“Quando olhamos por alto as pessoas, ressaltam suas diferenças: negros, brancos,
homens e mulheres, seres agressivos e passivos, intelectuais e emocionais, alegres
e tristes, radicais e reacionários. Mas à medida que compreendemos os demais as
diferenças desaparecem e em seu lugar surge a unicidade humana: as mesmas necessidades,
os mesmos temores, as mesmas lutas e desejos. Todos somos um. – James Joyce
in “Finegans Wake”
Muitos companheiros e empenhados militantes da nossa Doutrina há muito defendem
a idéia de que o Espiritismo não uma religião. Também estou de acordo com todos
eles, em parte. Só não concordo com a falsa associação que muitos deles fazem entre
religião e sectarismo, entre as igrejas e o cristianismo, bem como outros pequenos
equívocos conceituais e históricos.
Realmente, o Espiritismo não é uma religião no sentido formal e exterior ao ser,
muito menos no sentido de organização institucional. O que existe no Espiritismo
e no seu movimento são temáticas filosóficas cuja essência é religiosa, mística,
relacionada ao comportamento natural de adoração. No movimento esses temas são distorcidos
pelos adeptos neófitos menos comprometidos com a originalidade doutrinária, se bem
que não há muita coisa de original nas idéias do Espiritismo e sim nos enfoques
e aplicações práticas. O comportamento místico-religioso não é proibido, muito menos
não recomendável nas instituições espíritas. Essa postura crítica desses companheiros
é apenas uma tendência presente em alguns grupos puristas, que vale como vertente
de opinião e ponto de vista, merecendo todo o nosso respeito, mas não significa
em momento algum que tenha fundamentação doutrinária inquestionável. Aliás, a aceitação
ou rejeição de qualquer tipo de comportamento no Movimento Espírita é uma questão
ética, de foro íntimo, e que pode ser compartilhado coletivamente ou objeto de crítica,
mas nunca de condenação e perseguição. O que existe nessa polêmica histórica e bizantina
é um certo e lamentável preconceito de mentalidade, um choque ideológico superficial
de posturas entre o chamados místicos e os ditos filósofos e cientistas espíritas.
Tal conflito faz parte dos tempos primitivos do movimento espírita brasileiro e
perpetuou-se como sujeira guardada sob o tapete exatamente porque nunca foi tratado
como um debate sério entre pessoas com interesses nobres e comuns, mas sim como
um jogo de provocações pueris e pano de fundo para disputas de facções institucionais.
Mas o que importa realmente em tudo isso é discutir e refletir sobre o sectarismo,
um tipo de comportamento ou desvio ideológico típico da natureza humana e não das
suas preferências. Não podemos confundir os efeitos com as causas. O fenômeno do
comportamento sectário, egocêntrico, estreito, autoritário, inseguro, intolerante,
que não sabe conviver com a diversidade, pode se manifestar e qualquer área de atuação,
seja nas igrejas, nos centros espíritas, nas academias universitárias, partidos
políticos, como também nas torcidas de futebol. O inverso do indivíduo sectário
é aquele compartilha, que aceita o outro sem preconceitos. E aceitar não quer dizer
aderir, aplaudir ou reproduzir o que o outro faz. Para aceitar não é preciso concordar,
basta respeitar. Estão fazendo uma confusão e naturalmente esquecendo que também
nos discursos de pureza doutrinária, da fidelidade ao pensamento de Kardec, na afirmação
dogmática e descontextualizada de que o Espiritismo não é religião, pode estar embutido
o comportamento sectário, o mesmo que faz com que haja matanças e outras agressões
entre os religiosos sectários. Jesus foi religioso sem nunca ter tido vinculo ou
ter criado uma religião. Francisco de Assis, o Mahatma Gandhi, o pastor Martin Luther
King e o médium Chico Xavier eram pessoas claramente religiosas. Não podemos colocá-las
no mesmo saco ideológico de religiosos sectários como os padres Savonarola e Torquemada,
o ativista Malcon X, o aiotolá Khomeini ou pastor Jim Jones.
Então, companheiros, até entendo e compreendo quando dizem “Não! Não dá pra aceitar!
Sinto muito, mas eu me recuso a ser religioso. Prefiro ser espírita, simplesmente
ser espírita”. Acontece que ser espírita não é tão simples assim como se diz. Não
fica muito claro que tipo de espírita somos ou devemos ser. E não adianta argumentar
que só existe apenas um tipo de espírita, ou melhor, aquele que é ou aquele que
não é, pois isso fica parecendo uma simplificação retórica. Kardec disse que existem
três tipos, ou melhor, três graus de espíritas. Eu, por exemplo, gostaria de ser
aquele do terceiro grau. Não sei em que grau estou, mas, sob outro aspecto, acho
que na realidade, pé no chão, sou um espírita do tipo religioso, “misticão”, no
dizer do amigo Jaci Régis. Faço preces, às vezes por medo ou por gratidão, acho
que Jesus realmente é o governador do planeta, que Ismael é o verdadeiro ban-ban-ban
do Brasil (Pátria do Evangelho, é claro!), que as revelações de Emmanuel são autênticas,
enfim, coisas de gente religiosa… Também não creio cegamente somente nas coisas
que Kardec disse ou não disse ou deveria ter dito. Não policio os outros, mas me
policio para não fazer inferências que me são convenientes ao pensamento de Kardec.
Há quem me aceite e há quem me rejeite; há também quem se esforce para me aceitar.
No movimento espírita, como não poderia deixar de ser, existem muitas pessoas
sectárias em vários graus de intolerância e auto-desconhecimento, até mesmo entre
os chamados “intelectuais”, que são vistos mitologicamente como os grandes “cérebros”
da doutrina, pessoas incomuns e de conhecimento acima de qualquer suspeita. Sabemos
que a intelectualidade nunca foi sinônimo de maturidade e sabedoria. Intelectuais
sectários logo são traídos pelo desequilíbrio emocional, sobretudo pelos traços
de deboche típicos dos psicopatas e o auto-fascínio das personalidades fortemente
narcísicas. Revelam um medo devastador de olhar para o mundo interior, a síndrome
de Sócrates, e não aceitam de forma alguma que alguém possa passar por esse tipo
de experiência sem mentir para si mesmo. Vêm daí a constante irritação e o sarcasmo
com as idéias e vivências que destoam do rígido e defensivo padrão vivencial que
adotaram para si.
É bem veridico, nós os chamados intelectuais espíritas, convivemos com uma falsa
imagem de que somos os donos da verdade e os sábios absolutos da doutrina, os “doutores
do templo”. Sofremos de um crônico complexo de inferioridade e queremos, a todo
custo, sermos reconhecidos socialmente como uma elite científica e filosófica. E
a religião e a religiosidade funcionam como bode expiatório nessa pretensão e ao
mesmo tempo incapacidade de nos aceitarmos tal qual somos. Semelhante aos positivistas
do século XIX, uma falsa e desesperada elite em busca de reconhecimento e brilho
social, queremos acabar com a igreja inventando outra igreja, uma mudança da fachada.
Nosso sonho é fazer sucesso nas universidades, escondendo a religião embaixo de
um tapete todo furado e sobre o qual pisamos tentando disfarçar a nossa realidade.
É assim que coisas como o Culto do Evangelho no Lar – CEL passaria se chamar Reunião
de Estudo Espíritas no Lar – REEL. August Comte iria delirar de orgulho ao ver que
suas idéias até hoje fazem sucesso no Movimento Espírita com o sugestivo rótulo
de “kardecismo”. Quando meus colegas de faculdade queriam me torrar a paciência
nunca me chamavam de macumbeiro ou coisa parecida, mas viviam comentando com risinhos
provocativos que Kardec era um plágio de Comte. Como nas noites espíritas brasileiras
todos os gatos são pardos, é melhor sempre deixar muito claro que não temos nada
a ver com a umbanda, o candomblé, com as igrejas, muito menos com a maldita religião.
Conversando com amiga no trabalho, ela confessou-me em voz baixa que o pai era protestante
e depois virou espírita. Perguntei se era espírita mesmo e ela admitiu que era umbanda
e que usava esse artifício para disfarçar a estranha conversão do pai e, mesmo porque
ele não se acostumaria com alguma coisa “tão fina como o Espiritismo” (palavras
dela).
Vivemos todos mergulhados num oceano de preconceitos e por isso vivemos quase
sempre em função daquilo que os outros vão “pensar” de nós. Essa é a verdadeira
causa do sectarismo; para nos protegermos de um preconceito, criamos outros preconceitos
cada vez mais ridículos e irracionais. Os intelectuais não estão isentos dessa escorregadela
de orgulho e de arrogância. Pessoalmente, acho eu, pelo menos foi assim que aprendi
na universidade, que o intelectual e a intelectualidade não são meros títulos acadêmicos
de valor cartorial, mas uma condição dinâmica que progride e se transforma incessantemente;
o intelectual autêntico é aquele que cresce e se transforma no universo da idéias
produzindo conhecimento próprio; vai adquirindo autonomia de pensamento, isto é,
pensando cada vez mais sem a interferência de idéias alheias; quando utiliza idéias
dos outros as usa como meios e não com fim. Sei que é difícil estabelecer um critério
de separação daquilo que é o nosso pensamento daquilo que é o pensamento do outro.
Como bem disse Edgard Armond, vítima histórica dos espíritas sectários, “Muitos
dizem que sabem, porque pensam, achando que pensar é saber. Há muita distância entre
pensar e saber e saber sem pensar”. Já com o sectário é mais fácil identificar
que ele não pensa por si próprio e quase sempre reproduz de forma distorcida as
idéias dos outros. O sectário também é traído pelo seu perfil emocional alterado,
típico dos fanáticos; ele simplesmente não admite a opinião do outro e repele qualquer
idéia ou comportamento que não se coaduna com os seus preconceitos. Como se vê,
o sectário não possui e não domina conceitos e sim faz confusão com eles. Trata-se
de um traço que nos persegue bem de perto, sobretudo porque ainda não temos convicção
ou uma fé inteligente e equilibrada nas idéias que cultivamos. Talvez seja realmente
um vírus ideológico, um desvio ou imaturidade do pensamento aberto, autônomo, seguro,
claro e objetivo e que ataca religiosos, filósofos e cientistas. Daí a sua característica
mais emocional, ainda que camuflada de argumentação aparentemente racional.
Mas as coisas são como são e não vamos poder mudá-las só para que se adaptem
ao nosso modo de ser ou então porque existem em torno delas um preconceito socialmente
constituído. Preconceito é um conceito mal formulado, porque foi mal compreendido.
A religião, por ter sido durante séculos o centro do conhecimento humano, é vítima
do preconceito que ela mesma semeou, por ignorância de muitos religiosos, mas não
de todos. Tornou-se uma palavra gasta e negativamente associada ao sectarismo religioso
e aos maus religiosos. Hoje em dia ninguém quer ter suas idéias rotuladas de religiosas,
a não ser aqueles que precisam fazer carreira profissional nesse setor. É só perguntarmos
a um budista quais as idéias da sua religião e ele responde prontamente: “Não é
uma religião, é uma filosofia… Não sou religioso, sou budista…” Muito original
essa resposta, não é mesmo?
Como somos cultivadores de uma doutrina cuja ideologia essencial é a Verdade
isso nos faz refletir sobre o tipo de pessoas que temos sido e também sobre o equivalente
compromisso moral que temos com ela e com a sociedade em que vivemos. Não é à toa
que somos muitas vezes cínicos e dissimulados quando nos defrontamos com a Verdade,
principalmente quando se trata da verdade contida em nós e nas pessoas que julgamos
não serem dignas da nossa confiança e aceitação. Fazemos parte de uma espécie que
ainda está em construção moral e talvez sejamos os únicos que fingimos não conhecer
ou não lembrar dos semelhantes com a intenção inconsciente de diminuir o outro e
assim nos sentirmos no mínimo igual ou melhor posição.
Como todos nós temos um pouco de sectarismo na personalidade, precisamos nos
questionar seriamente obre isso. Precisamos verificar se não estamos mascarando
nossas posturas sectárias com discursos sofismáticos. Poderíamos até empreender
um trabalho de cura reflexiva nesse aspecto. Tenho uma sugestão: poderíamos criar
um trabalho assistencial chamado “S.A.- Sectários Anônimos” e ali descobriríamos
qual o nosso grau de comprometimento com esse problema. Pode parecer brincadeira
ou ironia, porém muitos de nós já estamos num grau de doença ideológica que, comparado
ao alcoolismo, seria a fase de delírio trêmulo. Se a idéia não for bem aceita podemos
esquecê-la imediatamente e consultar a questão 919 de o Livro dos Espíritos, respondida
por Santo Agostinho. Quem não tiver preconceito contra santos católicos que se tornaram
espíritas vai tirar um grande proveito dessa experiência.
Dalmo Duque dos Santos é mestre em Comunicação, bacharel em História e pedagogo.
Publicou pela DPL os ensaios “Você em Busca de Si Mesmo” e “ A Inteligência Espiritual”.
Está lançando pela mesma editora uma história do Espiritismo com o título “O Demolidor
de dogmas – Allan Kardec e a Reconstrução da Fé no Ocidente”.