., 2000, FEB, págs. 84 e 95.