Conta o evangelista Lucas (capítulo I) que sob o reinado de Herodes, rei da Judéia,
há perto de dois mil anos, morava na região serrana, nas proximidades de Jerusalém,
o velho Zacarias.
Era um dedicado sacerdote, homem piedoso e nobre, pertencente à turma de Abias,
uma das vinte e quatro que, segundo a tradição judaica, serviam no templo, obedecendo
a um sistema de rodízio.
Zacarias carregava uma tristeza. Não tinha filhos.
Durante anos implorava a Deus lhe concedesse a graça de acolher um rebento querido
em seus braços.
Com a madureza desistira da idéia. Difícil antes, impossível agora. Certamente
Isabel, sua esposa, era estéril.
Para os judeus, não ter filhos era uma desgraça, verdadeiro castigo divino. A
desonra pesava sobre a mulher que nunca concebera. Podia até ser repudiada pelo
marido.
Mas ambos suportavam com paciência a situação e cumpriam seus deveres com retidão,
sempre submissos ao Senhor.
Nos Espíritos evoluídos a confiança em Deus não está subordinada ao atendimento
de seus desejos. Confiam porque têm plena consciência de que Deus sabe o que faz.
Certa feita, quando chegou a vez de sua turma, Zacarias partiu para Jerusalém.
No templo, tirada a sorte, foi escolhido para entrar no santuário.
A multidão aguardava do lado de fora o soar das trombetas que marcava o início
das orações.
Para espanto de Zacarias, sozinho no sagrado recinto, surgiu diante dele uma
entidade angelical.
Tratava-se de Gabriel, o mais famoso anjo das escrituras bíblicas, chamado pela
tradição religiosa de alta categoria.
Além de Zacarias, ele esteve com o profeta Daniel e também com Maria. Provavelmente
apareceu em outros episódios bíblicos sem se identificar.
Em linguagem espírita diríamos que Gabriel é um Espírito superior, um dos mais
importantes prepostos de Jesus.
Zacarias teve medo, o que revela sua pouca familiaridade com manifestações dessa
natureza. Os judeus não estavam acostumados a lidar com os Espíritos.
Diga-se de passagem, caro leitor, raras pessoas não se assustariam. São sempre
temidas as “assombrações”.
O anjo buscou tranqüilizá-lo:
– Não tenhas medo, Zacarias, porquanto a tua súplica foi ouvida e Isabel, tua
mulher, te dará um filho a quem chamarás João. Ficarás feliz e muitos se rejubilarão
com seu nascimento, pois será grande aos olhos do Senhor. Não beberá vinho nem bebida
inebriante; será cheio de Espírito Santo, desde o seio materno. Converterá muitos
dos filhos de Israel ao senhor deles e irá à frente do Senhor no Espírito e poder
de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos e os desobedientes à sabedoria
dos justos, a fim de preparar para o senhor um povo dedicado.
Gabriel reporta-se à grandeza moral daquele que nasceria como filho de Zacarias
e Isabel. Tratava-se de um Espírito experiente, que já vivera muitas encarnações
na Terra.
Impossível negar essa evidência.
Equivaleria a admitir que Deus beneficia filhos seus com virtudes que a outros
nega, uma flagrante e inaceitável injustiça.
Naqueles tempos recuados homens consagrados ao serviço de Deus se obrigavam a
uma existência especial.
Dentre os compromissos que assumiam, estava a abstenção de álcool. Daí a observação
do anjo.
Sempre que se volta para a religião o homem é inspirado a preservar a pureza,
evitando a taça dos prazeres inebriantes que anestesiam a consciência e afetam os
sentidos, simbolizados pelo álcool.
As forças do Bem pedem instrumentos dóceis, equilibrados e puros para que possam
se manifestar em plenitude na Terra, derramando bênçãos de esperança e paz para
os homens. Zacarias admirou-se.
– Como pode isso acontecer se eu e minha mulher somos velhos e ela, além do mais,
sempre foi estéril?
O visitante parece não ter apreciado sua pergunta.
– Sou Gabriel, sempre presente diante de Deus, e fui enviado para anunciar esta
boa nova. E porque duvidaste, doravante vais ficar mudo. Não poderás falar, até
o dia em que teu filho nascer, visto não haveres acreditado em minhas palavras,
que a seu turno se cumprirão.
O povo aguardava Zacarias, estranhando sua demora.
Quando ele saiu sem poder falar, causou estupefação.
Compreendeu-se que algo de muito grave acontecera no santuário.
Zacarias explicou, por meio de sinais, e continuou mudo.
Decorridos os dias de seu ministério sacerdotal, regressou para casa.
Imensa foi sua surpresa quando, tempos depois, confirmando as palavras do anjo,
Isabel ficou grávida.
Após nove meses dava à luz um menino forte que, conforme a recomendação, recebeu
o nome de João.
Seria conhecido mais tarde como o Batista.
Com o nascimento de seu filho, Zacarias recuperou a voz e pôde relatar melhor
sua experiência, rendendo graças a Deus pela dádiva recebida.
Ressalta da narrativa evangélica algo interessante:
Gabriel parece um anjo de pavio curto, que não gosta de ser contestado. Pior,
atropelou a justiça ao condenar Zacarias a tão longo mutismo, apenas por manifestar
razoável dúvida.
Inadmissível os Espíritos Superiores nos castigarem por pedirmos esclarecimentos
a respeito de suas afirmações. Eles orientam, explicam, ajudam, amparam, mas jamais
se exasperam e muito menos impõem sanções, ainda que revelemos ceticismo.
Mas é fácil entender o que aconteceu.
As circunstâncias que envolveram o nascimento de João tinham por objetivo chamar
a atenção do povo.
Em linguagem atual, com o devido respeito, diríamos que houve uma ação de marketing.
Um sacerdote que ficou mudo após conversar com um anjo, e uma mulher estéril
que concebeu em avançada idade, eram acontecimentos marcantes. Fatalmente despertariam
interesse, particularmente numa aldeia humilde como aquela onde o casal residia.
Importante que João fosse recebido desde o início como alguém consagrado a Deus.
Importante que o povo se habituasse a ver nele um novo profeta da raça, pois
lhe seria confiada a tarefa de preparar o caminho para o Messias, o enviado celeste
há séculos aguardado pelo povo judeu. João era Elias de retorno para anunciar o
Salvador, cumprindo as profecias.
A experiência de Zacarias lembra algo importante:
Todos temos um anjo de guarda, um mentor espiritual que nos ajuda e ampara na
jornada humana.
Um amigo dizia:
– Se é assim, creio que os anjos de guarda lá em casa andam de férias. Meu filho
foi reprovado nos exames; minha filha adolescente envolveu-se com um rapaz e ficou
grávida; minha mulher bateu o carro; nosso cão foi atropelado por um automóvel e
eu, num momento de exasperação, dei um tapa na mesa e fraturei a mão.
Há aqui um equívoco em relação à atuação dos protetores espirituais.
Não é sua obrigação evitar transtornos como:
A reprovação do aluno que não estudou para exames.
A gravidez da jovem que se decide a experimentar o sexo.
O acidente do motorista que dirige com imprudência.
O atropelamento do cão que deixaram na rua.
A fratura da mão de quem dá murros na mesa.
Sua função é inspirar-nos ao bem, ao cumprimento de nossos deveres.
O protetor espiritual é a nossa consciência mais profunda, aquela voz inarticulada
que fala no imo de nosso ser alertando-nos:
– Cuidado, aja com prudência. Seja comedido. Olhe por onde anda.
Ele tem poderes para evitar que nos atinjam certos males e o faz freqüentemente,
sobretudo em relação à nossa estabilidade física e psíquica. Não fosse por ele e
bem maiores seriam nossos problemas.
Mas deixa que colhamos as conseqüências de nossas ações, a fim de que aprendamos
com os próprios erros, habilitando-nos ao exercício do discernimento e da prudência.
Assim como a mudez de Zacarias marcava acontecimento auspicioso, muitos males
que nos afligem situam-se posteriormente como gloriosos marcos de renovação, que
nos estimulam a repensar a existência inspirando-nos a procurar os valores espirituais.
É assim que muitos descobrem as bênçãos do Espiritismo.
É assim que muita gente se aproxima de Deus.